O oráculo
«(…) Quando Tongétamo chegou à região de Ebora, o
grupo estava reduzido a três. Um deles teve qualquer sonho que interpretou como
um presságio e decidiram prosseguir a marcha para Sul, até que foram atacados
por um bando de salteadores. Durante a luta Tongétamo fora ferido nas costas e
não se lembrava de mais nada; os seus companheiros estavam talvez cativos, ele
ficara abandonado em pleno campo, dado como morto. Esta foi a história contada
pelo estrangeiro. O meu tio, que na prática do seu ofício aprendera a desconfiar
da natureza humana, ouviu-o com certa incredulidade porque tudo aquilo lhe
pareceu um conto feito à medida exacta para encantar donzelas: revoltas,
chacinas, a Cidadela de Brácara a arder, um jovem príncipe escapando à
morte no último instante..., tudo lhe soava a fantasia e Camalo gostava das coisas
simples, das situações normais e sem surpresas. A história de Tongétamo
causou-lhe um certo mal-estar. Claro que na minha mãe ela teve o efeito oposto
e depressa transpareceu que não seria possível separar Tongétamo de Camala a
não ser pela violência. Porque (hoje estou certo disso, apesar da opinião
diferente do meu tio) também o meu pai se apaixonara profundamente pela minha
mãe; não se tratava, como Camalo sempre acreditou, de uma atracção passageira. Enfim,
o meu tio vergou-se à evidência: a única forma de evitar a desonra da família e
a necessária vingança era permitir o casamento e foi o que ele fez. Eu nasci
exactamente duzentos e setenta dias depois da cerimónia nupcial.
Quando o meu pai foi encontrado ferido e
inconsciente, Camalo advertira a irmã de que um regresso imediato a Balsa,
abandonando o propósito de encontrar o novo santuário da Lua, equivalia a uma
grave afronta à deusa. Ao menos, sugeriu, deviam procurar saber em Myrtilis se
as notícias chegadas ao Cineticum eram verdadeiras. Perdida na obsessão de
regressar, a minha mãe recusara dizendo que, como mulher, sabia melhor o que
podia agradar ou desagradar à deusa. E mostrou-se triunfante quando, já em
Balsa, uns amigos de Camalo garantiram que a informação não era exacta: havia,
de facto, um santuário da Lua, mas já muito antigo e ficava bem longe, para lá
do Tagus. De uma história velha fizera-se uma lenda nova, certamente alguns
viajantes haviam falado do santuário em Ebora ou Myrtilis e talvez o desejo de
atrair peregrinos e mercadores tivesse levado a gente local a deturpar o
relato. Ouvindo isto, Camala declarou que fora por vontade da deusa que ela,
procurando um lugar sagrado onde ele não existia, encontrara Tongétamo. Assim
tentam os mortais conhecer os desígnios dos deuses e torná-los propícios aos
seus interesses, porém sem resultado. Ao regressar a Balsa, desistindo das suas
intenções piedosas, a minha mãe atraíra sobre si a ira do céu. O casamento foi
um desastre. Não duvido, como afirmei, que o meu pai amasse verdadeiramente a
mulher, mas a vida no Cineticum era demasiado diferente daquela a que estava
habituado e além disso não podia esquecer a chacina da família, a fuga
ignominiosa. O seu desejo era regressar à Calécia, formar um exército, atacar
Brácara, lavar em sangue as afrontas e crimes, tomar o poder. Mas (e nisto o
meu tio teria razão no seu julgamento) faltava-lhe a força interior que faz um
verdadeiro chefe. A vontade de vingança era forte, mas não o bastante para
enfrentar com êxito dificuldades quase intransponíveis, estava só, o inimigo
tivera tempo para consolidar a posição conquistada. Depois, havia a mulher, que
em breve lhe daria o primeiro filho. Uma esposa cónia, mesmo muito amada, devia
ser uma novidade inquietante para um Brácaro. Entre os Lusitanos das regiões
mais ao norte, e muito especialmente entre os Calaicos, é costume as mulheres
acompanharem os seus homens na guerra e combaterem ao seu lado. Tongétamo terá
ficado desorientado com uma mulher que passava o dia dentro de casa, baixava os
olhos ao falar e fazia da passividade uma arma para dominar o marido. Quando eu
nasci, já o meu pai devia ter compreendido que ao casar abdicara da sua
liberdade, a menos que abandonasse a mulher e o filho. Essa angústia mortal
leu-a Camalo no rosto do cunhado, no dia do meu nascimento». In
João Aguiar, A Voz dos Deuses, 1984, composição de Maria Samagaio, 2005, Lisboa,
Sandra Ferreira, 2007, Grafiasa, Asa Editores, Rio Tinto, ISBN 972-41-1072-9.
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