Declaração
«(…) Nos últimos anos de vida da minha mãe, ela fazia parte do Conselho
de Mulheres da nossa região e portanto viajava uma vez por ano para a feira
de Tailltenn. Nesses tempos, havia um Conselho de Mulheres e um Conselho
de Homens nos quais eram discutidas as preocupações e segredos das túaths
respectivas. Eu só fui com ela duas vezes, antes de os vermes a terem
adoentado. Nesses anos, eu era ainda muito nova para assistir ao Conselho e
então esperava por ela debaixo da árvore dos druidas. No primeiro ano, a minha mãe
começou a treinar-me para ser um membro do Conselho. Quando íamos a pé para
casa e passávamos a noite numa albergaria pública, situada no cruzamento onde a
estrada do leste se cruza com a do norte, ela fazia-me olhar nos seus olhos.
Ela lembrava-me então que os nossos olhos provinham do mesmo poço, de um verde
profundo como o do azevinho. Ela falou-me das palavras que as mulheres diziam
no início das suas reuniões e a ordem pela qual elas podiam falar. Durante
longos períodos do nosso regresso a casa, pela estrada do norte, ela não dizia
nada, nem sequer contava uma história. Os olhos, o nariz e a boca dela pareciam
juntar-se mais, numa concentração solene. Às vezes uma risada saía dela, como
um pássaro que repentinamente voa de um galho. O galho mexia-se mas estava
vazio e eu sentia, então, que morreria de fome se a minha mãe não me alimentasse
com as suas palavras.
No segundo ano em que a minha mãe me levou à feira de Tailltenn,
ela tinha-se tornado selvagem com o cansaço e com a resolução de viver, pelo
menos uma parte da sua vida, sem preocupações. Quando ela estava longe do meu
pai, que a prendia com os medos dele, ela tornava-se selvagem, como um lobo que
foi domesticado somente no pêlo mas não na carne. Ela até uivou uma vez,
atirando o seu cabelo para trás e erguendo a cara a um céu sem lua, enquanto eu
a olhava toda arrepiada. Na albergaria pública, ela juntava-se aos homens para
praticar actividades irreverentes, como quando bebia mead fornecido pelo tá
náise. Ela ria-se bem das sátiras cantadas pelos druidas, velhas
sátiras sobre homens mortos e sem herdeiros, que não eram perigosas de se
ouvir. Ela apertava-me contra ela quando íamos para o canto dormir e
segredava-me ao ouvido que as pessoas precisavam de ervas e histórias, e às
vezes de cerveja, para vencerem a sua dor. Comecei a ver que a dor e o desejo
de conhecimento começaram a tomar lugar nas histórias que me contava. Cedo
aprendi que ninguém, nem o chefe mais adorado, está livre dos vermes, de
armadilhas traiçoeiras, de animais ferozes ou do peso da mágoa. Os seres
humanos mais livres que observei foram os aesdána que iam à feira de Tailltenn
e que podiam viajar de túath em túath sem recearem ser
atacados ou expulsos. Eles não estavam obrigados a qualquer lealdade. Transcendiam
as afiliações políticas e matrimoniais e viam o corte da cabeça na mandíbula de
um guerreiro não como uma glória tribal, mas como parte de um mistério eterno,
muito maior que a reputação de uma única túath. Dizia-se que os druidas eram
capazes de parar a guerra com um nevoeiro negro e de transformar um rei em tolo
com as suas sátiras, palavras tão poderosas que são ainda mais cortantes do que
as espadas.
Os poemas e as histórias dos druidas remontam a tempos anteriores aos
dos antepassados de qualquer um. Eles sabiam histórias e geografias, rituais e
profecias tão grandiosas que faziam a vida de um homem mortal parecer uma pequena
pena, deixada cair por um pássaro a dormir com a sua cabeça enfiada na asa. O
poder do druida era o conhecimento e o conhecimento vinha em palavras. Comecei,
então, a desejar o poder dos druidas. Porque se alguém não tem conhecimento
sobre o que fazer ou pensar, outro dir-lhe-á o que fazer ou pensar. O meu maior
desafio é conseguir obedecer ao que os outros me dizem, que Deus me perdoe. Os
dedos da minha mãe a segurar as ervas, sujas pela terra preta donde as
desenterrou, e a sua boca alegre, enrolando-se num dos lados, são retratos da
liberdade pagã que eu não consigo purgar nem deixar de amar». In
Kate Horsley, Confessions of a Pagan Nun, Confissões de Uma Freira Pagã, Romance
Histórico, Ésquilo, Lisboa, 2002, ISBN 972-8605-18-8.
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