domingo, 31 de março de 2024

No 31. A Pintura de Paisagem na Poesia de Nuno Júdice. Para uma Leitura Gnóstica e Geopoética do Mundo. Egídia Souto.«Na esfera da história das artes plásticas portuguesas, a paisagem assume um carácter totalmente independente com o romantismo e posteriormente com a vigência da estética naturalista…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«É uma paisagem teatro do mundo, onde dialogam essencialmente filosofia, religião e pintura, que o poeta Nuno Júdice tenta alcançar. O sujeito poemático testemunha as metamorfoses pelas quais vai passando o cosmos. Estar no mundo, em harmonia com este, pressupõe uma nova filosofia onde a paisagem é mais filosófica e poética que geográfica - palimpsesto de todos os possíveis. O poeta, num eixo géo-poético e pluridisciplinar, cria uma paisagem que nasce de uma cosmologia criativa e de uma natureza inabitada e elegíaca, sublimada muitas vezes pelo quadro. Não será a pintura de paisagem um caminho para a perfeição? Ou talvez uma resposta para o lugar do ser no mundo, numa absoluta fusão do corpo com o poema? Ou será a pintura de paisagem uma contemplação do eu à espera da revelação?» In Resumo

«Nuno Júdice é uma das vozes poéticas mais significativas da literatura portuguesa desde os anos setenta. Na sua obra a paisagem e particularmente a pintura de paisagem são fundamentais como afirma o próprio: A minha relação com a natureza é determinante para o nascimento do poema, e isso tem a ver com a memória das estações, o clima. Mas o mais importante é o lado de transformações e variedade da paisagem

É uma paisagem teatro do mundo, onde dialogam filosofia, religião e pintura, que o poeta Nuno Júdice tenta alcançar desde a Noção de Poema (1972). A paisagem metamorfoseada que o poeta nos dá a ler, é um espelho da realidade. Como se pode ler em As Máscaras do Poema (1998) : Vemos então que a metáfora exige a presença de um contexto duplo: o de uma realidade, que se refere ao sujeito e transporta uma relação inconsciente desse sujeito como no seu todo ou em parte; e o de uma outra cena, em que uma peça destacada desse real vai sofrer uma outra designação, introduzindo um elemento de estranheza na percepção do real pelo sujeito. (AMP, 65)

Perante estas afirmações coloca-se a questão de compreender, na senda de Novalis, Heidegger, Kant e Edmund Burke, a transformação do sujeito através da paisagem. Mas de que forma é que o poeta transforma por seu turno a paisagem? Não será a pintura um caminho para o absoluto ? Ou será uma contemplação do eu à espera da revelação? Para responder a esta problemática, a minha leitura, à luz dos conceitos de ekphrasis, concederá uma grande importância ao mar lugar sagrado que atravessa toda esta obra. Tomarei como linha directiva a géo-poética defendida por Kenneth White. Trata-se não apenas de alcançar perspectivas geográficas, artistas ou filosóficas mas sim de caminhar, de traçar e calcorrear rotas que incluam o mundo, os homens e os lugares. Kenneth White refere que: La géopoétique, basée sur la trilogie éros, logos et cosmos, crée une cohérence générale – c’est cela que j’appelle « un monde.

Ora a paisagem que nós dá a ler e a ver Nuno Júdice aproxima-se de um certo panteísmo espinosiano no sentido em que esta surge como símbolo de reencontro com o sublime e o cosmos. E isto num ponto de vista que procura ascender às zonas de obscuridade do homem face si mesmo à procura de explicações da vida levando-nos a pensar no que Heidegger designava por dasein. Como se pode ler nestes versos de Estado dos Campos: O que corresponde ao reconhecimento do mundo, ou aquilo que, para uns, é uma explicação da vida, está contido nessa dimensão da natureza que nos é inacessível (…).

Antes de me debruçar em exemplos concretos de ecfrasis onde veremos inventariadas paisagens impressionistas e românticas começo por expor algumas noções de paisagem, a nível histórico. Michel Collot, um dos nomes mais significativos da geografia literária considera que le paysage est un carrefour où se rencontrent des éléments venus de la nature et la culture, de la géographie et de l’histoire, de l’intérieur et de l’extérieur, de l’individu et de la collectivité, du réel et du symbolique. Se, antes do século XIX, a noção de paisagem é pouco empregue e significa um país, e uma porção de espaço, hoje este conceito é interdisciplinar. Em Portugal, foi em 1567 que surgiu pela primeira vez com o nome de paugagem, numa referência na quarta parte de Crónica do Sereníssimo Senhor Rei D. Manuel de Damião de Góis.

