quinta-feira, 30 de abril de 2015

O Segredo da Flor do Ouro. Jung e Wilhelm. «Seria melhor confessar que não compreendemos este texto esotérico, ou então que não queremos compreendê-lo. Acaso não pressentimos que uma tal colocação anímica, que permite olhar fundo e para dentro»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A imitação ocidental é trágica, por ser um mal-entendido que ignora a psicologia do Oriente. É tão estéril como as escapulidas modernas para o Novo México, para as ilhas beatíficas dos Mares do Sul, ou para a África Central onde o homem culto pode brincar de ser primitivo, a fim de fugir disfarçadamente das suas tarefas imediatas. Não se trata de macaquear o que é visceralmente estranho a nós, ou de imitar o missionário, mas de edificar a cultura ocidental que sofre de mil males; isto deve ser feito, no entanto, no lugar adequado, em busca do autêntico europeu, em sua trivialidade ocidental, com seus problemas matrimoniais, suas neuroses, suas ilusões político-sociais e enfim com a sua total desorientação diante do mundo. Seria melhor confessar que não compreendemos este texto esotérico, ou então que não queremos compreendê-lo. Acaso não pressentimos que uma tal colocação anímica, que permite olhar fundo e para dentro, desprendendo-se do mundo, só é possível porque esses homens satisfizeram de tal modo as exigências instintivas de sua natureza, que pouco ou nada mais os impede de ver a essência invisível do mundo? E acaso a condição de possibilidade da libertação desses apetites, dessas ambições e paixões que nos detêm no visível, não reside justamente na satisfação plena de sentido das exigências instintivas, em lugar de uma repressão prematura determinada pela angústia? E não se liberta o olhar para o espiritual quando a lei da terra tiver sido obedecida? Quem conhecer a história dos costumes chineses ou então o I Ging através de um estudo minucioso saberá que esse livro sapiencial impregnou o pensamento chinês há milhares de anos. Alguém assim preparado não deixará de lado tais questões. E compreenderá também que as ideias do nosso texto não representam algo de extraordinário para a mentalidade chinesa, mas são conclusões psicológicas inevitáveis. Nos primeiros tempos da cultura cristã a que pertencemos, o espírito e a paixão do espírito eram pura e simplesmente os valores positivos pelos quais valia a pena lutar. Só no ocaso do medievalismo, isto é, no decorrer do século XIX, quando o espírito começou a degenerar em intelecto, surgiu uma reação contra o predomínio insuportável do intelectualismo; cometeu-se então, o que é perdoável, o erro de confundir intelecto e espírito. Este último foi então acusado pelos delitos do primeiro. Na realidade, o intelecto apenas prejudica a alma quando pretende usurpar a herança do espírito, para o que não está capacitado de forma alguma. O espírito representa algo de mais elevado do que o intelecto, abarcando não só este último como os estados afectivos. Ele é uma direcção e um princípio de vida que aspiram às alturas luminosas e sobre-humanas. A ele se opõe o feminino, obscuro, telúrico (Yin), com a sua emocionalidade e instintividade que mergulham nas profundezas do tempo e nas raízes do continuum corporal. Tais conceitos representam, sem dúvida alguma, concepções puramente intuitivas, mas indispensáveis se quisermos compreender a essência da alma. A China não pode prescindir dessas concepções, pois tal como demonstra a história de sua Filosofia, nunca se afastou dos factos centrais da alma a ponto de perder-se no engano de uma supervalorização e desenvolvimento unilaterais de uma função psíquica isolada. Por isso mesmo nunca deixou de reconhecer o paradoxo e a polaridade de tudo o que vive. Os opostos sempre se equilibram na mesma balança, sinal de alta cultura. Ainda que represente uma força propulsora, a unilateralidade é um sinal de barbárie. A reacção que se iniciou no Ocidente contra o intelecto e a favor do eros ou da intuição constitui, na minha opinião, um sintoma de progresso cultural e um alargamento da consciência além dos estreitos limites de um intelecto tirânico.
Longe de mim a intenção de menosprezar a enorme diferenciação do intelecto ocidental. Comparado a ele, pode-se dizer que o intelecto oriental é infantil (sem que isto tenha algo a ver com inteligência!). Se conseguíssemos elevar outra função, isto é, uma terceira função anímica à dignidade que, entre nós, se atribui ao intelecto, o Ocidente poderia ter a esperança de ultrapassar consideravelmente o Oriente. É lamentável, portanto, que o europeu se renegue a si mesmo para imitar o oriental, afectando aquilo que não é. As suas possibilidades seriam muito maiores se permanecesse fiel a si mesmo e se desenvolvesse a partir de sua essência tudo o que o Oriente deu à luz no decurso de milênios. Em geral, sob o ponto de vista irremediavelmente exterior do intelecto, é como se ignorássemos o valor daquilo que o Oriente tanto aprecia. O puro intelecto não apreende a importância prática que as ideias orientais têm para nós, motivo pelo qual pretende classificá-las como curiosidades filosóficas e etnológicas. Tal incompreensão vai tão longe que os próprios sinólogos ignoram o uso prático do I Ging, considerando este livro uma simples colectânea de fórmulas mágicas e abstrusas». In C. G. Jung e R. W. Wilhelm, O Segredo da Flor do Ouro, Um Livro de Vida Chinês, Editora Vozes, tradução de Dora Silva e Maria Appy, 2011, ISBN 978-853-260-382-1.

Cortesia de EVozes/JDACT

Flores na Tempestade. Laura Kinsale. «Tu encarregar-te-ás de escrever as equações no quadro, e eu estarei ali para responder às perguntas. Sempre que o amigo M o permitir, disse Maddy com amargura. Dirá que é extremamente irregular. Ninguém se vai importar. Tu encantas-nos com a tua presença todos os meses…»

