«Manuel
Louvadeus de um galão subiu os degraus. Em cima, no patamar, topou a porta fechada
e deteve-se, quando ia para bater, como quem toma fôlego. Com a breca, achava
tudo tal qual! Os dez anos de ausência apagaram-se como um sopro perante a
obsessiva eternidade que se lhe oferecia ao lance de olhos. Tudo na mesma, a
velha aldraba, puída de tanto se lhe pegar, o espelho da fechadura escantilhado
a uma banda, a couceira de lenho fibroso e terso, não chamassem ao castanho os
ossos de Portugal. Quer à roda, o alpendre de telha-vã e os esteios
esgrouviados, a pedra negra da parede em que o musgo pastava seus herpes lucilantes,
e ainda o silêncio, ah, este silêncio da moradia rústica, a desoras, humilde,
suspicaz e atento como um rafeiro no ninho, quer por largo, os carvalhos do
vale e os telhados próximos, se envolviam na antiga paz vesperal do céu e da terra,
fusca e intáctil como a cobertura duma gare. Que distância, anos e anos que
correram na levada do tempo, e as coisas conservarem-se ali iguaizinhas,
estáticas, teimosas no seu ar de encantamento! Talvez mais velhas... Sim, mais
velhas, ferradas mais fundo pelos dentes da morte e a despenhar-se na voragem
como as telhas do beiral. E haviam, porventura, de resistir aos vaivéns mais que
o coirão de um homem, entretanto que se fartava de dar tombo por esses mundos
de Cristo?! Este sentimento, a transudar amargor, acabou por confortá-lo e
absolver a pobre casa da sua inalterável fisionomia.
Tornou
a olhar para a aldraba. Bato, não
bato, que é a que me prende os dedos?, ouviu uma voz… A voz de
Filomena, e estacou. Era lua cheia, pelos fins de Março Marçagão, na altura do
ano em que os dias são iguais às noites, e pelo tinir dos garfos e pausas
intermitentes assentou para consigo que estavam a cear. Miga bem a tigela!, dizia a voz materna, amorável no seu sotaque
ralhado. Miga bem, Jaime, que só tens caldo!
Depois as vozes calaram-se. Ressoam assim os córregos quando descem das serras
e tropeçam nos seixos solevantados. Mas ele que tinha que especular?!
Decidiu-se. Bateu uma... duas... três vezes, e postou-se, parado, à escuta, como
os mendigos de pois
de rezarem o padre-nosso. Mentalmente pôs-se a orçar o tempo que ia passando
pelo tempo que levariam a apreender o apelo, a erguer-se da esteira, a poisar a
malga, e a abrir-lhe a porta. Demoravam-se... Pareceram-lhe delongas a mais.
Não teriam ouvido! Considerando afinal que as pancadas, percutidas frouxas e irresolutas,
não se tivessem imposto à atenção, martelou rijo e afoito. Agora sim, uma voz
juvenil, abelhuda, destas que no cortiço estão sempre prontas a acudir ao
rumor, ergueu-se: Quem está lá? Gente…» In Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam,
Libraria Bertrand, Lisboa, 1958, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Cortesia
de LBertrand/JDACT