Onde se escreve paz
Convoca as bordadeiras, os tecelões
e os ourives
e diz-lhes que não haverá mais
bodas
até que volte a pronunciar-se de
novo a palavra paz
nos mercados, nas veredas, nas
alcovas, nos portais.
Ainda ontem uma mãe sepultou dois
filhos
no lugar onde antes era luminosa a
flor do riso,
a corola branca dos amores sem
mácula.
Depois todos se calaram e vieram as
lágrimas,
as súplicas, as unhas cravadas na
carne ferida.
E foi a raiva, e foi a dor sem
nome, a miséria da alma.
É assim a guerra, disseram. E mais
não souberam dizer.
E foram os pais despedir-se dos
filhos na neblina dos cais.
Quando se voltava era sempre com um
pedaço de vida
a menos, com uma cratera aberta no
lugar da voz,
com uma chaga viva no vazio do
coração.
Depois vieram os cães e as aves
soturnas e negras,
as larvas, os ossos crucificados
nos ramos ardidos,
os nomes dos filhos, dos pais, dos
irmãos
gravados na pedra exausta de tanta
morte.
Sempre foi e será assim a guerra,
sentenciavam.
Mas havia meninos que ganhavam asas
sobre os escombros
e levitavam como palavras do
princípio de tudo
sobre os campos das batalhas que
nunca ninguém venceu.
E vieram com eles as borboletas, os
duendes e os adivinhos
e desenharam na terra o rosto
imaculado da paz
e na areia fina o mapa das viagens
em direcção à luz.
E com eles regressaram as
bordadeiras, os tecelões e os ourives,
e as casas voltaram a ter o odor
dos frutos e da alfazema,
o rumor cantante das fontes e das
núpcias.
E foi assim a paz, laboriosa como
uma mãe altiva.
Ainda ontem uma mãe assim deu à luz
dois filhos
com os nomes dos que outra mãe um
dia ali sepultara.
E foi assim a paz, como um rio
lavando o ventre da terra.
Agora podes adormecer tranquila,
mãe, porque os canhões
encheram a boca de vento e morreram
sufocados
como carrascos cegos pelo lume do
remorso
e deixaram que deles se soltasse
uma música antiga,
capaz de fazer das espadas dos
heróis
as guitarras que adoçam a alma
eterna e livre das manhãs.
Para que tu, liberdade
Cresci a sonhar contigo, tu sabes,
com a pressa ansiosa dos amantes,
todo os dias, sem descanso ou
desalento,
imginando a claridade do teu olhar
sereno,
o rumor da tua voz marinha,
o embalo de onda do teu sono de
menina.
Um dia chegaste e ergueste a tua
casa
na mansa vizinhança dos meus
sonhos,
paredes meias com o esplendor dos
cravos.
Partilhei contigo o alpendre das
estrelas
onde os meus filhos brincaram e
cresceram,
onde eu brinquei com os búzios e as
sombras
e te prometi fidelidade eterna,
como no fogo das paixões maiores.
Ambos envelhecemos desde então,
dorso arqueado pelo peso
do mais amargo desencanto,
sem renunciarmos à felicidade
que um dia prometemos um ao outro.
Fomos nós que envelhecemos
ou foi a alegria que se exilou do
nosso olhar ?
Foi Abril que perdeu o fulgor
primordial
ou fomos nós que deixámos de o
merecer,
luz fugidia a escapar por entre os
dedos ?
Amanhã acordarás numa cama de
pétalas,
imitando a límpida música das
fontes,
e eu estarei contigo, como quem
renasce,
para que tu, Liberdade, não morras
nunca
de tristeza ou abandono nos meus
sonhos.
Poemas de José Jorge Letria (Janeiro
de 2004, 2007)
Para todos!
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