jdact

«(…) O grito saiu abafado. Sutherland tinha o rosto tão inflamado, estava tão congestionado, que Christian pensou que iria rebentar e cair ao chão com uma apoplexia. Está bem, respondeu em voz baixa. Desceu as escadas e passou pelo outro homem com movimentos deliberadamente passivos e contidos. Sutherland podia sentir vontade de o matar, um direito que lhe assistia, mas Christian não tinha a mínima intenção de ser o causador da morte do homem no vestíbulo da própria casa. Além disso, precisava de respirar ar fresco. Sentia-se embriagado. Ao abrir a porta, continuou a sentir a mão direita desajeitada e adormecida. Fechou a porta atrás dele com a mão esquerda e tropeçou. Cambaleante, apoiou-se no corrimão de ferro da entrada. Estava Lua cheia e esta iluminava o manto de névoa que cobria o fundo da rua. Uma neblina azulada que contrastava com a escuridão das fachadas e que se erguia lentamente. Christian continuou agarrado ao corrimão, a olhar para a encosta. Não havia dúvida, passava-se qualquer coisa de errado. Sentia-se enjoado, atordoado e..., estranho. Uma ideia louca de que o tinham envenenado atravessou-lhe o pensamento.  Eydie? O chocolate. Eydie seria capaz de o envenenar? Por que motivo faria semelhante coisa? O coração batia-lhe acelerado. Engoliu em seco várias vezes numa tentativa para se acalmar, para pensar. Passado um bocado, soltou o corrimão. O ar fresco pareceu dar-lhe forças. Respirou fundo algumas vezes e recompôs-se. Junto à base da escada que dava acesso à casa vislumbrou um vulto negro. Olhou-o de lado e viu que se tratava do próprio chapéu. Desceu os degraus, passou ao lado do vulto e voltou a lembrar-se que era o seu chapéu. A carruagem esperava-o duas ruas mais abaixo. Olhou inseguro para o chapéu e prosseguiu. Não lhe ocorria nenhum motivo para que Eydie o envenenasse e isso incomodava-o bastante. Mas agora, ao andar, sentia-se melhor. As coisas voltavam ao lugar. Quando se aproximou da carruagem, o cocheiro desceu rapidamente da boleia e abriu-lhe a portinhola. Cass e Devil saíram imediatamente da carruagem e sacudiram as caudas peludas, eufóricos. Christian encostou-se a um dos lados da carruagem e deixou que os cães saltassem à vez para cima dele. Acariciou-lhes as orelhas com uma mão, chamou Devil para que voltasse e deixasse de cheirar os depósitos de carvão que se encontravam junto do passeio, e entrou para a carruagem. Cass deitou-se obediente aos pés de Christian, mas Devil introduziu o focinho às manchas pela luva e tentou sentar-se ao lado dele. Christian acariciou a cabeça do setter. Quando a carruagem começou a andar, ergueu a mão para tirar o chapéu e descobriu que não o tinha. Encostou a cabeça ao assento. Sutherland. Sutherland exigia-lhe uma reparação. Christian só queria dormir. Flectiu os dedos da mão direita para se livrar daquela sensação de peso, de adormecimento, que continuava a sentir. Sonolento, pensou que, por uma vez na vida, era-lhe conveniente ser canhoto porque se não o fosse ser-lhe-ia impossível empunhar uma pistola.
Ainda acho que é impossível. Sem dúvida que vou continuar a achá-lo. Como é possível que alguém como tu, pai, espere vir a receber a devida consideração de uma pessoa com a sua... Archimedea Timms interrompeu-se, à procura da palavra adequada, ... Com a sua posição? Terás a amabilidade de me servir uma chávena de chá, Maddy?, pediu-lhe o pai naquele tom de voz tão aprazível que não dava azo a que ninguém começasse uma discussão a sério. Para começar, é duque ,prosseguiu ela por cima do ombro enquanto atravessava a sala de jantar à procura de Geraldine, já que a campainha da sala não funcionava. O tempo que demorou a encontrar a criada, a certificar-se de que a água era posta a ferver, e voltar para o salão não foi suficiente para que esquecesse a sequência dos pensamentos. É impossível imaginar que um duque leve a sério assuntos desta natureza... Tens o quadrado junto da mão direita, pai..., já que ficou bem claro que durante a semana passada não preparou a sua integração. Não deverias impacientar-te, Maddy. Estas coisas têm que ser feitas com um enorme cuidado. Está a perder o seu tempo e eu admiro-o por isso. O pai procurou com os dedos o pedaço de madeira cortada com o formato do número dois e colocou-o no lugar correspondente para que fosse o expoente de S. Ele não está a perder tempo, gasta-o sem se importar. Sai continuamente e dedica-se aos prazeres mundanos. Não tem a mínima consideração nem pela tua reputação, nem pela sua.
O pai sorriu e olhou em frente, enquanto procurava o sinal de multiplicar e o juntava à sequência de letras e números de madeira que colocara sobre a toalha de baeta vermelha, os dedos a percorrer os blocos até os reconhecer pelo tacto. Tens a certeza absoluta desses prazeres mundanos, Maddy? Basta ler os jornais. Durante toda a Primavera não houve um único acontecimento social em que não tenha estado presente. E a apresentação do vosso tratado matemático conjunto na tarde do Terceiro Dia? Já percebi que terei de ser eu a cancelá-lo, porque ele nem me lembrará de o fazer. O presidente Milner ficará muitíssimo ofendido, e com toda a razão, porque quem substituirá Jervaulx no estrado? Tu encarregar-te-ás de escrever as equações no quadro, e eu estarei ali para responder às perguntas. Sempre que o amigo Milner o permitir, disse Maddy com amargura. Dirá que é extremamente irregular. Ninguém se vai importar. Tu encantas-nos com a tua presença todos os meses, Maddy. Foste sempre bem recebida. O próprio amigo Milner disse-me uma vez que o rosto de uma dama alegra enormemente os salões das reuniões. Mas é claro que assisto às reuniões. Como poderia deixar-te ir sozinho? Ergueu os olhos quando a criada entrou com o tabuleiro. Geraldine pousou o chá sobre a mesa, e Maddy serviu uma chávena ao pai, pegou-lhe na mão e conduziu-a gentilmente até ao pires e à asa. Tinha dedos pálidos e macios apesar de tantos anos de trabalhos em casa, e um rosto no qual, apesar da idade, ainda não se via rugas. Sempre o rodeara um ar de abstracção, mesmo antes de perder a vista. Que a verdade fosse dita, os hábitos quotidianos da sua vida mal se tinham alterado após a doença que, anos antes, o deixara cego. A única excepção é que agora se apoiava no braço de Maddy quando saía para dar o seu passeio diário ou quando assistia às reuniões mensais da Sociedade Analítica e usava as peças de madeira e os ditados para as questões matemáticas, em vez de escrever com a própria pena. Vais hoje a casa do duque para que te entregue os diferenciais?, perguntou. Maddy fez uma careta sem necessidade de a dissimular, já que Geraldine saíra da sala. Sim, pai, respondeu, e esforçou-se para que a voz não revelasse a humilhação que sentia. Voltarei a casa do duque». In Laura Kinsale, Flowers from the Storm, Flores na Tempestade, Editora Arqueiro, 2008, ISBN 978-989-626-121-4.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

A personagem do rei Pedro I. Na narrativa portuguesa do dealbar do século XXI. Pedro J. Rodrigues. «… segundo a qual ‘talvez’ Fernão Lopes já tivesse acesso a ‘uma lenda do rei justiceiro’, pelo que a imagem que aí colhemos do monarca estaria desde logo condicionada por um saber adquirido»

Cortesia de wikipedia e jdact

A figura do rei através dos documentos oficiais do seu reinado
«(…) Na opinião de Veríssimo Serrão, este aspecto liga-se a outros dois vectores significativos: à já referida itinerância e à defesa das populações que buscavam justiça ou protecção. São estas, afinal, as mais salientes marcas da imagem de dom Pedro, com reflexos evidentes no discurso historiográfico, desde as primeiras crónicas até aos estudos mais recentes.

