quinta-feira, 17 de abril de 2014

Metamorfoses da Palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro. Pedro Calafate. «… as críticas de Santo António à acumulação da riqueza e sobretudo à usura, que considerava o pior de todos os males provenientes ‘da corrupção da actividade económica’, como o era a simonia no desempenho do ofício dos…»

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Filosofia e espiritualidade em S. António de Lisboa
«(…) A espiritualidade franciscana permanecerá muito permeável, na forma como viveu a sua vertente de interioridade, ao concreto, à natuteza, à relação humana e ao movimento histórico da sociedade. Possivelmente, circunstâncias históricas terão contribuído para esta atitude, embora seja exagerado afirmar um exclusivismo causalista a este respeito. Referimo-nos ao surto citadino que se vinha afirmando desde o século XII, desgastando o isolamento feudal, facilitando a mobilidade das pessoas e dos bens. As ordens mendicantes, entre as quais se destaca a Ordem Franciscana, acentuaram de forma muito clara, como sublinhou o padre Cerqueira Gonçalves, a desestruturação da ideia de stabilitas loci que enformara até então a vida monástica, nomeadamente entre os beneditinos. Obviamente que se não desvaloriza a interioridade, bem pelo contrário, ela acentua a ideia de dependência do homem em relação aos outros homens e, por essa via, a abertura solidária ao conjunto da criação. Parece-nos modelar, a este respeito, o texto em que o santo reflecte sobre esse traço muito peculiar da espiritualidade fransciscana, eminentemente prática e vivencial, sublinhando a relação entre a vida activa e a vida contemplativa ao dizer: A mão, portanto, representa o trabalho, que devemos estender à utilidade do próximo e dividir em muitas partes, conforme as necessidades. Usa de uma só parte quando apenas se dedica a Deus; duas, quando ministra ao próximo alimento de alma e corpo. Não se afirma aí uma vertente utilitarista mas antes uma consciência de solidariedade e de fraternidade, numa clara tolerância e, mesmo, valorização da circunstância terrena da existência humana, bem como da dimensão corporal do homem, a par da sua dimensão espiritual e anímica.
Cabe aqui, entre outras, a consideração do homem como um microcosmo, reabilitação de um tema já presente na patrística grega, mas que veremos renascer no século XII, nomeadamente em Santo António. Vinca-se, por esta via, a plena assunção da realidade corpórea, fora de uma concepção próxima do dualismo que vingará em determinados momentos de afirmação do neoplatonismo medieval. Sobre a importância desta concepção escreveu Chenu que se verifica então la prise de conscience, dans ces hommes du XII siècle, qu'ils avaient affaire à une réalité exterieur, présente, intelligible, efficace, comme a une partennaire. Abertura à plenitude corpórea e anímica da natureza humana, abertura à natureza entendida como conjunto das coisas criadas, num movimento solidário e concomitante, eis um dos traços mais vincados da espiritualidade antoniana. A valorização do trabalho, expressa no texto antoniano, é tanto a valorização do homo faber como, igualmente, o reconhecimento da necessidade do alimento do corpo, situação que permite distinguir o ideal de pobreza, defendido pelo franciscanismo, da miséria propriamente dita.
A pobreza liberta e eleva o homem, a miséria expõe-no à ruína e à malícia; a pobreza é, para Santo António, a maior de todas as virtudes, a miséria é contrária à virtude porque ofende a dignidade do homem. Noutra passagem muito significativa dos seus sermões, entende Santo António que é normal que todos os homens, mas sobretudo os filhos deste século, desejem a tranquilidade da paz, a saúde do corpo, a clemência do clima e outras coisas que respeitam ao uso e necessidade desta vida. A circunstãncia terrena do homem, corpo e alma, assume-se aqui de forma plena, e dai o reconhecimento de que é normal ou, se preferirmos, natural que o homem se preocupe com os bens temporais que respeitam aos seus usos e necessidades. A privação social e involuntária do que é necessário ao alimento do corpo é contrária a assunção da dignidade humana. Tudo dependerá, em última análise, do uso e finalidade que se dá aos bens materiais, pois estes não constituem um fim para que o homem oriente em exclusivo a sua acção, possuem apenas uma imporÍància prática e daí o conselho de moderação e de justa adequação: Aqueles que de coração puro pedem estes benefícios temporais, só os peçam na medida em que são necessários. Já a obstinação pela busca da riqueza e a concentração excessiva dos bens terrenos lhe aparece como uma fonte de abuso e de prazeres maus.
Lembremo-nos que um dos princípios que orientará, desde sempre, a perspectiva do cristianismo a respeito da apropriação da natureza pelo homem vem expressa na frase de S. Paulo: Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. Aí se expressa de algum modo a ideia de um finalismo utilitário das criaturas, que não passa necessariamente pela instrumentalização da natureza, pois esta possui uma dignidade própria, de ordem ontológica, dado que todas as criaturas reflectem e manifestam, em graus diferentes, as perfeições de Deus. Daí que essa mesma apropriação se faça não obstinadamente, mas tendo sempre em vista a eminêncía da finalidade transcendente do homem. Por outro lado, verifica-se que para muitos autores medievais a repartição dos domínios ou, se preferirmos, as relações de propriedade são inferiores à posse comum, constituindo aquelas uma necessidade adveniente do pecado e do estado de natureza humana decaída. Por esta razão, as críticas de Santo António à acumulação da riqueza e sobretudo à usura, que considerava o pior de todos os males provenientes da corrupção da actividade económica, como o era a simonia no desempenho do ofício dos eclesiásticos, são bastante frequentes, sobretudo no que concerne à riqueza da Igreja, crítica que veremos mais tarde continuada em termos não menos incisivos por outro franciscano do século XIII, o bispo de Silves, frei Álvaro Pais». In Pedro Calafate, Metamorfoses da Palavra, Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Temas Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1998.

Cortesia da INCM/JDACT