No entanto é principalmente na época romântica que a paisagem se torna grande produtora de emoções e de experiências subjectivas como constata a historiadora Diana dos Santos. O gosto pela natureza e pelo sublime desenvolveu-se a partir do século XVIII em Inglaterra e Alemanha e é em torno desta estética que nos reunimos hoje. Pois para Nuno Júdice é primordial o retorno, quase metafísico, à natureza numa concepção de Schelling que implica um sistema que reúne Natureza e espírito com o intuito de atingir o absoluto» In Egídia Souto, A Pintura de Paisagem na Poesia de Nuno Júdice. Para uma Leitura Gnóstica e Geopoética do Mundo, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Via Panorâmica, Porto,  Instituto de Filosofia, Universidade do Porto, ifilosofia@letras.up.pt.

 Cortesia de FaculdadeLetrasUniversidadePorto/JDACT

Paisagem, poesia, pintura, JDACT, Conhecimento, Cultura,  

sábado, 30 de março de 2024

O Corsário dos Sete Mares. Deana Barroqueiro. «… o menino alçava-se em bicos dos pés a olhar maravilhado para o vaivém dos elefantes de trabalho que transportavam nas trombas os pesados troncos de madeira, cortados pelos lenhadores da casta dos revolons…»

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«Finalmente em Cochim, onde haviam desembarcado no primeiro dia de Novembro, a fortaleza de madeira, com a sua pequena povoação de casas de troncos e cobertura de folhas de palma, causara-lhe desilusão e temor. Enquanto António não era provido no seu cargo, ainda ocupado pelo oficial em funções, fora-lhe atribuída para moradia uma dessas cabanas, junto ao baluarte, onde ela vivera em contínuo sobressalto do fogo, dominando os medos para não enfadar o seu homem e acorrendo sempre ao toque do sino para combater as chamas.

Graças a Zobeida e Giauhare, não sentira solidão, apesar de ser a primeira portuguesa a pisar terra da Índia, uma proeza de que muito se orgulhava. Poucos dias após a sua chegada, apenas instalada na sua nova casa e com a ajuda das meninas e de uma parteira malabar, dera à luz o filho naquele mundo onde tudo lhe era estranho. Quase morrera de susto, quando a aparadeira gentia a lavara e ao filho, por três vezes, em água quente e fria e não enfaixara a criança, como era de uso em Portugal. Os homens fazem as leis, as mulheres os costumes!, pensara, decidida a aceitar os modos da terra que não fossem contra a sua religião e natureza e este do banho, sobretudo quando estava com as regras, o que era proibido pelos físicos portugueses como coisa prejudicial e muito perigosa, era afinal um preceito prazeiroso que adoçava os sentidos.

Não se queixara, nem se arrependera da sua vinda, porque, se era esse o preço a pagar para estar com o homem que amava, dava por bem empregue o sacrifício. No ano seguinte, Iria assistiria maravilhada à reconstrução da fortaleza em pedra e cal, ordenada por dom Francisco de Almeida, que lograra o grande feito de convencer el-rei a dar-lhe permissão para a fazer assim forte e cobrir de telha os seus edifícios e as casas da nova povoação. Como alcaide-mor de Cochim, António tivera direito a casa dentro da fortaleza, para onde Iria se mudara com o filho e as meninas.

Decorridos já oito anos sobre esses sucessos, Iria ainda gostava de passear ao longo das ameias e varandas das suas altas muralhas, levando Diogo pela mão e contando-lhe histórias. Era uma bela construção de forma quadrada, tendo nas duas esquinas do lado da praia cubelos de dois sobrados, cobertos com pasta de chumbo e guarnecidos de ameias; nas outras duas esquinas erguiam-se as torres quadradas também de dois sobrados, o de cima para as casas do capitão e do alcaide-mor com a sua gente, o de baixo para armazéns de mercadorias grossas.