A escrita historiográfica: aspectos históricos e traços ficcionais
Num trabalho recente, Cristina Pimenta diagnostica as dificuldades de apresentar uma imagem real de Pedro I, uma vez que as informações, quer cronísticas, quer documentais, disponíveis se encontram envoltas em cenários complexos; refere-se a autora ao facto de a Chancelaria de dom Pedro ter sido reduzida a um só livro, à circunstância de muitos documentos das Cortes se terem perdido e também ao facto de as duas crónicas mais antigas conhecidas terem sido elaboradas em circunstâncias pouco favoráveis à imparcialidade desejada. A primeira destas, da autoria de Fernão Lopes, centra-se sobre a figura de dom Pedro e foi comissionada ao cronista por dom Duarte, neto deste rei; parece-nos lógico que o autor se sentisse compelido à benevolência não só para com dom Pedro, mas também em relação ao seu descendente, dom João I, muito provavelmente ainda rei de Portugal na altura da produção escrita (faleceu apenas em 1433). A segunda destas obras aborda o reinado de dom Afonso IV, pelo que só indirectamente tratará de assuntos relacionados com dom Pedro. Ainda assim, a conduta do autor, Rui Pina, não está isenta de polémica, pois diz-se que terá baseado a sua obra numa crónica homónima do mesmo Fernão Lopes, escrita cerca de um século antes, e que entretanto se terá perdido. Quanto à mencionada crónica de Rui Pina, o registo é basicamente factual, centrando-se a sua importância na descrição de acontecimentos a que Fernão Lopes não faz referência, como a morte de Inês de Castro, ou de factos mais pormenorizados, como a enumeração dos descendentes do rei Pedro I. Pouco retiramos desta obra que nos possa revelar aspectos importantes sobre dom Pedro, dado tratar-se da crónica relativa ao reinado de dom Afonso; constituem excepção pormenores como o pedido do ainda infante Pedro ao seu pai para que não o obrigasse a casar contra sua vontade, o que demonstrará, desde logo, a personalidade forte e o carácter independente do infante.
No que se refere à crónica de Fernão Lopes, é inquestionável a sua importância, por se tratar da obra temporalmente mais próxima da época retratada, e também porque neste relato nos é apresentada uma imagem que perdurará nas crónicas posteriores, assim como em toda a produção literária que este tema gerou. Embora se aceite, geralmente, a visão do cronista, não será de afastar liminarmente a hipótese levantada por Cristina Pimenta, segundo a qual talvez Fernão Lopes já tivesse acesso a uma lenda do rei justiceiro, pelo que a imagem que aí colhemos do monarca estaria desde logo condicionada por um saber adquirido. Existe a possibilidade de tal ter acontecido, o que, somando-se às condicionantes já antes mencionadas, deixa antever eventuais divergências entre a realidade e este relato; é nossa opção, no entanto, considerar esta produção escrita o elemento mais próximo da verdade histórica que poderemos utilizar, pelo que nela basearemos a nossa interpretação. Assumimos que não serão colmatáveis as insuficiências da fonte, nomeadamente no que se refere às fases iniciais da vida de Pedro; como refere Suzanne Cornil, são poucos os dados sobre os seus gostos de adolescente e as suas relações com o pai; aliás, para além de uma referência breve ao contacto tardio com os avós, que só terá ocorrido aos quatro anos, devido às discórdias entre Afonso e Dinis, apenas temos informações indirectas e, por isso mesmo, de reduzida credibilidade histórica. Quanto a aspectos físicos, Cristina Pimenta considera ser comum, mesmo nestes tempos mais recuados, haver descrições detalhadas, estranhando esta falta de informação relativa a dom Pedro». In Pedro Jorge Rodrigues, A personagem D. Pedro, Na narrativa portuguesa do dealbar do século XXI, Tese de Mestrado em Estudos Portugueses Interdisciplinares, Universidade Aberta, Coimbra, 2006,

Cortesia de UAberta, Coimbra/JDACT

Vagas. Pragas. Adagas. Fernando Baralba. «O poder só dirá sim se todos disserem não. Não há outra revolução que conduza a melhor fim. Pensamentos positivos produzem boas acções, mas se forem negativos, assim são as soluções»

jdact e wikipedia

«Levanta-te e foge, foge de ti, ultrapassa-te; corre, corre para além de ti, supera-te, vence-te, vence-te a ti mesmo, atinge o inatingível, atinge o super-homem». In O Diálogo sobre o Super-homem.

«Se o paraíso atingir,
chega à triste conclusão,
que o esforço é em vão,
Deus é o diabo a fingir

Há para aí muita maldade,
vestida de real pureza,
mas eu tenho a certeza,
que engana muita bondade.

Aquele que perde a esperança,
perde o tino, perde o rumo,
nada quer, nada alcança
esvai-se como o fumo.

Lutou tanto por chegar,
mas depois de ter chegado,
ficou tão decepcionado
que só queria regressar.

Uma criança a brincar,
vai a bola p´ra estrada,
vem um carro a passar,
vida perdida por nada.

Médico que doença cura,
tem que ter muito valor,
há para aí muito doutor,
 mais parece que a descura».

In Fernando Baralba, Vagas, Pragas e Adagas, Chiado Editora, colecção Prazeres Poéticos, 2014, ISBN 978-989-511-322-4.

Cortesia de ChiadoE/JDACT

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ciência e Experiência. Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel. Moura Barbosa. «Assim, a própria ideia de Cosmo ou Universo se transforma. Se há algo a ser investigado e extraído de seu interior, só pode ser através da matemática»

Cortesia de wikipedia

«(…) Ora, a relação entre espírito e natureza sofreu uma radical transformação com a passagem do mundo antigo para o moderno. Antes, os gregos uniam-se numa razão objectiva no interior do Cosmo. Como ressalta Hegel, esta relação passou, na modernidade, a se caracterizar essencialmente pela duplicação da realidade, tornando-se esta, de um lado, ideia subjectiva e, de outro, o substancial. Ora, essa cisão reflectiu também na contraposição entre a subjectividade e a objectividade, ou, ainda, entre o pensamento e o ser e, por fim, entre o próprio espírito e a natureza. Com isto, ocorreu uma mudança fundamental no conceito de Natureza, com a tematização da subjectividade, algo diluído na antiguidade, como princípio agora de uma autoconsciência. Hegel caracteriza essa transição como uma grande navegação, uma descoberta de um continente desconhecido, no qual o homem, depois de transpor o mar turbulento de seus pensamentos, chega, enfim, e pode dizer: terra!. Assim, tal pensamento chega à sua autoconsciência, enquanto cogito em Descartes. Para Hegel: com Descartes começa, com efeito, verdadeiramente, a cultura dos tempos modernos, o pensamento da moderna filosofia, depois de haver marchado durante largo tempo pelos caminhos anteriores. Com essa nova configuração da racionalidade, todo o conhecimento humano sofreu uma alteração fundamental: o homem não seria um espectador passivo do Cosmo, como outrora, porém detentor, doador e ordenador do sentido do mundo. A contemplação deu lugar à acção investigativa da natureza, em que esta deixa de ter uma ordem própria, passando a ser réu no tribunal da razão. A razão julga sobre o mérito da verdade do conhecimento acerca da natureza, se os modelos do nosso entendimento são ou não adequados para a representação desta, o que coloca a ideia de um domínio cada vez mais eficaz sobre ela. A ideia de uma tal racionalização segue o desenvolvimento de uma questão que perpassa toda a modernidade (dos empiristas aos racionalistas, dos realistas aos idealistas), qual seja o facto de que compreenderam (Galileu e Stahl) que a razão só discerne o que ela produz segundo os seus projectos. Desta maneira, os modernos constituem a sua distinção em relação aos antigos, como vai afirmar Kant: até agora se supôs que todo o nosso conhecimento se tinha que se regular pelos objectos, mas, ao invés disso, tente-se ver uma vez se não progrediremos melhor nas tarefas da Metafísica, admitindo que os objectos têm que se regular pelo nosso conhecimento.
Tal posição foi denominada por Kant de revolução copernicana do pensar, em que fica evidente que o mundo não é e não pode ser algo independente do sujeito cognoscente, mas determinado e condicionado por este, tornando mais explícito que a razão só conhece aquilo que põe, e a razão moderna põe o mundo como seu objecto. Essa tendência não é de forma alguma algo isolado a Kant. Pelo contrário, ele é a expressão máxima dessa posição moderna do sujeito cognoscente na modernidade. As ciências modernas tiveram papel importante nessa transformação da perspectiva cosmológica para a antropológica (epistémica), que ocorreu com a mudança conceitual do ponto de vista acerca da natureza. Para os antigos, a natureza tinha o sentido de um todo qualitativamente organizado de forma objectiva, por uma razão que o perpassava; destarte, só restaria ao homem certa atividade contemplativa. Já para os modernos, essa natureza constitui-se em inteligível com base em sua quantificação matemática. A própria ideia de um Cosmo limitado, pois o belo, para os gregos, é o que possui limites, dá lugar ao infinito quantitativo do Universo. Assim, a própria ideia de Cosmo ou Universo se transforma. Se há algo a ser investigado e extraído de seu interior, só pode ser através da matemática. Com isso, tornou-se necessária a elaboração de um método que permitisse tal investigação; tal método foi denominado de procedimental, por estabelecer procedimentos para validação das investigações, ou experimental, por ter na experiência a sua fonte de conteúdo e validação, e as ciências que o utilizam, de ciências experimentais. O método procedimental das ciências experimentais precisava de uma sustentação teórica para a conceitualização de tal posição frente ao seu conhecimento sobre a natureza. A filosofia fundamentou tal procedimento no seu plano metafísico e teórico e buscou, ainda, pesquisar se a investigação dá conta ou não do seu objecto, que é a natureza. A filosofia moderna constitui-se, deste modo, enquanto uma teoria do conhecimento ou ainda epistemologia». In Alexandre Moura Barbosa, Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel, Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN 978-85-7430-970-5.

