O
seu enterro
«(…)
Aos conselhos de um grande homem d'Estado que o adorava, deveu ele o levantar o
respeito de si próprio à altura de uma força inexpugnável, e o desprezo pelos
outros à categoria dum lema governativo, iniludível, o todo involucrado em tais
formulas d'afectuosidade e deferência, que mesmo nas suas crises violentas de
carácter, jamais alguém viu um tic
que atraiçoar pudesse os exteriores da mais correcta impersonalidade. Poucos
monarcas haverão seguido mais ao rigor as praxesconstitucionais, que fazem do rei um ídolo de barro, omnipotente e inútil,
sagrado e subalterno, investido de poderes platónicos, quase sem
responsabilidade nem exercício, assinando de cruz, discursando d'ouvido, e
fazendo por toda a parte a caricatura dum Deus contemporâneo, dum Deus de Roma,
que fala aos pecadores pela boca dos seus padres, e nem sequer é responsável
pelas calamidades que eles acarretam.
Sabendo
o preço de todos aqueles que o cercavam, e adivinhando pelos sarilhos
jornalísticos ou parlamentares dos que ainda vinham de longe, aproximadamente o
que esses lhe viriam a custar, era exímio em receber-lhes os botes impassível,
té ao momento em que o inimigo se lhe tornasse perigoso ou necessário, e
urgisse, para montá-lo manso, cingir-lhe ao dorso uma vistosa albarda de
ministro. Das três geringonças políticas sobre que assenta a constituição do
Estado, a representação popular, a coroa e a câmara alta, todas ele pesou na
sua clara sagacidade d'alentejano e d'alemão, loiro e sabido.
Posto
o seu conhecimento da subserviência e da torpeza dos homens, posto o inabalável
conceito em que se tinha, a sua conduta de rei salta de chofre: fazer das duas
câmaras rodados para o trono, atrelar-lhe os ministros como bridões esparvonados,
e guiar ele mesmo o carro sozinho, mas sans
en avoir l'air, e conservando aos cavalos a ilusão de serem eles os
cocheiros.
Segunda-feira
21 d'Outubro, pelas 10 horas da noite, foi o cadáver do rei trazido da alcova
mortuária de Cascais para o grande coche que devia arrastá-lo até aos
Jerónimos. Estava uma noite escura e tormentosa, com ventania e chuviscos; por
forma que a abalada da cidadela, à luz dos brandões e dos archotes, foi uma
destas grandes pinturas a dois tons, negro e vermelho, magníficas para gravar
no espírito a nota fúnebre, e para trazer a emotividade pública à suasão óptica
duma espécie de catástrofe irreparável. Saído da câmara ardente, o cortejo
desceu as escadas que vêm da bateria ao pátio da cidadela, desenrolando-se
lentamente, em silhouettestenebrosas, sobre o fundo da muralha lambida pelo sanguino de chama dos
luzeiros.
Vinha
adiante um monte de figuras, que me disseram ser os guarda-roupas, os moços de
câmara, particulares e reposteiros, com brandões que derretiam de lado, ao revolutear
dos fogachos torcidos pelas inquietações da ventania; e logo após o grande
vulto da tumba coberta de veludo roçagante, e trazida em padiola por archeiros
fardados de vermelho e d'amarelo. Aquele enorme caixão vinha sem pressa, e d'onde
eu estava, parecia que alguém por detrás se lhe tinha agarrado à cabeceira, como
quem se abraça, desesperado, a uma jangada que vem de rustilhão, por uma cheia.
Era a rainha.
Grande
e de negro, com uma cauda de lástima e um grande véu de musa de tragédia, essa
mulher tinha no porte a formidável rigidez com que a dor cadaveriza o orgulho
humano, e esse prestígio hierárquico, amplíssimo, grandioso, que mesmo aos cépticos
se impõe como um retoque de Deus, sagrando as castas predestinadas a
eternamente intervir nos destinos dos homens e das nações. Ao lado o infante, o
filho amado, o querido Sabóia, o mais que todo real e galhardo gentil-homem da
família, esse de roda a cuja impetuosa mocidade, franqueza rude e limpidez
serena de carácter, todas as simpatias acordam, como em presença duma figura
deserdada por engano cronológico, da forma política de ser rei... E vêm depois
ministros, açafatas, padres, gentis-homens; aquilo tudo espalha-se com atitudes
fantasmáticas no pátio, num circuito piedoso que é todo um drama de tinta da China
e vermelhão, à luz das tochas, quando devagar um coche avança, os padres se
achegam murmurando as encomendações do ritual, e o ataúde entra por fim dentro
do carro, no meio da estrupida da cavalaria que se põe a caminho, pela estrada
de Lisboa, da soturnidade da noite que amadorna as alturas, da impaciência do
vento que faz bruxulear as chamas dos tocheiros, e da melancolia do oceano, fosforescente,
ali perto, a cantochar o salmo das grandes agonias apaziguadas enfim no seio da
morte!» In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser
Assassinado, Assírio Alvim, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.
Cortesia
de Assírio Alvim/JDACT