Caminhando pelas varandas que ligavam as torres, mãe e filho podiam ver, no lado de dentro, o pátio com o grande poço no meio e a casa da tranqueira que fora reforçada, onde viviam o feitor e os restantes oficiais. A porta abria para o lado do mar e, no interior, tinham construído um vasto alpendre com bancos muito bem lavrados onde o vizo-rei vinha tomar o fresco com os seus fidalgos. Já não necessitava de levantar Diogo nos braços para ele ver a ribeira em que se varavam as naus, com os estaleiros para a sua reparação e também construção de navios tão bons como os de Portugal. Agora, o menino alçava-se em bicos dos pés a olhar maravilhado para o vaivém dos elefantes de trabalho que transportavam nas trombas os pesados troncos de madeira, cortados pelos lenhadores da casta dos revolons, para os locais indicados pelos cornacas seminus escarranchados nos seus cachaços». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica,

sexta-feira, 29 de março de 2024

O Corsário dos Sete Mares. Deana Barroqueiro. «… os homens que andavam nas fainas traziam todos os seus fatos vestidos, em camadas sobrepostas de saios e gibões, bragas e calças, botas, borzeguins e sapatos, barretes, boinas e sombreiros, e até cabeleiras de vestir! Iria fizera outro tanto, mas quase perdera os dedos das mãos e dos pés»

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Quando falares, cuida que tuas palavras sejam melhores que o silêncio (hindu)

Carta de Afonso de Albuquerque a el-rei Manuel I

«Senhor: Vossa Alteza me culpa, me culpa, me culpa em algumas cousas de cá da Índia, e creio que será por má informação que vos de mim darão algumas pessoas, com inveja e dor de meus feitos e meus serviços. Os que vos estas cousas escrevem, não andam em minha companhia, nem me vêem o rosto, nem são companheiros em meus trabalhos, perigos e fadigas, nem vestem as armas, (…) mas querem ganhar autoridade em vos escreverem mil enganos e falsidades; prognosticam e profetizam, falam com feiticeiras que lhes digam o que está por vir, e ajuntam toda essa massa, de que fazem esse pastel que lá mandam a vossalteza cada ano (…) e não vos deixam tomar verdadeiro assento nas cousas de vosso serviço, nem determinar o caminho que quereis que leve o negócio da Índia. Digo-vos, senhor, isto, porque se bem olhardes vossos regimentos e determinações, cada ano vem um contrairo ao outro, e cada ano fazeis uma mudança e haveis novo conselho, e a Índia não é o castelo da Mina, para cada ano bulirdes com ela, porque há nela muito grandes reis e senhores (…) que s’esforçam a vos defender que não segureis vosso estado nela, nem vos façais forte na terra, nem lhe ganheis os lugares principais; e estão confiados que haveis de leixar a Índia (…) E vossalteza ajuda-os a seu propósito, porque uma hora pondes um emplastro para este feito vir a furo, outra hora lhe pondes defensivos que não crie matéria; e tanto pode vossalteza ir por este caminho, que dareis com todo feito no chão. (…)

De Cananor ao primeiro dia de Dezembro de 1513.

Passavam já três relógios do quarto da prima quando Bento Castanho recomeça a saga de Iria Pereira e Fernão Mendes semicerra os olhos e deixa-se ir, no sabor das palavras do narrador, ao encontro do passado e daquela valente mulher, para lhe imaginar a vida e a luta em Cochim, longe da família que a trouxera ao mundo e da terra onde deixara as suas raízes.

Iria Pereira tomara a longa navegação do reino para a Índia, sete anos antes, como castigo e expiação dos seus pecados, sofrendo sem um queixume um terrível martírio durante mais de sete negregados meses escondida na S. Jerónimo, a nau de Francisco de Almeida, o vizo-rei da Índia. Muitos homens fortes haviam sucumbido às agruras da infernal viagem e só por milagre da misericordiosa Santa Iria, sua protectora, é que ela não morrera nem tivera um desmancho, encafuada num buraco malcheiroso, para não denunciar a sua presença, contando apenas com a ajuda do primo, presa de terríveis vagados que ora a deixavam prostrada, como desacordada, ora a faziam botar a comida e o estômago pela boca, mareada de morte.

O último mês de viagem, Outubro de mil quinhentos e cinco, coincidira com o fim da sua prenhez e, apesar do incómodo peso e do calor, fora menos penoso do que os anteriores. Por terem partido de Lisboa em Novembro, sofrera o primeiro Inverno quase até Cabo Verde, logo seguido de um Verão de grandes calmas, ao passarem a linha equinocial; contudo, fora muito pior o segundo Inverno, cerca do cabo da Boa Esperança, quando nevou no dia de S. João e seguintes, com tanta força que os grumetes passavam horas a lançar a neve dos navios às pazadas. O vizo-rei e os demais fidalgos não saíam dos seus aposentos, assando-se aos braseiros, por ser menor o perigo do fogo, e os homens que andavam nas fainas traziam todos os seus fatos vestidos, em camadas sobrepostas de saios e gibões, bragas e calças, botas, borzeguins e sapatos, barretes, boinas e sombreiros, e até cabeleiras de vestir! Iria fizera outro tanto, mas quase perdera os dedos das mãos e dos pés.