Cortesia de EUniversitária/JDACT

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «E que importa a distância que separa teus lábios dos meus lábios? E que importa que eu seja luz eterna e sempre clara e tu sombra carnal e transitária? Que tu vivas, além, num outro mundo, se nos prende, amoroso, o fio astral…»

jdact

Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
«Tu foste para mim o que a semente,
na escuridão da terra sepultada,
foi para a flor gentil da Primavera,
apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
são talvez teu passado; misterioso
tempo em que o mundo trágico ensaiava
seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
outra vida sonhaste, mais perfeita...

Sonhaste-me...,e fui dada à luz do dia...

Vivo em teu coração; mas, em ti próprio,
há tão grandes distâncias como aquelas
que inundam de penumbra e de silêncio
o espaço que medeia entre as estrelas.

E que importa a distância que separa
teus lábios dos meus lábios? E que importa
que eu seja luz eterna e sempre clara
e tu sombra carnal e transitária?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
se nos prende, amoroso, o fio astral
que prende o olhar à estrela e o mar profundo
à sede que o sol tem das nossas lágrimas?

Sou aquela que á amada; mas não amo,
porque o amor odeia o que é eterno;
e as suas labaredas se alimentam
do que é mudança, tempestade, inferno!

Logo, a Pastora, inquieta. És o demónio,
que vais pisando a sombra caminhante
deste homem que delira e tem, na fronte,
o Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
e se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
de condenados, mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
o cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
de Deusa e não humana, desconhece
a sagrada volúpia da tristeza
e o antegosto abismático da morte.

E Eleonor, sorrindo: eu te perdoo
essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida.

A Donzela, mais pálida, escutava
aquela voz, tão séria!, de Eleonor
que os ermos ventos frios imitava,
quando perpassam na ramagem densa.

Solitária Pastora, que eu avisto,
encantada nas brumas da Natura,
tu não vês o lugar onde eu existo
nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
nem o prazer infindo! E a doce luz
dos teus olhos, às vezes, ê tão triste
que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
em efémero barro quis moldar;
e os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
que separa dois reinos, como tu
contemplas uma rosa, nessa infância
de Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
para o nocturno e trágico rochedo...
E eu que sou para ti? O mesmo que és
para as flores do campo; o novo ser
dum novo Reino; a lama, a esplendidez,

em que a vida, por fim, se converteu.

Tu és o amor amante; eu sou o amor
amado. Eu sou a vida e tu somente,
és aquilo que vive. Eu sou a dor
e a dor não sofre, não, mas é sofrida.

E Marânus, depois: eu te prometo
a sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
e também para a grande solidão.

E Eleonor, estendendo a mão direita,
apontou-lhe o horizonte montanhoso,
de onde a florida aurora nos espreita,
por entre névoas de íntimo fulgor.
Poema de Teixeira de Pascoaes, in ‘Marânus

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT

A Voz dos Deuses. João Aguiar. «O meu tio, que na prática do seu ofício aprendera a desconfiar da natureza humana, ouviu-o com certa incredulidade porque tudo aquilo lhe pareceu um conto feito à medida exacta para encantar donzelas: revoltas, chacinas, a Cidadela de Brácara a arder»

jdact

O oráculo
«(…) Quando Tongétamo chegou à região de Ebora, o grupo estava reduzido a três. Um deles teve qualquer sonho que interpretou como um presságio e decidiram prosseguir a marcha para Sul, até que foram atacados por um bando de salteadores. Durante a luta Tongétamo fora ferido nas costas e não se lembrava de mais nada; os seus companheiros estavam talvez cativos, ele ficara abandonado em pleno campo, dado como morto. Esta foi a história contada pelo estrangeiro. O meu tio, que na prática do seu ofício aprendera a desconfiar da natureza humana, ouviu-o com certa incredulidade porque tudo aquilo lhe pareceu um conto feito à medida exacta para encantar donzelas: revoltas, chacinas, a Cidadela de Brácara a arder, um jovem príncipe escapando à morte no último instante..., tudo lhe soava a fantasia e Camalo gostava das coisas simples, das situações normais e sem surpresas. A história de Tongétamo causou-lhe um certo mal-estar. Claro que na minha mãe ela teve o efeito oposto e depressa transpareceu que não seria possível separar Tongétamo de Camala a não ser pela violência. Porque (hoje estou certo disso, apesar da opinião diferente do meu tio) também o meu pai se apaixonara profundamente pela minha mãe; não se tratava, como Camalo sempre acreditou, de uma atracção passageira. Enfim, o meu tio vergou-se à evidência: a única forma de evitar a desonra da família e a necessária vingança era permitir o casamento e foi o que ele fez. Eu nasci exactamente duzentos e setenta dias depois da cerimónia nupcial.
Quando o meu pai foi encontrado ferido e inconsciente, Camalo advertira a irmã de que um regresso imediato a Balsa, abandonando o propósito de encontrar o novo santuário da Lua, equivalia a uma grave afronta à deusa. Ao menos, sugeriu, deviam procurar saber em Myrtilis se as notícias chegadas ao Cineticum eram verdadeiras. Perdida na obsessão de regressar, a minha mãe recusara dizendo que, como mulher, sabia melhor o que podia agradar ou desagradar à deusa. E mostrou-se triunfante quando, já em Balsa, uns amigos de Camalo garantiram que a informação não era exacta: havia, de facto, um santuário da Lua, mas já muito antigo e ficava bem longe, para lá do Tagus. De uma história velha fizera-se uma lenda nova, certamente alguns viajantes haviam falado do santuário em Ebora ou Myrtilis e talvez o desejo de atrair peregrinos e mercadores tivesse levado a gente local a deturpar o relato. Ouvindo isto, Camala declarou que fora por vontade da deusa que ela, procurando um lugar sagrado onde ele não existia, encontrara Tongétamo. Assim tentam os mortais conhecer os desígnios dos deuses e torná-los propícios aos seus interesses, porém sem resultado. Ao regressar a Balsa, desistindo das suas intenções piedosas, a minha mãe atraíra sobre si a ira do céu. O casamento foi um desastre. Não duvido, como afirmei, que o meu pai amasse verdadei­ramente a mulher, mas a vida no Cineticum era demasiado diferente daquela a que estava habituado e além disso não podia esquecer a chacina da família, a fuga ignominiosa. O seu desejo era regressar à Calécia, formar um exército, atacar Brácara, lavar em sangue as afrontas e crimes, tomar o poder. Mas (e nisto o meu tio teria razão no seu julgamento) faltava-lhe a força interior que faz um verdadeiro chefe. A vontade de vingança era forte, mas não o bastante para enfrentar com êxito dificuldades quase intransponíveis, estava só, o inimigo tivera tempo para consolidar a posição conquistada. Depois, havia a mulher, que em breve lhe daria o primeiro filho. Uma esposa cónia, mesmo muito amada, devia ser uma novidade inquietante para um Brácaro. Entre os Lusitanos das regiões mais ao norte, e muito especialmente entre os Calaicos, é costume as mulheres acompanharem os seus homens na guerra e combaterem ao seu lado. Tongétamo terá ficado desorientado com uma mulher que passava o dia dentro de casa, baixava os olhos ao falar e fazia da passividade uma arma para dominar o marido. Quando eu nasci, já o meu pai devia ter compreendido que ao casar abdicara da sua liberdade, a menos que abandonasse a mulher e o filho. Essa angústia mortal leu-a Camalo no rosto do cunhado, no dia do meu nascimento». In João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa, Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.

