domingo, 19 de abril de 2015

Gaibéus. Alves Redol. «Quantas noites não pregava olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que estavam avessos a receber frescura»

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«Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem. Do Alto Ribatejo e da Beira Baixa, eles descem às lezírias pelas mondas e ceifas. Gaibéus lhes chamam»

Rancho
«Ia por três dias que o tractor parara de soluçar suas mágoas e a regadeira não via pinga de água trasfegada do Tejo. O arrozeiro, apertado pelo patrão, andava numa dobadoura por marachas' e linhas, a deitar olho aos canteiros de espiga mais loira, fazendo piques, agora aqui, ora ali, para que as águas fossem caminhando para a vala de esgoto e os ranchos pudessem meter foices no arrozal. Balde ao alto, descansado no ombro, o seu Arriques já pensava na volta à casa, pois da sangria à recolha do bago poucas semanas iam. Que rica seara! Andei-me nela que nem sombra atrás d'alma penada, mas o patrão arrinca para cima de quarenta sementes. Se os outros a pudessem comer co'a inveja… E lançava a vista sobre o manto de panículas aloiradas, que os camalhões percintavam, e uma aragem branda enrugava, como mareta em oceano de oiro. Mais além e aqui, uma mancha ou outra de verde, a denunciar o cromo que o sol lhe arrancava, indício de algum cabêço que as enxadas, no armar da terra, não tinham derrubado. S’o patrão não andasse de fogo no rabo por mor do rancho, seis dias de molho davam-lhe uns saquitos bem bons. Assim…, ainda adrega uma seara como por aqui não há outra.
Andava por oito meses que corria aqueles combros de alto a baixo. Primeiro, de bandeirolas a tirar miras para o erguer das travessas e a mandar homens na rebaixa, até os tabuleiros poderem receber uma lâmina de água para a sementeira; depois, a dirigir aquele caudal que todos os dias entrava lezíria dentro, pela regadeira mestra, não fossem afogar-se os pés de arroz ou morrer alguns por míngua. Quantas noites não pregava olho a traçar planos para os canteiros da ponta de baixo que estavam avessos a receber frescura. E erguia-se da esteira para percorrer o arrozal, tendo as estrelas por camaradas e, por guia, a endecha da água e o zangarreio das rãs. Às vezes o desânimo vencia-o, o desânimo e as sezões. Se a terra fosse dele, quantas vezes se deixaria ficar na poisada a refazer o corpo. Mas se não andasse, quem havia de cuidar daquilo?... Nunca patrão algum lhe dera romoque por desmazelo no trabalho. Ele era da família dos Milhanos de Marinhais, sempre famosos no Ribatejo por arrozeiros sabidos e safos de mândria. E lá ia, de balde ao ombro, a espreitar alguma maracha que precisasse de engravatada, por oscilação das terras, ou algum canteiro mais soberbo por desequilíbrio da gleba. Bem regara aquela maldita com o seu suor; longas horas de repouso linha perdido à sua volta. Mas também a alegria de ver tudo aquilo farto de espigas lhe dava o pago. Cada espiga era um monco de perú cheiínho de bago graúdo e loiro». In Alves Redol, Gaibéus, Edição do Autor, distribuição da Livraria Portugália, Barcelos, 1940.

Cortesia da Cª do Minho/JDACT