Depois adviera medonha tempestade quando, para fugir do frio, se tinham acercado de terra: ondas altíssimas pareciam querer engolir as naus e, no seu esconderijo, sobrepondo-se ao bramido do mar e ao estrondear da trovoada, chegavam-lhe os gritos e rogos que os matalotes lançavam aos céus, encomendando a salvação da sua alma a Jesus Cristo ou a Nossa Senhora, e ela orara também em silêncio, à espera da morte. As suas vozes haviam chegado aos céus, porque o temporal amansara antes de os navios se desfazerem e serem engolidos pelos mares». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

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Iacobus. Aventura dos Templários no Caminho de Santiago. Matilde Asensi» … os pueri oblati acompanhavam a liturgia entre bocejos, mas não pude distinguir mais que um grupo de inquietas e minúsculas sombras; a nave estava mergulhada em trevas, iluminada apenas por algumas dezenas de círios»

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«Paramos, por fim, em frente à porta principal da abadia, onde fui recebido gentilmente pelo subprior, um monge jovem e sério, de nobre aspecto, e, sem dúvida, de sublime berço, pelo que pude deduzir de suas maneiras e andares; introduziu-me com presteza na muito bela casa do abade. Também este e o prior me receberam de maneira muito correcta, notava-se que eram pessoas importantes, acostumadas a receber visitantes ilustres; mas mostraram-se ainda muito mais acolhedores e gentis quando me viram sair de minha nova cela vestindo o mais parecido ao hábito mauriciano que puderam encontrar sem transgredir o respeito devido à sua Regra:túnica branca até os tornozelos com capa, sem escapulário nem cinto; e para os pés, sandálias de couro cru, muito diferentes das deles, fechadas e pretas.

Passeando pelo claustro, verifiquei que aquelas vestes eram apropriadas para o frio, muito mais quentes que meu gibão de mangas largas e minha túnica, de maneira que meu corpo endurecido, acostumado a grandes rigores, se acomodou rapidamente àquela roupa que, dali em diante, seria a minha.

Aproximava-se o Inverno, e, embora em Ponç de Riba a neve não seja coisa rara, aquele ano foi especialmente duro, não só para o campo e as colheitas, mas também para os homens. A véspera de Natal nos pegou, aos habitantes do mosteiro, sitiados por um interminável manto branco. Durante as semanas que se seguiram à minha chegada, procurei, dentro do que me foi possível, permanecer à margem da vida e das intrigas do mosteiro. Embora de índole diferente, também nas capitanias dos Cavaleiros hospitalários ocorriam situações de profunda tensão por motivos quase sempre triviais… Um bom abade, ou um bom prior, como também um bom mestre ou um bom senescal, distinguem-se exactamente pelo controle que exercem sobre sua comunidade, evitando esses problemas.

Meu distanciamento da vida do mosteiro, contudo, não podia ser total, visto que, como monge hospitalar, devia estar presente aos ofícios religiosos comunitários, e, como médico, passava algumas horas por dia no hospital, em contacto com os irmãos doentes.

Naturalmente, eu evitava os capítulos, que eram assunto privado, e em absoluto era obrigado a realizar tarefa alguma que não fosse de meu agrado. Laudes, Prima, Tertia, Sexta, Noa, Vésperas e Completas regulavam meu horário quotidiano de estudo, almoço, passeio, trabalho e sono, com precisão matemática. Às vezes, vítima da inquietude e da saudade de minha distante ilha, eu rondava incansavelmente pelo claustro contemplando seus singulares capitéis, ou subia à torre da igreja para fazer companhia ao noviço vigia, ou ainda caminhava sem destino entre a biblioteca e a sala capitular, entre o refeitório e os dormitórios, também entre os banheiros e a cozinha, em uma tentativa de serenar meu ânimo e aliviar a urgência que sentia, por fim, aquele a quem eu havia baptizado, no meu íntimo, como Jonas; não o Jonas que entrou assustado no ventre da baleia, mas o que saiu dele livre e renovado.