Cortesia de ASAEditores/JDACT

As Cidades Invisíveis. Italo Calvino. «Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar»

jdact

As cidades e o nome. X
«(…) Aos tempos de indigência sucediam-se épocas mais alegres: uma Clarice borboleta sumptuosa nascia da Clarice crisálida miserável; a nova abundância fazia a cidade transbordar de materiais edifícios objectos novos; afluía nova gente vinda de fora; já nada nem ninguém tinha alguma coisa a ver com a Clarice ou as Clarices de antes; e quanto mais a nova cidade se instalava triunfalmente no lugar e no nome da primeira Clarice, mais se dava conta de se afastar daquela, de destruí-la não menos rapidamente do que os ratos e o bolor: apesar do orgulho do novo fausto, no fundo do coração sentia-se estranha, incongruente, usurpadora. E então os resquícios do primeiro esplendor que se tinham salvado adaptando-se a necessidades mais obscuras eram novamente deslocados, guardados sob campânulas de vidro, encenados em vitrinas, colocados em almofadões de veludo, e já não porque podiam ainda servir para qualquer coisa, mas porque através deles se desejava recompor uma cidade de que já ninguém sabia nada. Outras deteriorações e outros vigores se seguiram em Clarice. As populações e os costumes mudaram muitas vezes mais; restam o nome, a localização, e os objectos mais difíceis de quebrar. Cada nova Clarice, compacta como um corpo vivo com os seus odores e a sua respiração, ostenta como uma jóia o que resta das antigas Clarices fragmentárias e já mortas. Não se sabe quando estiveram os capitéis coríntios no alto das suas colunas: só se recorda de um deles que por muitos anos numa capoeira manteve a cesta onde as galinhas punham os ovos, e dali passou para o Museu dos Capitéis, em fila com os outros exemplares da colecção. Já se perdeu a ordem da sucessão das várias eras; que houve uma primeira Clarice é crença bem difundida, mas não há provas que o demonstrem; os capitéis poderiam ter estado nas capoeiras antes de irem parar aos templos, as urnas de mármore poderiam ter sido semeadas com manjerico antes de o serem com ossos de defuntos. De certeza só se sabe uma coisa: um certo número de objectos desloca-se num certo espaço, ora submerso por uma quantidade de objectos novos, ora consumando-se sem serem substituídos; a regra é misturarem-se todas as vezes e experimentar juntá-los de novo. Talvez Clarice haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas, fora de uso.

As cidades e os mortos. 3.
Não há cidade mais propensa que Eusápia a gozar a vida e a fugir às ansiedades. E para que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram debaixo de terra uma cópia idêntica da sua cidade. Os cadáveres, secos de maneira que fique o esqueleto revestido de pele amarela, são levados lá para baixo para continuarem as ocupações de antes. Destas, são os momentos despreocupados que têm a preferência: a maior parte deles, colocam-nos sentados à volta de mesas postas, ou em posição de dança ou no gesto de tocar trompas. Mas também todos os comércios e ofícios da Eusápia dos vivos continuam ao trabalho debaixo de terra, ou pelo menos aqueles que os vivos realizaram com mais satisfação que enfado: o relojoeiro, no meio de todos os relógios parados da sua oficina, encosta uma orelha ressequida a um relógio de pêndulo sem corda; um barbeiro ensaboa com o pincel seco o osso das bochechas de um actor enquanto este estuda o papel fixando o guião com as órbitas vazias; uma rapariga de caveira sorridente ordenha uma carcaça de bezerra». In Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, 1990, Editorial Teorema, Lisboa, 2003, ISBN 972-695-374-X.

Cortesia de ETeorema/JDACT

terça-feira, 28 de abril de 2015

Estou Nua e Agora? Francisco Salgueiro. «Espera. Espera. Pode não ser uma pulga, pensei. Pus a mão no bolso com algum medo. Tirei o iPhone, que não parava de vibrar. Não era uma pulga. O meu telefone estava a explodir num coro de notificações»

jdact

São Francisco
«(…) Na noite passada, travou-se uma batalha épica no jogo SingStar. O Congresso e a Casa Branca estiveram em suspenso até saírem os resultados finais. O grupo que perdesse teria de ir até Reno e tirar uma fotografia à porta do casino Harrahs. Os vencedores foram a Team Bieber e o grupo perdedor foi incitado a partir de imediato para Reno. No entanto, os poucos elementos presentes na festa que não estavam totalmente bêbedos, lembraram-se de uma coisa importante: alguém teria de ir a conduzir. Logo, não poderia estar bêbedo. Segundo fontes não identificadas, descobriu-se uma pessoa que tinha acabado de chegar à festa e que ainda não tinha bebido. Imediatamente lhe disseram que teria de ir até Reno, apesar de não ter entrado no concurso. Essas mesmas fontes, que preferem anonimato, dizem que, ao ver que esse grupo tinha 4 raparigas bêbedas, terá pensado que facilmente teria animação nessa noite. Daí ter aceitado. No entanto, e apesar de muito bêbedos, lembraram-se de outro problema: não poderiam ir até Reno num carro. Eles eram 11 e um carro apenas daria para 5. Era necessário uma carrinha.
Tal como acontece quando há terramotos, as redes sociais tiveram uma grande importância em todo o processo. Graças a elas, espalhou-se que era necessária ajuda humanitária. Alguém teria de arranjar uma carrinha que levasse 11 pessoas. Poucos segundos depois, alguém recebeu uma mensagem: eu tenho uma. E assim foi, ao fim de 10 minutos, o amigo, do amigo, do amigo de alguém apareceu lá com uma carrinha. Era velha, mas ele garantiu às nossas fontes que teria capacidade para chegar até Reno e voltar. Queria apenas, como contrapartida, ser ele a conduzir e que lhe pagassem a gasolina. Isso causou alguma turbulência, porque o convidado da festa que já se tinha oferecido para guiar, disse que também queria ir. Resolveu-se tudo a bem, acabando por irem 12 pessoas para Reno. E assim vai a juventude do nosso tempo.

Poderia relatar que a viagem pela auto-estrada, desde São Francisco até Reno, foi feita a cantar o Kumbaya, a ver belas paisagens pela janela, mas sobre a viagem, e uma vez mais, apenas posso dizer isto … uma boa m… Acordei com o sol a bater-me na cara. Com o sol e um pé em cima da minha cabeça. O sol, percebi mal abri os olhos, o pé, só uns segundos mais tarde, pois achei estranho ter algo em cima da minha cara a fazer tanto peso e a cheirar mal ao mesmo tempo. Tentei levantar-me para perceber o que se estava a passar e, finalmente, soube o que se sente com a ausência de gravidade. Todos os meus movimentos demoraram oito vezes mais tempo a serem executados e parecia estar sempre em câmara lenta. Estarei na lua? pensei eu. Serei uma astronauta? Por estes dois pensamentos, dava claramente para perceber que eu ainda estava ligeiramente bêbeda e que a dificuldade em me movimentar era por estar em ressaca. Demorei 4 minutos a levantar-me da cama. Olhei à volta. Estava num quarto. Não era o meu. Na cama havia uma orgia. Ou tinha havido. Hmmm…, talvez não tivesse havido porque todas as pessoas estavam vestidas. E eram muitas. Umas cinco. Delas apenas consegui identificar a Jen e dois ex-colegas da faculdade, que nem vale a pena dizer os seus nomes. No chão, estavam deitadas mais uma…, duas…, três…, não consegui contar mais. Então o meu cérebro enviou-me um mail: Não temos capacidade para processar informação. Talvez mais daqui a um bocado. Ao longe, comecei a ouvir um som. Era uma música. Talvez fosse uma das músicas da noite anterior que me estivesse a assombrar por tê-la assassinado. Simultaneamente, comecei a sentir uma comichão na perna. A cama devia ter pulgas. Uma pulga. Yew.
Espera. Espera. Pode não ser uma pulga, pensei. Pus a mão no bolso com algum medo. Tirei o iPhone, que não parava de vibrar. Não era uma pulga. O meu telefone estava a explodir num coro de notificações no Facebook. Dezenas de likes e comments iam chegando a fotografias onde eu estava. Comecei a ver as fotogr…, oh my god…, o que é que nós tínhamos andado a fazer na madrugada anterior, em Reno?! Eu tinha publicado, no meu perfil, fotografias nossas no palco do Harrahs a cantar, a fazer surf nas cadeiras do restaurante, dentro da cozinha a roubar…, oh my god…, havia fotografias de mim com um homem lindo. Olhos azuis. Corpo fantástico. Tatoos nos braços. Cabelo escuro com uma crista. Piercings. Os meus pais iriam odiá-lo. Eu já o amava. Quem é este tipo?, foi o pensamento que passou pela minha cabeça nos três minutos e meio seguintes. Não havia mais fotografias do grupo. Apenas de mim e dele. Mais de vinte fotografias. Dentro do casino a apostar e, pela nossa cara, a ganhar dinheiro. Num spa, tapados apenas por toalhas. Dentro de um campo de golf, em pleno dia. Aí entrei em pânico». In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.

