«(…) A imitação ocidental é trágica, por ser um mal-entendido
que ignora a psicologia do Oriente. É tão estéril como as escapulidas modernas
para o Novo México, para as ilhas beatíficas dos Mares do Sul, ou para a África
Central onde o homem culto pode brincar de ser primitivo, a fim de fugir disfarçadamente das suas tarefas
imediatas. Não se trata de macaquear o que é visceralmente estranho a nós, ou
de imitar o missionário, mas de edificar a cultura ocidental que sofre de mil
males; isto deve ser feito, no entanto, no lugar adequado, em busca do
autêntico europeu, em sua trivialidade ocidental, com seus problemas
matrimoniais, suas neuroses, suas ilusões político-sociais e enfim com a sua
total desorientação diante do mundo. Seria melhor confessar que não
compreendemos este texto esotérico, ou então que não queremos compreendê-lo.
Acaso não pressentimos que uma tal colocação anímica, que permite olhar fundo e
para dentro, desprendendo-se do mundo, só é possível porque esses homens satisfizeram
de tal modo as exigências instintivas de sua natureza, que pouco ou nada mais
os impede de ver a essência invisível do mundo? E acaso a condição de
possibilidade da libertação desses apetites, dessas ambições e paixões que nos
detêm no visível, não reside justamente na satisfação plena de sentido das
exigências instintivas, em lugar de uma repressão prematura determinada pela
angústia? E não se liberta o olhar para o espiritual quando a lei da terra
tiver sido obedecida? Quem conhecer a história dos costumes chineses ou então o
I Ging
através de um estudo minucioso saberá que esse livro sapiencial impregnou o
pensamento chinês há milhares de anos. Alguém assim preparado não deixará de
lado tais questões. E compreenderá também que as ideias do nosso texto não
representam algo de extraordinário para a mentalidade chinesa, mas são
conclusões psicológicas inevitáveis. Nos primeiros tempos da cultura cristã a
que pertencemos, o espírito e a paixão do espírito eram pura e simplesmente os
valores positivos pelos quais valia a pena lutar. Só no ocaso do medievalismo,
isto é, no decorrer do século XIX, quando o espírito começou a degenerar em
intelecto, surgiu uma reação contra o predomínio insuportável do
intelectualismo; cometeu-se então, o que é perdoável, o erro de confundir
intelecto e espírito. Este último foi então acusado pelos delitos do primeiro.
Na realidade, o intelecto apenas prejudica a alma quando pretende usurpar a
herança do espírito, para o que não está capacitado de forma alguma. O espírito
representa algo de mais elevado do que o intelecto, abarcando não só este
último como os estados afectivos. Ele é uma direcção e um princípio de vida que
aspiram às alturas luminosas e sobre-humanas. A ele se opõe o feminino,
obscuro, telúrico (Yin), com a sua
emocionalidade e instintividade que mergulham nas profundezas do tempo e nas
raízes do continuum corporal. Tais
conceitos representam, sem dúvida alguma, concepções puramente intuitivas, mas
indispensáveis se quisermos compreender a essência da alma. A China não pode
prescindir dessas concepções, pois tal como demonstra a história de sua
Filosofia, nunca se afastou dos factos centrais da alma a ponto de perder-se no
engano de uma supervalorização e desenvolvimento unilaterais de uma função psíquica
isolada. Por isso mesmo nunca deixou de reconhecer o paradoxo e a polaridade de
tudo o que vive. Os opostos sempre se equilibram na mesma balança, sinal de
alta cultura. Ainda que represente uma força propulsora, a unilateralidade é um
sinal de barbárie. A reacção que se iniciou no Ocidente contra o intelecto e a
favor do eros ou da intuição constitui, na minha opinião, um sintoma de
progresso cultural e um alargamento da consciência além dos estreitos limites
de um intelecto tirânico.
Longe de mim a intenção de menosprezar a enorme diferenciação
do intelecto ocidental. Comparado a ele, pode-se dizer que o intelecto oriental
é infantil (sem que isto tenha algo a ver com inteligência!). Se conseguíssemos
elevar outra função, isto é, uma terceira função anímica à dignidade que, entre
nós, se atribui ao intelecto, o Ocidente poderia ter a esperança de ultrapassar
consideravelmente o Oriente. É lamentável, portanto, que o europeu se renegue a
si mesmo para imitar o oriental, afectando aquilo que não é. As suas
possibilidades seriam muito maiores se permanecesse fiel a si mesmo e se
desenvolvesse a partir de sua essência tudo o que o Oriente deu à luz no
decurso de milênios. Em geral, sob o ponto de vista irremediavelmente exterior
do intelecto, é como se ignorássemos o valor daquilo que o Oriente tanto
aprecia. O puro intelecto não apreende a importância prática que as ideias
orientais têm para nós, motivo pelo qual pretende classificá-las como
curiosidades filosóficas e etnológicas. Tal incompreensão vai tão longe que os
próprios sinólogos ignoram o uso prático do I
Ging, considerando este livro uma simples colectânea de fórmulas mágicas e
abstrusas». In C. G. Jung e R. W. Wilhelm, O Segredo da Flor do Ouro, Um Livro de
Vida Chinês, Editora Vozes, tradução de Dora Silva e Maria Appy, 2011, ISBN 978-853-260-382-1.
Cortesia
de EVozes/JDACT