Certo dia, durante a prece, escutei entre os cantos uma tosse infantil e cavernosa que me sobressaltou: não fosse pelo facto de aquela tosse não ter saído de meu peito, eu poderia jurar que eu mesmo pigarreava e sufocava. Olhei activamente em direcção à parte onde, sob o atento olhar do muito paciente irmão ama-seca, os pueri oblati acompanhavam a liturgia entre bocejos, mas não pude distinguir mais que um grupo de inquietas e minúsculas sombras; a nave estava mergulhada em trevas, iluminada apenas por algumas dezenas de círios». In Matilde Asensi, Iacobus, Aventura dos Templários no Caminho de Santiago, 2000, Editorial Planeta, 2006, 2013, ISBN 978-854 220-274-8.

Cortesia de EditorialPlaneta/JDACT

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quarta-feira, 27 de março de 2024

Iacobus. Aventura dos Templários no Caminho de Santiago. Matilde Asensi» … abandonaria o gibão, a cota e o manto negro com a cruz alta branca, e substituiria o elmo, a espada e o escudo pelo cálamo, a tinta e o scrinium»

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«É evidente que um cavaleiro hospitalar como eu não tem lugar, ao menos aparentemente, em um recinto sagrado dedicado ao estudo e à oração, mas meu caso era singular, visto que, além da verdadeira e secreta razão que havia me levado até Ponç de Riba, minha Ordem estava especialmente interessada, pelo bem geral de nossos hospitais, no conhecimento das terríveis febres eruptivas, as varíolas, que tão magnificamente foram descritas pelos médicos árabes, assim como a preparação de xaropes, álcoois, pomadas e unguentos dos quais havíamos tido alguma notícia durante os anos que durou nossa presença no reino de Jerusalém.

Especificamente, eu sentia um particularíssimo afã de estudar o Atarrif, de Albucasis o Cordobês, obra conhecida também como Metodus medendi depois de sua tradução ao latim por Gerardo de Cremona. Na realidade, para mim, tanto fazia a língua em que estivesse escrita a cópia do mosteiro, pois domino várias delas com desenvoltura, assim como todos os cavaleiros que tiveram de lutar na Síria ou na Palestina. Esperava encontrar nesse livro os segredos das incisões sem dor em corpos vivos e dos cautérios, tão necessários em tempos de guerra, e aprender tudo acerca do maravilhoso instrumental médico dos persas, minuciosamente descrito pelo grande Albucasis, para poder mandar fabricá-lo com precisão assim que voltasse a Rodas.

Desse modo, nesse mesmo dia abandonaria o gibão, a cota e o manto negro com a cruz alta branca, e substituiria o elmo, a espada e o escudo pelo cálamo, a tinta e o scrinium. Não deixava de ser um projecto apaixonante, é evidente, mas, como disse, não era o verdadeiro motivo pelo qual eu estava entrando nas terras do mosteiro; a verdadeira razão que havia me levado até ali, uma razão exclusivamente pessoal, amparada desde o primeiro momento pelo grande senescal de Rodas, era que, naquele lugar, devia encontrar alguém muito importante de quem não sabia absolutamente nada: nem qual era seu nome, nem quem era, nem como era… nem sequer se continuava ali naquele momento.

Contudo, confiava em mim mesmo e na Providência para obter o triunfo em tão árdua missão. Não era à toa que me chamam Perquisitore. Atravessei o portão da muralha e desmontei sossegadamente de meu cavalo para não dar impressão de violência em um recinto de paz. Fui recebido pelo irmão despenseiro, prevenido de minha chegada, mais tarde soube que um noviço vigia sempre as imediações na torre da igreja, costume que guardam dos tempos não tão distantes das aceifas mouras, e com meu cavalo seguro pelas rédeas, acompanhado pelo pequeno despenseiro, dirigi-me ao interior do recinto observando a perfeita distribuição do mosteiro, cujas dependências e edifícios estavam muito bem organizados ao redor do claustro maior. Havia outro claustro, o menor, mais antigo, situado à esquerda de uma pequena construção que me pareceu o hospital». In Matilde Asensi, Iacobus, Aventura dos Templários no Caminho de Santiago, 2000, Editorial Planeta, 2006, 2013, ISBN 978-854 220-274-8.