Cortesia EOLivro/JDACT

O Escriba. A. M. Dean. «Uma coisa terrível..., da IVA, a respiração entrecortada, as palavras insuficientes para a magnitude da sua mensagem. Estão em curso acontecimentos terríveis. Têm de os impedir»

jdact

Deserto Egípcio. 374 d. C.
«(…) Era perfeito. Estava preparado para a sua libertação. Contemplando o punhado de homens, encontrou o olhar de um deles, mais alto, cujas roupas o identificavam como o líder. Concentrando-se intensamente no homem, Eunomius respirou fundo e gritou com toda a força a única palavra que importava. Libertação! Ao mesmo tempo que o grito ecoava na rocha e se propagava pela areia do deserto, uma espada surgiu à sua direita, reluziu por segundos com a réstia de sol, e num movimento rápido separou-lhe a cabeça do corpo, separando também a sua vida da irreflexão do mundo físico.

Profundamente agitado, Albinus encontrava-se sentado e a tremer no sombrio e solitário quarto. Podia acender as luzes, naquele quarto sem janelas, a iluminação não iria traí-lo, porém, sentia-se mais seguro na escuridão. Segurava o telefone sem fios firmemente contra a face, a ponta arredondada bem encostada à maxila, o sinal de chamada azunk no ouvido. O suor corria-lhe em bica pelo rosto, pingando-lhe pelo nariz e deixando as suas mãos escorregadias. O que foi que fiz? O que estou eu a fazer? Estava aterrorizado, mas não parecia haver outro caminho. Aquilo que planeavam era demasiado terrível, e as consequências incomensuráveis. A sua consciência nunca o deixaria viver em paz se não tentasse entrar em contacto com alguém que pudesse pôr cobro àquilo antes de acontecer. A liberdade não pode ser obtida a todo o custo. Na escuridão, desdobrou o pedaço de papel no qual havia rabiscado o número do …, reavivando a memória à luz esverdeada do teclado do telefone. Momentos depois, os seus dedos pressionavam nervosamente os números. O telefone deu sinal de chamada uma vez. Duas. Ao terceiro e ao quarto toques, a sua pulsação acelerou. Alguém tem de atender. Algo lhe dizia que não teria outra oportunidade para realizar aquele telefonema. Ao sexto toque, escutou a ligação. Albinus parou de respirar. Chegou à caixa de correio da linha de denúncia pública do ... Sentiu-se desanimado. Uma gravação. Não antecipara tal coisa. Talvez devesse tê-lo previsto, apercebeu-se de súbito; mas duvidar de si próprio era uma armadilha demasiado fácil para o desespero. Não podia abandonar a sua única esperança. Quando a mensagem terminou e um sinal sonoro lhe indicou que podia começar a falar, Albinus proferiu precipitadamente o seu discurso. Preparara-se para uma conversa, não para um resumo em monólogo.Eu, eu... o meu nome não é importante. Possuo informações... sobre um ataque. Em Chicago. Uma coisa terrível..., da Igreja da Verdade Arquejou, a respiração entrecortada, as palavras insuficientes para a magnitude da sua mensagem. Estão em curso acontecimentos terríveis. Têm de os impedir.
O comando reuniu-se com carácter de urgência. O Grande Líder estava sentado com os seus ajudantes directos em redor para, juntos, lidarem com a apostasia que ameaçava deitar por terra décadas de preparativos. A data fixada como meta era demasiado simbólica e tinha sido infundida de um grande significado para ser abandonada, e havia já movimentações por todo o globo. Foi o Albinus, revelou um dos irmãos, hesitante. Empurrou o nome para fora dos lábios apertados; o seu sotaque italiano debatia-se com a forma estranha, estrangeira das palavras. É um fraco, sempre o foi, acrescentou outro; a sua pronúncia espanhola contrastava com a do italiano, mas nunca pensámos que fosse tão longe. A posição dos seus ombros largos alternava entre o abatimento frustrado e a tensão encolerizada. Até onde, exactamente? O Grande Líder manteve um tom firme. Não queria que a irritação dos outros dominasse a sua concentração. Falou com o … O homem que respondeu encontrava-se à sua frente com os braços firmemente cruzados diante do peito. Se sentia alguma emoção, as feições não o revelavam. Foi-nos confirmado por alguém lá dentro. Deixou uma denúncia esta manhã. Usou o nosso nome. Mencionou um ataque. Vão ficar alerta. Aquelas palavras provocaram uma tensão mais profunda, interrompida apenas pelo italiano, que proferiu a implicação óbvia, revelando o seu olhar mais medo do que nervosismo. O nosso escudo de confidencialidade está quebrado. Este véu de anonimato, como lhe chama, desapareceu. Andato. O Grande Líder absorveu as palavras; a ligeira tensão nos músculos das faces era o único indício de que rangia os dentes. A envolvente força das suas feições, os olhos vivos, sob um sobrolho cujas linhas suaves anunciavam sabedoria e experiência, com maçãs do rosto modeladas de modo a sugerir poder sem no entanto serem tão angulosas que parecessem cruéis, parecia escondida atrás de uma máscara de concentração. Por fim, observou o homem diante de si. Temos de impedir o Albinus. Esta noite. Chamem o Árabe se precisarem. Não podemos deixar que esse homem vá dizer às autoridades mais do que já revelou». In A. M. Dean, O Escriba, tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-204-5.

