Estrada
do meu destino
«Tudo
me foi estranho desde o primeiro dia. O chefe, rotundo e severo, indicou-me o
lugar no escritório. Apresentou-me: O novo empregado, João Silva. Os outros
tomaram ares solenes nas secretárias, como reis em trono, e miraram-me.
Adivinhei-lhes o pensamento: um concorrente. Enfático, o chefe pronunciou, um a
um, seus nomes pesados de gerações ilustres. Curvaram por favor o tronco
altivo, sem que os
braços
se afastassem dos braços das cadeiras. Seguros ao lugar, não fosse eu pretendê-lo.
Depois, fiquei só, repassado do silêncio e angústia. Os outros fecharam a sete
chaves as portas brazonadas das suas vidas. Olhei furtivamente a sala bafienta,
pejada de papéis e mesas alinhadas, monotonamente iguais. Do subconsciente,
afloraram-me impressões recalcadas… Era uma manhã nevoenta de outono, e eu, mala
dos livros às costas a pesar como chumbo, arrastava na estrada os pés
sonâmbulos, para não ouvir os estalidos irritantes das folhas secas dos plátanos.
Meu pai deixara-me à porta da escola. Faz-te homem, dissera. Aprende a ser
alguém na Vida. Alguém… João Silva, o novo empregado. Eu estava outra voz na
aula, entre mesas alinhadas e caras estranhas, ignorante e tímido. Seu Silva, tem
de melhorar essa caligrafia. O mestre, pensei, à espera que a vara me caísse
sobre os dedos. Mas as palavras doeram mais. Aos olhares trocistas dos outros,
juntou-se o olhar inquisitorial do chefe. Má letra, seu Silva. Se meu pai fosse
vivo… Ele, que sonhava ver-me o doutor da família, dizia que eu tinha letra de
médico. Enganou-se comigo e com várias outras letras que que arruinaram a loja.
Más letras, certamente. Quase à porta da Universidade, retrocedi em busca
doutra estrada mais longa e, por isso, mais ruim. E fiquei na encruzilhada da
Vida, receoso e pedinchão, a bater a todas as portas. Por fim, entrei para ali,
de fato roçado e estômago vazio. Porta de salvação, julguei. De manhã, o chefe
aparecia no escritório, impante, pedagogo. Seu Silva, corrija essa conta.
Afinal, você não sabe nada. Sabia. Vinham-me à ideia lições inteiras que me
deram foros de bom aluno. Sempre notas altas em Ciências... Esforçava-me por
gritar: Fiz o 6.º ano do liceu. Sei mais do que o senhor. Mas calava-me e
ouvia. Quem recebe, deve seu Silva.
Aquilo era piada aos duzentos escudos que eu recebia no fim do mês. Os outros
riam, à sucapa. Que vergonha! Enervado, mais errava e confundia. E todo o dia o
mesmo verrinar obsecante: Raspe, seu Silva... Emende! O pêndulo do relógio a
embalar o tempo (cada minuto, uma hora de angústia). E o meu nome a rasgar o
silêncio, Silva... Ó Silva... O toque das 6 horas punha fim ao suplício. Até
amanhã, diziam. Até um dia, pensava eu. Recordava o liceu à hora buliçosa da
saída, tu cá, tu lá com os amigos;
capa e batina destacando a condição; passo firme a caminho de porta certa. E
partia sozinho, alheio à liberdade retomada, fato ruço no fio e passo trôpego a
caminho de porta incerta. À noite deambulava pelas ruas. Nos cafés, não entrava
com vergonha dos antigos companheiros, já doutores. Decerto, fariam vista
grossa. Mas o meu fato dava nas vistas… Certa vez, entrei numa taberna. Gente
maltrapilha em volta de mesas toscas, a beber e fumar. Um copo do vinho branco,
pedi a medo. Desconfiados, formaram grupos sussurrantes, que m olhavam de alto
a baixo. Adivinhei-lhes as palavras: um intruso. E retirei-me consternado. O meu
fato dava nas vistas…
Agora,
tudo me parece um sonho. O suco gástrico corroeu-me o estômago e as ideias. No
entanto, a tijela de sopa que os cantoneiros repartiram comigo, identificou-me
com o mundo. Recordo. Eu estava aqui estirado na berma da estrada, à hora da
sesta, e o sol entrava-me pelos rasgões das calças, suspensas da gravata que
tirei do pescoço. Um lugar ao sol. Há um mês que deixara o escritório, de
regresso à encruzilhada. Já não era o Silva, silva rasteira entre cedros do antanho.
Encontrara-me. Os cantoneiros, a meu lado, levantaram-se de enxada no ombro. Então, camarada?, perguntaram,
sorridentes. Olhei a estrada longa, reberberando
ao sol. Estrada do meu destino e de todos os Silvas quo têm má letra. Peguei na
enxada e segui-os». In Soeiro Pereira Gomes, Refúgio Perdido, Inéditos e Esparsos, (O
Pastiure, publicado no nº 318 de O Diabo, de 26 de Outubro de 1940), Edições
SEN, Porto, 1950.
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