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Deserto
Egípcio. 374 d. C.
«(…)
Era perfeito. Estava preparado para a sua libertação. Contemplando o punhado de
homens, encontrou o olhar de um deles, mais alto, cujas roupas o identificavam
como o líder. Concentrando-se intensamente no homem, Eunomius respirou
fundo e gritou com toda a força a única palavra que importava. Libertação!
Ao mesmo tempo que o grito ecoava na rocha e se propagava pela areia do
deserto, uma espada surgiu à sua direita, reluziu por segundos com a réstia de
sol, e num movimento rápido separou-lhe a cabeça do corpo, separando também a
sua vida da irreflexão do mundo físico.
Profundamente
agitado, Albinus encontrava-se sentado e a tremer no sombrio e solitário
quarto. Podia acender as luzes, naquele quarto sem janelas, a iluminação não
iria traí-lo, porém, sentia-se mais seguro na escuridão. Segurava o telefone
sem fios firmemente contra a face, a ponta arredondada bem encostada à maxila,
o sinal de chamada azunk no ouvido. O
suor corria-lhe em bica pelo rosto, pingando-lhe pelo nariz e deixando as suas
mãos escorregadias. O que foi que fiz?
O que estou eu a fazer? Estava
aterrorizado, mas não parecia haver outro caminho. Aquilo que planeavam era
demasiado terrível, e as consequências incomensuráveis. A sua consciência nunca
o deixaria viver em paz se não tentasse entrar em contacto com alguém que
pudesse pôr cobro àquilo antes de acontecer. A liberdade não pode ser obtida a
todo o custo. Na escuridão, desdobrou o pedaço de papel no qual havia rabiscado
o número do …, reavivando a memória à luz esverdeada do teclado do telefone.
Momentos depois, os seus dedos pressionavam nervosamente os números. O telefone
deu sinal de chamada uma vez. Duas. Ao terceiro e ao quarto toques, a sua
pulsação acelerou. Alguém tem de atender. Algo lhe dizia que não teria outra
oportunidade para realizar aquele telefonema. Ao sexto toque, escutou a
ligação. Albinus parou de respirar. Chegou à caixa de correio da linha de
denúncia pública do ... Sentiu-se desanimado. Uma gravação. Não antecipara
tal coisa. Talvez devesse tê-lo previsto, apercebeu-se de súbito; mas duvidar de
si próprio era uma armadilha demasiado fácil para o desespero. Não podia
abandonar a sua única esperança. Quando a mensagem terminou e um sinal sonoro
lhe indicou que podia começar a falar, Albinus proferiu precipitadamente o seu discurso.
Preparara-se para uma conversa, não para um resumo em monólogo.Eu, eu... o meu
nome não é importante. Possuo informações... sobre um ataque. Em Chicago. Uma
coisa terrível..., da Igreja da Verdade Arquejou, a respiração entrecortada, as
palavras insuficientes para a magnitude da sua mensagem. Estão em curso acontecimentos
terríveis. Têm de os impedir.
O
comando reuniu-se com carácter de urgência. O Grande Líder estava sentado com
os seus ajudantes directos em redor para, juntos, lidarem com a apostasia que
ameaçava deitar por terra décadas de preparativos. A data fixada como meta era
demasiado simbólica e tinha sido infundida de um grande significado para ser
abandonada, e havia já movimentações por todo o globo. Foi o Albinus, revelou
um dos irmãos, hesitante. Empurrou o nome para fora dos lábios apertados; o seu
sotaque italiano debatia-se com a forma estranha, estrangeira das palavras. É
um fraco, sempre o foi, acrescentou outro; a sua pronúncia espanhola
contrastava com a do italiano, mas nunca pensámos que fosse tão longe. A
posição dos seus ombros largos alternava entre o abatimento frustrado e a
tensão encolerizada. Até onde, exactamente?
O Grande Líder manteve um tom firme. Não queria que a irritação dos outros
dominasse a sua concentração. Falou com o … O homem que respondeu encontrava-se
à sua frente com os braços firmemente cruzados diante do peito. Se sentia
alguma emoção, as feições não o revelavam. Foi-nos confirmado por alguém lá dentro.
Deixou uma denúncia esta manhã. Usou o nosso nome. Mencionou um ataque. Vão
ficar alerta. Aquelas palavras provocaram uma tensão mais profunda, interrompida
apenas pelo italiano, que proferiu a implicação óbvia, revelando o seu olhar
mais medo do que nervosismo. O nosso escudo de confidencialidade está quebrado.
Este véu de anonimato, como lhe chama, desapareceu. Andato. O Grande Líder
absorveu as palavras; a ligeira tensão nos músculos das faces era o único
indício de que rangia os dentes. A envolvente força das suas feições, os olhos
vivos, sob um sobrolho cujas linhas suaves anunciavam sabedoria e experiência,
com maçãs do rosto modeladas de modo a sugerir poder sem no entanto serem tão
angulosas que parecessem cruéis, parecia escondida atrás de uma máscara de
concentração. Por fim, observou o homem diante de si. Temos de impedir o
Albinus. Esta noite. Chamem o Árabe se precisarem. Não podemos deixar que esse
homem vá dizer às autoridades mais do que já revelou». In A. M. Dean, O Escriba,
tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-204-5.
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