Cortesia CAutor/JDACT

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O Manuscrito Alfield. Romance apócrifo que finge ser a edição crítica de um manuscrito de 1516, de uma crónica francesa desaparecida. Alan Dorsey Stevenson. «… todos esses jovens viviam vida ímpia, perversa e desregrada, e confirmavam o pensamento do moralíssimo Séneca…»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) A leitura desses falsos livros creio que foi a causa do primeiro princípio e começo de seu amor por Thibert, o qual amor vinha contra Deus e contra a razão e contra a natureza: ele era, dela, seu próprio irmão, e ela, dele, sua própria irmã, contudo amavam-se tão intensamente que ela ardia em chamas de amor por ele, e ele da sua parte por ela. A história nos diz que nessa ocasião ainda não se tinham irmã e irmão juntado carnalmente um com o outro, por medo do pecado e por pavor do pai: pois não ousavam provocar-lhe a ira: pois muito lhe temiam a fereza e a fúria. Mas no entanto, por inspiração do demónio, que pairava sempre activo e diligente ao redor deles, o amor entre ambos crescia e aumentava sempre, e queriam-se os dois tanto como outrora Tristão e a bela Isolda ou Lancelote e a rainha Genebra. Os dois filhos que sir Roger fizera em Anne Lablonde, que fora a sua principal concubina ainda nos dias de vida da legítima esposa, chamavam-se, como já antes o mostrou a crónica, Giles e Thierry. Giles, o mais velho de ambos, sentia pelas mulheres de Malemort grande e estranha tentação, pois não era vadiar com elas que lhe dava prazer, mas espiá-las escondido onde pudesse vê-las nuas, e aí aplicava-se de tal forma que me envergonha dizer, pois esfregando-se com a própria mão chegava ao derrame da semente. Thierry, que era dos bastardos o mais novo, tinha mente perversa e desejos infames: de todas as mulheres do lugar não havia uma só que, estando sozinha, não lhe fugisse como se ele fosse um sarraceno ou coisa pior. Havia nessa ocasião em Malemort uma mulher embrenhada no meio da floresta que no inverno dormia em grutas e no verão em baixo de árvores e entre moitas e sebes, como se fosse uma fera selvagem feroz. Vivia de frutas e do que mais pudesse achar, e não bebia a não ser água, e quase não tinha outra roupa além de uma camisa que lhe ia até os joelhos; e os cães e os meninos se divertiam a persegui-la por entremeio da floresta. A mulher não passava de uma pobre criatura desatinada, mas Thierry, sempre que o corpo exigisse, saía por aqueles ermos à sua procura e, achando-a, enchz com ela até se aliviar, saciando assim o apetite da carne. Portanto, como bem podeis perceber, todos esses jovens viviam vida ímpia, perversa e desregrada, e confirmavam portanto o pensamento do moralíssimo Séneca, segundo o qual o homem não tem coisa mais vil do que si mesmo.
Agora deixemos por algum tempo os pecadores com seus pecados e falemos com prazer do filho mais velho de Roger de Giac, que se chamava Roger como o pai e como o avô. Tinha uns dezoito anos nesse tempo. Tanto a cavalo como a pé era melhor em armas do que jamais o foi ninguém de sua idade; alguns diziam dele que pelo corpo e pelo coração era moço apto a vir a ser homem de grandes proezas e assim tornar-se tão bom cavaleiro como o pai; outros diziam que passaria o pai como o leão passa o leopardo em força e bravura, para ser, em lugar do pai, o melhor cavaleiro do condado de Níniva. Parecia-se tanto com sir Roger que nunca pai e filho mais se pareceram em semelhança: era bem moldado de corpo, de rosto agradável à vista, e de boa estatura, tendo oito pés de alto. No entanto, não se parecia nem um pouco com sir Roger pelo fervor que punha no amor que votava à religião. Certifico-vos por verdade que nele residia Nosso Senhor Jesus Cristo, o que transparecia muito às claras na sua vida virtuosa, pois cuidava diariamente de fazer tão-só aquilo que pudesse agradar a Jesus: tanto assim que, se ao pai chamavam Besedeable pelas costas, aberta e puplicamente ao filho chamavam Amidieu: amigo de Deus. Tinha gosto em amanhecer sempre cedo, antes de qualquer outro dos irmãos e dos companheiros, e já no começo do dia rezar as suas orações, coisa que é riqueza de grande excelência neste mundo, e rezava-as em jejum, pois estômago cheio não pode ser inteira e perfeitamente humilde nem devoto. No decurso do resto do dia, quando não estava ocupado com cavalos nem espadas, punha-se todo a pensar em santos mártires e santas virgens. Todo dia à noite antes de dormir fazia suas orações a Deus, que é nosso senhor, autor e criador, e também à abençoada Virgem, que dia e noite sem parar orat pro nobis, e recomendava-se a todos os santos e santas. Era muito devoto de Santa Maria e de dizer as suas horas, e já pensava prometer a ela a sua virgindade. Jejuava uma vez por semana, no sábado, em atenção a ela, rogando que o guardasse sempre puro e casto e longe de tentação; pois esse jejum é para dar ao homem vitória sobre sua carne. E dúvida não há nenhuma de que, se a maior alegria de Deus reside no arrependimento e conversão de um pecador, a do Diabo reside em especial no corrompimento e perdição de um justo; assim, Satã pugnava sem descanso para impor seu domínio a Amidieu, da mesma maneira como impusera ao pai dele e aos irmãos, e à irmã; pois de todas essas almas cobiçava a alma desse jovem mais que todas as outras. E, se me perguntardes em que lugar estava Satã determinado a vencer aquele justo, eu vos responderei dizendo: em nenhum lugar senão na sua castidade; pois Satã, como nos ensina a palavra de Leão papa, faz tudo que pode para corromper o homem no mesmo lugar em que o acha mais forte em bons feitos e firmes propósitos; razão por que os homens pios o Diabo tenta especialmente com a ajuda de ímpias mulheres». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT

O Manuscrito Alfield. Romance apócrifo que finge ser a edição crítica de um manuscrito de 1516, de uma crónica francesa desaparecida. Alan Dorsey Stevenson. « Mas essa nova Catarina, filha de Malemort, preferia ler só aqueles livros que tratam de histórias fingidas e fábulas de amor, e de outras vaidades mundanas…»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) E é esse o maior de todos os sete pecados maiores, pois é o pecado que Deus odeia acima de todos, porque o corpo e alma do homem, que deve ser morada de Deus, torna-se morada do Diabo em virtude desse mesmo pecado. Assim, quando se levantou o cerco de Dysconvorte e Roger Besedeable retornou de volta a Malemort, a primeira coisa que fez mandou o seu frade chamar Margery Felelainne, que era então a mulher que ele melhor preferia pôr consigo na cama. Ora, acontece que Margery tinha morrido enquanto ele estava fora, por isso o frade mandou vir em lugar dela a prima, que se chamava Symone Flowry, que era moça alegre e viçosa, nem muito gorda nem magra demais, e bem mais inclinada aos prazeres do corpo que prostituta de bordel. O frade, vendo-a toda pronta e já feliz de vir à presença do senhor, começou a sorrir e disse, pelos dentes de Deus, minha filha, tirando minha senhora a rainha da França tu não tens par: não sei de melhor alimento para servir a nosso bom senhor. Aí tomou-lhe a mão e levou-a aos aposentos de Sir Roger, e quando lá chegaram a porta já estava toda aberta para ela entrar. Entra, querida, entra, disse o frade, e que Santa Maria Madalena te inspire. Frei Hugh deixou-a ali sozinha e ela entrou de cabeça cabisbaixa, como se tivesse vergonha na cara, mas quando ergueu os olhos nem viu nem percebeu ninguém ali. Então disse em voz alta, Ora, senhor, onde é que estás aí dentro; mas não houve resposta. Então se pôs a procurar em toda a câmara, mas nada viu que se parecesse com ele. Olhou aqui e ali, em cima e em baixo, e em todos os lados, mas nada achou. Quando então viu que não o achava, reclamou dizendo, Ah, senhor, procurei-te em todo o canto e não te achei em lugar nenhum, então creio que ou não estás aqui dentro ou senão deves ser o cavaleiro que anda invisível, então vou embora até que venhas me ver ou me mandes chamar de novo.
Então girou para retirar-se, e de súbito eis que lhe salta ele de onde estava escondido atrás da porta e a abraça pela cintura; assim colhida e surpreendida, ela deu um grito e num brusco movimento livrou-se das mãos dele, mas ele agarrou-a pelas tranças e puxou-a de encontro a si e beijou-a muitas vezes, chamando-a madame e mon amour. Ora, senhor, disse ela, sentindo a mão dele já lhe apalpando as coxas sob a saia, por que tanta pressa: temos tempo de sobra para brincar. E ele respondeu, Todos os dias em que estive no cerco de Dysconvorte pensava em ti, e já me via cercando-te tanto pela frente como por trás, e de todo lado, e tomando a fortaleza de teu corpo quantas vezes pudesse. E ela disse, Não era em mim que pensavas, senhor, mas em Margery minha prima; pois esta é a primeira vez que pões em mim o olho. Então mandemos vir tua prima, disse ele, para sermos três  numa cama só; onde está ela? A moça respondeu, Morta e enterrada, senhor, é onde minha pobre prima agora está; faz um mês que morreu, Deus que lhe guarde a alma. Sir Roger benzeu-se e disse, Bem, nós é que não estamos mortos, nem tu nem eu, pelo que posso ver; então façamos o que os mortos não podem fazer, mas os vivos sim, sempre que quisermos. Então trancou-se lá dentro com ela: era pouco antes de meio-dia quando a mandou chamar, e nove horas do dia seguinte quando a pôs porta afora gritando muita mer… contra ela e por que diabo não aprendera a fazer seu ofício direito. No mesmo dia, mal se recolhera o sol para descansar, mandou-a vir outra vez, e o mesmo fez no dia seguinte à mesma hora e continuou a fazer dia após dia pelo espaço de muitos dias. Era esse o mau costume da casa de Malemort: o ilícito pecado da luxúria. Os quatro filhos de sir Roger, que eram ainda meninos quando os conhecemos no livro anterior a este, já estão crescidos agora e em plena viçosa idade juvenil e ei-los aí feitos moços fortes e destros em coisas de caça e de guerra, ao passo que sua filha Katherine, a natureza operou nela tanta formosura que aí a temos convertida na moça mais bela que se conhecia então. Queria que me fosse possível dizer algo de bom sobre esses filhos e essa filha, mas, ai de mim, salvo o mais velho, é pelo contrário com grande tristeza para mim que me disponho a falar deles. Apesar de estarem ainda nos seus dias juvenis, já se mostravam servos fiéis e sinceros de Satanás, segundo estavam por predestinação predestinados a sê-lo sempre, hora a hora, noite a noite, dia a dia, verão e inverno, enquanto vivessem; pois deles bem posso declarar que era de pecado que se nutriam e de nada mais. Essa Katherine tinha aprendido a ler e escrever, e latim, e um pouco de grego: que sir Roger não era da mesma opinião desses homens que não querem das esposas nem das filhas que saibam nada de ler nem de escrever. O prazer de ler ela descobriu em criança, e muitos diziam que a sua mãe dera à luz uma nova Santa Catarina; contudo, diferente de Santa Catarina, que só lia livros de sabedoria e ciência, ou livros morais e de exemplos de bem viver que a ajudassem no salvamento de sua alma e de seu corpo, e que assim, por engenho e estudo, com a graça do Espírito Santo, superou os grandes filósofos da Grécia, e por firmeza de fé ganhou a palma do martírio, e seu corpo foi levado pelos anjos do céu a distância de doze jornadas até o monte Sinai, onde desse santo corpo escorre óleo até o dia de hoje. Mas essa nova Catarina, filha de Malemort, preferia ler só aqueles livros que tratam de histórias fingidas e fábulas de amor, e de outras vaidades mundanas, que nem trazem tesouro de ciência para a mente nem benefício de virtude para a alma». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT

