terça-feira, 28 de abril de 2015

O Escriba. A. M. Dean. «Uma coisa terrível..., da IVA, a respiração entrecortada, as palavras insuficientes para a magnitude da sua mensagem. Estão em curso acontecimentos terríveis. Têm de os impedir»

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Deserto Egípcio. 374 d. C.
«(…) Era perfeito. Estava preparado para a sua libertação. Contemplando o punhado de homens, encontrou o olhar de um deles, mais alto, cujas roupas o identificavam como o líder. Concentrando-se intensamente no homem, Eunomius respirou fundo e gritou com toda a força a única palavra que importava. Libertação! Ao mesmo tempo que o grito ecoava na rocha e se propagava pela areia do deserto, uma espada surgiu à sua direita, reluziu por segundos com a réstia de sol, e num movimento rápido separou-lhe a cabeça do corpo, separando também a sua vida da irreflexão do mundo físico.

Profundamente agitado, Albinus encontrava-se sentado e a tremer no sombrio e solitário quarto. Podia acender as luzes, naquele quarto sem janelas, a iluminação não iria traí-lo, porém, sentia-se mais seguro na escuridão. Segurava o telefone sem fios firmemente contra a face, a ponta arredondada bem encostada à maxila, o sinal de chamada azunk no ouvido. O suor corria-lhe em bica pelo rosto, pingando-lhe pelo nariz e deixando as suas mãos escorregadias. O que foi que fiz? O que estou eu a fazer? Estava aterrorizado, mas não parecia haver outro caminho. Aquilo que planeavam era demasiado terrível, e as consequências incomensuráveis. A sua consciência nunca o deixaria viver em paz se não tentasse entrar em contacto com alguém que pudesse pôr cobro àquilo antes de acontecer. A liberdade não pode ser obtida a todo o custo. Na escuridão, desdobrou o pedaço de papel no qual havia rabiscado o número do …, reavivando a memória à luz esverdeada do teclado do telefone. Momentos depois, os seus dedos pressionavam nervosamente os números. O telefone deu sinal de chamada uma vez. Duas. Ao terceiro e ao quarto toques, a sua pulsação acelerou. Alguém tem de atender. Algo lhe dizia que não teria outra oportunidade para realizar aquele telefonema. Ao sexto toque, escutou a ligação. Albinus parou de respirar. Chegou à caixa de correio da linha de denúncia pública do ... Sentiu-se desanimado. Uma gravação. Não antecipara tal coisa. Talvez devesse tê-lo previsto, apercebeu-se de súbito; mas duvidar de si próprio era uma armadilha demasiado fácil para o desespero. Não podia abandonar a sua única esperança. Quando a mensagem terminou e um sinal sonoro lhe indicou que podia começar a falar, Albinus proferiu precipitadamente o seu discurso. Preparara-se para uma conversa, não para um resumo em monólogo.Eu, eu... o meu nome não é importante. Possuo informações... sobre um ataque. Em Chicago. Uma coisa terrível..., da Igreja da Verdade Arquejou, a respiração entrecortada, as palavras insuficientes para a magnitude da sua mensagem. Estão em curso acontecimentos terríveis. Têm de os impedir.
O comando reuniu-se com carácter de urgência. O Grande Líder estava sentado com os seus ajudantes directos em redor para, juntos, lidarem com a apostasia que ameaçava deitar por terra décadas de preparativos. A data fixada como meta era demasiado simbólica e tinha sido infundida de um grande significado para ser abandonada, e havia já movimentações por todo o globo. Foi o Albinus, revelou um dos irmãos, hesitante. Empurrou o nome para fora dos lábios apertados; o seu sotaque italiano debatia-se com a forma estranha, estrangeira das palavras. É um fraco, sempre o foi, acrescentou outro; a sua pronúncia espanhola contrastava com a do italiano, mas nunca pensámos que fosse tão longe. A posição dos seus ombros largos alternava entre o abatimento frustrado e a tensão encolerizada. Até onde, exactamente? O Grande Líder manteve um tom firme. Não queria que a irritação dos outros dominasse a sua concentração. Falou com o … O homem que respondeu encontrava-se à sua frente com os braços firmemente cruzados diante do peito. Se sentia alguma emoção, as feições não o revelavam. Foi-nos confirmado por alguém lá dentro. Deixou uma denúncia esta manhã. Usou o nosso nome. Mencionou um ataque. Vão ficar alerta. Aquelas palavras provocaram uma tensão mais profunda, interrompida apenas pelo italiano, que proferiu a implicação óbvia, revelando o seu olhar mais medo do que nervosismo. O nosso escudo de confidencialidade está quebrado. Este véu de anonimato, como lhe chama, desapareceu. Andato. O Grande Líder absorveu as palavras; a ligeira tensão nos músculos das faces era o único indício de que rangia os dentes. A envolvente força das suas feições, os olhos vivos, sob um sobrolho cujas linhas suaves anunciavam sabedoria e experiência, com maçãs do rosto modeladas de modo a sugerir poder sem no entanto serem tão angulosas que parecessem cruéis, parecia escondida atrás de uma máscara de concentração. Por fim, observou o homem diante de si. Temos de impedir o Albinus. Esta noite. Chamem o Árabe se precisarem. Não podemos deixar que esse homem vá dizer às autoridades mais do que já revelou». In A. M. Dean, O Escriba, tradução de Dina Antunes, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-204-5.

Cortesia CAutor/JDACT