Cortesia de EditorialPlaneta/JDACT

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terça-feira, 26 de março de 2024

Iacobus. Aventura dos Templários no Caminho de Santiago. Matilde Asensi» Meu cavalo, um belo animal de poderosas ancas, fazia verdadeiros esforços para correr ao ritmo que minha pressa lhe impunha, enquanto cruzávamos a galope os campos de trigo e cevada e atravessávamos velozmente muitas aldeias e vilarejos»

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«É inexplicável que a esta altura, eu, Galcerán de Born, até pouco tempo cavaleiro da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, segundo filho do nobre senhor de Taradell, que foi cruzado em Terra Santa e é vassalo de Nosso Senhor Jaime II de Aragão, possa crer ainda na existência de um inevitável destino oculto por trás dos aparentes acasos da vida. Contudo, quando penso nos últimos quatro anos, e penso neles com bastante frequência, não consigo me livrar da suspeita de que um misterioso fatum, talvez esse supremum fatum de que fala a Cabala, tece os fios dos acontecimentos com uma lúcida visão de futuro sem contar, em absoluto, com nossos desejos e projectos. Assim sendo, com o propósito de tentar clarear minhas confusas ideias e com o desejo de deixar registo dos estranhos pormenores desta história, para que possam ser conhecidos fielmente pelas futuras gerações, começo esta crónica no ano de Nosso Senhor de 1319, na pequena localidade portuguesa de Serra d’El-Rei, onde, dentre outras actividades, actuo como médico». In Prólogo

«Assim que desembarquei da robusta nau siciliana na qual havia feito a longa viagem desde Rodas, com extenuantes escalas em Chipre, Atenas, Sardenha e Maiorca, e após apresentar minhas cartas na Capitania provincial de minha Ordem em Barcelona, rapidamente deixei a cidade para me dirigir a Taradell e fazer uma rápida visita a meus pais, a quem não via fazia doze anos. Embora houvesse gostado de permanecer alguns dias ao lado deles, só pude ficar umas poucas horas, pois meu verdadeiro objectivo era chegar quanto antes ao distante mosteiro mauriciano de Ponç de Riba, a pouco mais de duzentas milhas ao sul do reino, junto a terras que, até não muito tempo, estavam ainda nas mãos de mouros.

Tinha algo muito importante para fazer naquele lugar, tão importante a ponto de eu abandonar subitamente minha ilha, minha casa e meu trabalho, embora, oficialmente, apenas para dedicar alguns anos ao criterioso estudo de certos livros que obravam em poder do mosteiro e que haviam sido postos à minha disposição graças às influências e às solicitações de minha Ordem.

Meu cavalo, um belo animal de poderosas ancas, fazia verdadeiros esforços para correr ao ritmo que minha pressa lhe impunha, enquanto cruzávamos a galope os campos de trigo e cevada e atravessávamos velozmente muitas aldeias e vilarejos. Não era um bom ano para as colheitas, aquele de 1315, e a fome se espalhava como a peste por todos os reinos cristãos. Contudo, o longo tempo passado longe de minha terra me fazia vê-la com os olhos cegos de um apaixonado, linda e rica, como sempre.

Logo avistei os vastos territórios mauricianos, próximos à localidade de Torá, e a seguir os altos muros da abadia e as pontudas torres de sua linda igreja. Sem abrigar nenhuma dúvida, atrevo-me a afirmar que Ponç de Riba, fundado cento e cinquenta anos antes, por Ramón Berenguer IV, é um dos maiores e mais majestosos mosteiros que eu jamais vi, e sua riquíssima biblioteca é única deste lado do mundo, pois não só possui os códices sacros mais extraordinários da cristandade, como também praticamente todos os textos científicos, árabes e judeus, condenados pela hierarquia eclesiástica, visto que, felizmente, os monges de São Maurício sempre se caracterizaram por ter um espírito muito aberto a todo tipo de riqueza. Nos arquivos de Ponç de Riba, cheguei a ver coisas que ninguém acreditaria: cartulários hebreus, bulas papais e cartas de reis muçulmanos que teriam impressionado ao estudioso mais imperturbável». In Matilde Asensi, Iacobus, Aventura dos Templários no Caminho de Santiago, 2000, Editorial Planeta, 2006, 2013, ISBN 978-854 220-274-8.

Cortesia de EditorialPlaneta/JDACT

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A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Chegava Maio. Frei Estêvão e Marco Túlio que, disfarçados, rondavam o Bargello, certa madrugada viram el-rei ser levado, sob forte escolta, numa carroça, atravessar o Arno por il ponte Vecchio e, pela porta Romana, abandonar a cidade em direcção ao sul»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«... que ele nunca chegou a usar, adiantou frei Estêvão. Depois, enquanto el-rei ajoelhava diante do túmulo a rezar, os companheiros passeavam os olhos pelo recinto, desde o pavimento em cosmatesco à abóbada com medalhões de Luca della Robbia, aos frisos com os brasões da família, ao painel dos três santos... Que santos são?, perguntava Túlio em voz baixa. São Tiago, e o frade apontava, aquele São Vicente e este Santo Eustáquio.