domingo, 26 de abril de 2015

Tópicos sobre a Prática Política dos Estudantes Republicanos (1890-1931). Limites e Condicionantes do Movimento Estudantil. Ana Caiado Boavida. «… um grupo de rapazes republicanos de Coimbra, mais ou menos dispersos e confundidos no seio dum grémio de estudantes de fama reaccionária, resolveram desfazer esse equívoco e definir, que coisa é o seu republicanismo»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quanto às condicionantes e limites do movimento estudantil, julgamos não errar ao considerar que eles estão intimamente ligados à ambiência política envolvente do meio académico. Mas não só. Factores de índole específica são poderosos agentes no processo evolutivo de uma dada estrutura (dois exemplos: a luta levada a efeito, em 1919, pela Federação Académica de Lisboa contra o propósito de o Governo e o Parlamento intervirem na vida e na orgânica universitária, através da fiscalização da execução das suas leis e da escolha e nomeação do professorado e reitores; em 1926, e durante largos meses, as três academias estão em greve, entre outros motivos, por discordarem de um decreto que torna a contratação de professores dependente de factores de ordem política). O desenvolvimento do associativismo, sobretudo do associativismo federativo, depende de circunstâncias várias, que vão desde o distanciamento espacial entre as diversas escolas, institutos e faculdades, passando pelo desnivelamento social, que conduziu, não raras vezes, a uma hostilidade latente entre, por exemplo, alunos do Instituto Superior Técnico e alunos dos Institutos Industriais (outra das causas da greve de 1926 residiu na contestação movida pelos estudantes do Instituto Superior Técnico de Lisboa e da Faculdade Técnica do Porto contra a atribuição do título de engenheiro-auxiliar aos formados pelos institutos industrias, alegando que estes se pretendiam confundir com os licenciados pelos institutos superiores...), até à inexistência de uma mentalidade propiciadora dos gestos colectivos.
O impulso que, em 1913, produziu a Federação Académica de Lisboa foi esmorecendo lentamente, apesar dos periódicos sobressaltos suscitados por alegadas violações dos direitos estudantis. Os dois números da Revista da Federação Académica de Lisboa atestam bem a pouca consistência da estrutura federativa, sobrevivendo à custa do entusiasmo de meia dúzia de boas vontades. Como todas as regras têm as suas excepções, a Associação Académica do Porto oferece, talvez por razões de ordem sociológica, um panorama relativamente menos sombrio, em especial durante a década de 20, tendo conseguido manter de 1922 a 1929 a publicação regular do jornal Porto Académico. Jornal que, no entanto, não deixa de nos transmitir, em Janeiro de 1929, uma toada de profundo desencanto: a falta de pensamento e de acção, já não digo da academia do Porto, mas da actual geração académica portuguesa, tem sido um facto tão real, tão patente, que se impõe, com força de evidência, à nossa sensibilidade. [...] A quase totalidade da massa académica encontra-se ainda hoje dominada por um preconceito deplorável. Entende ela que a vida de estudante, para além do tempo ordinário que o seu curso lhe exige, deve ser completamente esgotada pela blague, pela facécia, alheada por completo dos problemas graves que afectam a Nacionalidade. Escassos meses após terem sido escritas estas palavras, a força de novos acontecimentos provocará o agitar das vontades adormecidas.
Uma das primeiras manifestações de inconformidade oriunda da juventude republicana, perante o evoluir do processo político desencadeado na Primavera de 1926, surgiu paradoxalmente adentro do tradicional bastião do conservantismo nacional. Pouco mais de um mês volvido sobre a fracassada tentativa de restituir ao País a legalidade institucional, precisamente em 9 de Abril de 1927, um grupo de rapazes republicanos de Coimbra, mais ou menos dispersos e confundidos no seio dum grémio de estudantes de fama reaccionária, resolveram desfazer esse equívoco e definir, num momento notoriamente difícil da vida nacional, que coisa é o seu republicanismo e em que princípios basilares se sustenta uma consciência cívica de que se ufanam. Liderando a iniciativa, quatro nomes sonantes do Centro Republicano Académico de Coimbra: Carlos Cal Brandão, Paulo Quintela, Sílvio Lima e um jovem a quem muitos auguram uma brilhante carreira literária, Vitorino Nemésio. Entre a lista de eventuais colaboradores destacam-se Rodrigues Miguéis e António Sérgio, este último já exilado em Paris, de onde envia alguns artigos para o jornal Gente Nova. Paralelamente ao relançamento das actividades do Centro Republicano Académico de Coimbra, procura-se dinamizar a Associação Académica, partindo esta diligência de um grupo de estudantes que se pretende acima de querelas partidárias ou religiosas. Desde modo, o jornal Mocidade, editado pela Associação Académica, apresenta-se aos seus potenciais leitores como um exemplo de imparcialidade, isenção de paixões, ideias claras e desempoeiradas, crítica acerada dos que com culpa prevaricam, perdão pleno para os pobres de espirito, vigor no ataque e lealdade na defesa». In Ana M. Caiado Boavida, Tópicos sobre a Prática Política dos Estudantes Republicanos (1890-1931), Limites e Condicionantes do Movimento Estudantil, Análise Social, vol. XIX, 1983.

Cortesia de Análise Social/JDACT