Filosofia e espiritualidade em S. António de Lisboa
«(…) A espiritualidade franciscana permanecerá muito permeável, na
forma como viveu a sua vertente de interioridade, ao concreto, à natuteza, à
relação humana e ao movimento histórico da sociedade. Possivelmente,
circunstâncias históricas terão contribuído para esta atitude, embora seja
exagerado afirmar um exclusivismo causalista a este respeito. Referimo-nos ao surto
citadino que se vinha afirmando desde o século XII, desgastando o isolamento
feudal, facilitando a mobilidade das pessoas e dos bens. As ordens mendicantes,
entre as quais se destaca a Ordem Franciscana, acentuaram de forma muito clara,
como sublinhou o padre Cerqueira Gonçalves, a desestruturação da ideia de stabilitas
loci que enformara até então a vida monástica, nomeadamente entre os
beneditinos. Obviamente que se não desvaloriza a interioridade, bem pelo
contrário, ela acentua a ideia de dependência do homem em relação aos outros
homens e, por essa via, a abertura solidária ao conjunto da criação. Parece-nos
modelar, a este respeito, o texto em que o santo reflecte sobre esse
traço muito peculiar da espiritualidade fransciscana, eminentemente prática e
vivencial, sublinhando a relação entre a vida activa e a vida contemplativa ao
dizer: A mão, portanto, representa o
trabalho, que devemos estender à utilidade do próximo e dividir em muitas
partes, conforme as necessidades. Usa de uma só parte quando apenas se dedica a
Deus; duas, quando ministra ao próximo alimento de alma e corpo. Não se
afirma aí uma vertente utilitarista mas antes uma consciência de solidariedade
e de fraternidade, numa clara tolerância e, mesmo, valorização da circunstância
terrena da existência humana, bem como da dimensão corporal do homem, a par da
sua dimensão espiritual e anímica.
Cabe aqui, entre outras, a consideração do homem como um microcosmo,
reabilitação de um tema já presente na patrística grega, mas que veremos renascer
no século XII, nomeadamente em Santo António. Vinca-se, por esta via, a plena
assunção da realidade corpórea, fora de uma concepção próxima do dualismo que
vingará em determinados momentos de afirmação do neoplatonismo medieval. Sobre
a importância desta concepção escreveu Chenu que se verifica então la prise de conscience, dans ces hommes du
XII siècle, qu'ils avaient affaire à une réalité exterieur, présente,
intelligible, efficace, comme a une partennaire. Abertura à plenitude
corpórea e anímica da natureza humana, abertura à natureza entendida como conjunto
das coisas criadas, num movimento solidário e concomitante, eis um dos traços
mais vincados da espiritualidade antoniana. A valorização do trabalho, expressa
no texto antoniano, é tanto a valorização do homo faber como,
igualmente, o reconhecimento da necessidade do alimento do corpo, situação que permite distinguir o ideal de
pobreza, defendido pelo franciscanismo, da miséria propriamente dita.
A pobreza liberta e eleva o
homem, a miséria expõe-no à ruína e à malícia; a pobreza é, para Santo António,
a maior de todas as virtudes, a miséria é contrária à virtude porque ofende a
dignidade do homem. Noutra passagem muito significativa dos seus
sermões, entende Santo António que é
normal que todos os homens, mas sobretudo os filhos deste século, desejem a
tranquilidade da paz, a saúde do corpo, a clemência do clima e outras coisas
que respeitam ao uso e necessidade desta vida. A circunstãncia terrena do
homem, corpo e alma, assume-se aqui de forma plena, e dai o reconhecimento de
que é normal ou, se preferirmos, natural que o homem se preocupe com os
bens temporais que respeitam aos seus usos e necessidades. A privação social e
involuntária do que é necessário ao alimento do corpo é contrária a assunção da
dignidade humana. Tudo dependerá, em última análise, do uso e finalidade que se
dá aos bens materiais, pois estes não constituem um fim para que o homem
oriente em exclusivo a sua acção, possuem apenas uma imporÍància prática e daí
o conselho de moderação e de justa adequação: Aqueles que de coração puro pedem estes benefícios temporais, só os
peçam na medida em que são necessários. Já a obstinação pela busca da
riqueza e a concentração excessiva dos bens terrenos lhe aparece como uma fonte
de abuso e de prazeres maus.
Lembremo-nos que um dos princípios que orientará, desde sempre, a perspectiva
do cristianismo a respeito da apropriação da natureza pelo homem vem expressa
na frase de S. Paulo: Tudo é vosso;
mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. Aí se expressa de algum modo
a ideia de um finalismo utilitário das criaturas, que não passa necessariamente
pela instrumentalização da natureza, pois esta possui uma dignidade própria, de
ordem ontológica, dado que todas as criaturas reflectem e manifestam, em graus
diferentes, as perfeições de Deus. Daí que essa mesma apropriação se faça não obstinadamente,
mas tendo sempre em vista a eminêncía da finalidade transcendente do homem. Por
outro lado, verifica-se que para muitos autores medievais a repartição
dos domínios ou, se preferirmos, as relações de propriedade são inferiores à posse comum, constituindo aquelas uma necessidade
adveniente do pecado e do estado de natureza humana decaída. Por esta razão, as
críticas de Santo António à acumulação da riqueza e sobretudo à usura, que
considerava o pior de todos os males provenientes da corrupção da actividade
económica, como o era a simonia no desempenho do ofício dos eclesiásticos,
são bastante frequentes, sobretudo no que concerne à riqueza da Igreja, crítica
que veremos mais tarde continuada em termos não menos incisivos por outro
franciscano do século XIII, o bispo de Silves, frei Álvaro Pais». In
Pedro Calafate, Metamorfoses da Palavra, Estudos sobre o pensamento português e
brasileiro, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998.
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