Porquê? O primeiro, patrono do cardeal. Sabeis latim? Não? Iacobus é o nome latino de Jaime. O segundo por ser padroeiro de Lisboa, de que ele foi bispo... o terceiro, concluía el-rei que se lhes juntara, por ser o santo de seu título cardinalício. Observavam agora a estátua jacente, a serenidade da expressão do cardeal, os dois puni segurando o manto mortuário...

Nada melhor que o mármore, observou Marco Túlio, para dar a ideia do sono eterno... e liam o epitáfio... MORS IVVENEM RAPVIT... VIX.NA.XXV.M.XI.D.X. OBIIT AN.SAL.MCCCCLIX..., morreu na idade de vinte e cinco anos, traduzia frei Estêvão, onze meses e dez dias, em mil quatrocentos e cinquenta e nove...

Ao descerem da colina, disse el-rei: Procuremos agora a protecção do grão-duque meu primo. Seguiram pela margem do Arno em direcção ao palácio ducal. Aguardava-os a sombra negra de Filipe de Espanha: o grão-duque, receoso de outro sucesso como o de Veneza, negou-se a recebê-lo e ordenou que o prendessem no Bargello.

Frei Estêvão e Marco Túlio ficaram cá fora descoroçoados, sem bem saberem que fazer. Enfadados se viram também os fidalgos portugueses, em Veneza, com as novas que lhes chegavam das buscas castelhanas. Ordenaram de partir todos, cada um por seu caminho, uns por mar, outros por terra, para Florença e lá se ajuntarem.

Acrescentou-se-lhes o enfado, aí chegados, com saberem pelos dois amigos da prisão de el-rei e ainda mais quando se acharam, por ordem do grão-duque, intimados a sair do estado da Toscana.

Os meses escoavam-se. O grão-duque carteava-se com Filipe terceiro. Dispunha-se, com ânimo servil, a entregar-lhe o prisioneiro. Dissesse Sua Majestade o que houvesse por bem. Faz o rei de Espanha reunir o conselho de estado, que sugere seja o homem entregue ao vice-rei de Espanha em Nápoles. Devia este averiguar las senales públicas y secretas del charlatán... quien es y de que lugar y que el lo confiese y quien le há metido en este enbuste. Não o condenassem à morte, mas a galeras perpétuas, vindo depois a Espanha para que en todas partes sea visto y con esso se desenganen deste falso rumor...

Chegava Maio. Frei Estêvão e Marco Túlio que, disfarçados, rondavam o Bargello, certa madrugada viram el-rei ser levado, sob forte escolta, numa carroça, atravessar o Arno por il ponte Vecchio e, pela porta Romana, abandonar a cidade em direcção ao sul. Afastados e escondidos, vigiavam também os olhos de Nuno da Costa». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Sem demora atravessaram o rio por San Nicolò e por Monte alle Croci subiram a San Miniato. Pararam a olhar do alto o casario, do vermelho dos telhados a erguerem-se as torres de pedra alvacenta…»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«A manhã clareava, avistava-se a grande distância o casario de uma cidade, algumas ribas mais elevadas do Pó erguiam-se um pouco acima do trasvaze das águas, vararam o barco na raiz de uma colina, junto a um açude abeberado de choupos e canaviais.

Há muito que desconfiava, disse frei Estêvão. Julgo saber quem é. El-rei acordava. Não prosseguiram a conversa. Saíram em terra e, um pouco acima, abrigados da nortada na concha de uma lapa, sentaram-se. Marco Túlio fez-lhes sinal que aguardassem. Viram-no desaparecer na lomba do teso e daí a obra de alguns minutos chegava ele com um molho de lenha e, pendente da cintura pelas patas, um corpulento coelho de olho vidrado e pingando sangue dos narizes: O vosso dejejum, Alteza.

O rei lembrou-se de Telo e o seu olhar entristeceu. Petiscado lume, levaram as cavacas algum tanto a pegar, mas ao fim, com a paciência e a arte de Túlio, uma boa fogueira crepitava e o coelho, esfolado e estripado pela destreza do pajem, assava num espeto de salgueiro ressumando banha.

