Falcões. Wiltshire, Setembro de 1535
«(…) Ele olha para Jane Seymour, como o pai dela indica.
Conhece-a bem da corte, dado que ela era dama de companhia de Catarina, a
anterior rainha, e de Anne, a que é rainha agora; é uma rapariga recatada com
uma palidez de prata, o hábito do silêncio e uma maneira peculiar de olhar para
os homens como se representassem uma surpresa desagradável. Está a usar pérolas
e um vestido de brocado branco bordado com raminhos de cravos muito tesos. Ele
reconhece uma despesa considerável sem contar com as pérolas, ninguém se
apresenta assim por muito menos de trinta libras. Não admira que se mexa com
uma preocupação cautelosa, como uma criança a quem foi recomendado que não
entorne nada em cima de si. - Jane, agora que te encontramos em casa com a tua
gente, estais menos tímida?, pergunta o rei, tomando-lhe a mão pequenina na sua
ampla mão. - Na corte nunca lhe ouvimos uma palavra. Jane levanta os olhos para
ele, corando do pescoço à raiz dos cabelos. – Alguma vez viram um rubor assim?, pergunta Henry. - Nunca, só
numa miúda de doze anos. - Não posso pretender ter doze anos - diz Jane.
À ceia, o rei senta-se ao lado de Lady Margery, a anfitriã. No seu tempo,
foi uma beldade e, pela requintada atenção do rei, pensar-se-ia que ainda o é
agora; teve dez filhos e seis deles ainda são vivos e três estão nesta sala.
Edward Seymour, o herdeiro, tem uma cabeça comprida, uma expressão séria, um
fero perfil bem definido: um belo homem. Tem instrução, embora não seja um
estudioso, aplica-se com sabedoria em qualquer cargo que lhe seja atribuído;
esteve na guerra e, enquanto espera por tornar a combater, desempenha bem o seu
papel na caça e nos torneios. O cardeal, no seu tempo, marcara-o como acima do
normal na linhagem dos Seymour; e ele próprio, Thomas Cromwell, sondou-o e
achou-o um homem do rei em todos os aspectos. Tom Seymour, o irmão mais novo de
Edward, é ruidoso e turbulento e de mais interesse para as mulheres; quando
entra numa sala há risinhos nas virgens e as jovens matronas baixam as cabeças
e examinam-no por debaixo das pestanas. O velho Sir John é um homem com um
espírito de família duvidoso. Dois, três anos antes, só se falava na corte de
como tinha montado a mulher do filho, não uma vez no calor da paixão mas repetidamente,
desde que era noiva. A rainha e as suas confidentes tinham espalhado a história
pela corte. Calculámos que umas 120 vezes, tinha dito Anne num frouxo de
riso. Bem, quem calculou foi Thomas Cromwell e ele tem boa cabeça para os
números. Supomos que se abstiveram um domingo em nome do pudor e abrandaram na
Páscoa.
A mulher traidora deu à luz dois rapazes e, quando a conduta dela veio
a lume, Edward declarou que não os aceitaria como seus herdeiros visto não
poder ter a certeza se eram seus filhos ou seus meios-irmãos. A adúltera foi
fechada num convento e depressa lhe fez o favor de morrer; tem agora uma nova mulher,
que cultiva uns modos altaneiros e traz no bolso um estilete para o caso de o
sogro se chegar perto de mais. Mas está perdoado, está perdoado. A carne é frágil.
Esta visita real sela o perdão do velho. John Seymour possui 525 hectares, incluindo
o seu parque de veados, a maior parte do resto para ovelhas e valendo dois
xelins por hectare por ano, proporcionando-lhe um rendimento de uns vinte e
cinco por cento apenas do que a mesma área lhe daria sob o arado. As ovelhas
são animais de focinho escuro cruzados com casta galesa da montanha, má carne
mas lã bastante boa. Quando, à chegada, o rei (na sua veia bucólica)
pergunta: - Cromwell, quanto pesará aquele animal? - Onze quilos, Senhor -
responde ele, sem o sopesar. - O senhor Cromwell já foi tosquiador. Não deve
estar enganado, comenta Francis Weston, um jovem cortesão, com ar trocista.
- Aqui em Wolf Hall somos todos grandes caçadores, gaba-se Sir John,
incluindo as minhas filhas, Jane parece-vos tímida mas é pô-la em cima de um
cavalo e garanto-vos, senhores, que é a deusa Diana em pessoa. Nunca incomodei
as minhas raparigas com aulas, sabem. Aqui Sir James ensinou-lhes
tudo o que precisavam. O padre ao fundo da mesa assente, satisfeito: um
velho parvo com cabelos brancos, olhos turvos. Não é incomum que as filhas
de uma família da cidade aprendam as suas letras e um pouco mais além disso,
diz Edward Seymour. Podíeis tê-las querido num escritório de contabilidade. Já
se ouviu falar. Ajudava-as a arranjar bons maridos, uma família de mercadores
apreciaria essa preparação. - Imaginem as filhas do senhor Cromwell, diz
Weston. – Eu nem me atrevo. Duvido que um escritório de contabilidade as
pudesse conter. É de calcular que teriam uma mão certa para o machado. Bastaria
deitar-lhes um olhar para qualquer homem sentir o chão fugir-lhe debaixo dos
pés. E não quero dizer com isto que fossem fulminados pelo amor.
Portanto já vedes, diz Jane aos irmãos, nós, senhoras, não passamos o
nosso tempo em calúnias e escândalos vãos. Embora Deus saiba que temos
mexericos que chegavam para uma cidade inteira de mulheres. - Ah tendes?, diz ele. Falamos
sobre quem está apaixonado pela rainha. Quem lhe escreve versos. - Baixa os olhos. - Quero dizer,
quem está apaixonado por todas nós. Este ou aquele fidalgo. Conhecemos todos os
nossos pretendentes e fazemos o seu inventário dos pés à cabeça, corariam se
soubessem. Dizemos que terras têm e quanto recebem por ano e depois decidimos
se os deixaremos escrever-nos um soneto. Se pensamos que não nos podem manter
em grande estilo desdenharemos das suas rimas. É cruel, já vos digo. Ele diz,
com certo desconforto, que não há mal em escrever versos a senhoras, mesmo às
casadas, na corte é habitual». In Hilary Mantel, Bring Up the Bodies, 2012,
O Livro Negro, Civilização Editora, Porto, 2013, ISBN 978-972-26-3594-3.
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