Se me não engano, disse frei Estêvão, aquela cidade além... deve ser Ferrara... acrescentou el-rei. É Ferrara, asseverou Túlio. Conheço-lhe as muralhas e, lá dentro, as flechas da catedral e a torre do castelo. Apesar de terra do papa, propôs frei Estêvão, será melhor evitá-la... os espanhóis já devem estar avisados... alongarmo-nos mais adiante, por Bolonha, caminho de Florença e daí rumar a Livorno no mar da Ligúria, a tomarmos barco para França...

Para prevenirem serem reconhecidos por possíveis esculcas, Marco Túlio, useiro nestas artes, vestiu-se de florentino, el-rei largou o capelo e tomou chapéu e espada, só frei Estêvão permaneceu com seu hábito de São Domingos. Fizeram jornada por Bolonha até Florença.

Eis terra amiga!, disse el-rei à vista da cidade. Seremos aqui bem acolhidos. De onde vos vem essa esperança, Alteza?, perguntou o frade. É meu primo o duque da Toscana, Fernando primeiro. Deus vos ouça. Mas, antes de lhe irmos falar, desejo visitar o túmulo de um ilustre príncipe português. Aqui? De quem falais? Do cardeal dom Jaime, filho do infante dom Pedro e neto de el-rei dom João primeiro. Está sepultado na basílica de San Miniato al Monte.

Sem demora atravessaram o rio por San Nicolò e por Monte alle Croci subiram a San Miniato. Pararam a olhar do alto o casario, do vermelho dos telhados a erguerem-se as torres de pedra alvacenta, em volta colinas azuladas, as manchas verde-negras esguias dos ciprestes, a cinza rebolada dos olivais, o espelho do rio a cintilar.

Quem mandou construir a capela do cardeal de Portugal?, perguntava Marco Túlio ao entrarem na basílica. Não sei grandes pormenores, respondeu el-rei. Dinheiros do infante dom Pedro, seu pai, depositados em Florença e distribuídos pelos irmãos herdeiros, parecem ter pago os custos. Caminharam em silêncio até à entrada da capela e logo na fachada depararam, ao alto, com o brasão do príncipe encimado pelo chapéu cardinalício...» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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domingo, 24 de março de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Tire-se um rei, ponha-se outro, conquanto, na floresta de enganos e desenganos, permaneça a ressurreição... Sabeis, que temos entre nós um traidor? Acordou Marco Túlio a frei Estêvão do solilóquio interior»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Dobaram as horas até que, alta madrugada, regressou frei Estêvão com o hábito. Vós, senhores, dizia enquanto ajudava el-rei a vestir-se, ficai aqui quietos, como se Sua Alteza estivesse pousando. Sem fazerem bulha saíram ambos, com Marco Túlio, e se foram pelo Grande Canal, entrando pelo rio de San Vio, ao mosteiro de São Domingos. Aqui, senhor, dizia o frade, estais seguro e fora de perigo daquela canalha que pela boca da rua fervia. Agora, disse el-rei, é urgente que eu saia da cidade. Estará tudo prestes em pouco espaço, Alteza.

Foi dentro e tornou com um fradinho velho que faria companhia a el-rei naquela jornada. Mas o frade, mal se viu embarcado na gôndola com um mar alteroso, apertou-se-lhe o coração e saiu fora, não havendo maneira de o convencer a acompanhar o viajante. Vejo-me forçado a ir convosco, disse frei Estêvão. Seria melhor que eu ficasse, para desnorteio dos Castelhanos. Sou mais conhecido e de maior suspeita. Mas, a Deus graças, que serei vosso ditoso companheiro neste transe.

Marco Túlio por barqueiro, na manhã nascente se partiram, com vento teso, fazendo-se às águas revoltas que, não fossem as casas, confundiam canais, rios e ruas da cidade. Em redor da casa de dom João, os Espanhóis alvoroçavam-se. Corria que alguns deles haviam visto entrar um frade e saírem dois. Informado, o embaixador expediu logo correio por mar para ir dando rebate dos frades por todas as ribas e costas. Mas já, esgueirando-se por entre canaviais, sinuosidades de ribeiras, véus de choupais, moitas de funchos na pantanosa planície, os fugitivos iam longe. Sob o toldo da ré acomodou-se o rei, fatigado. El-rei adormeceu, disse Marco Túlio em voz baixa manobrando o timão.

Frei Estêvão olhou o rei e o pensamento enfunou-se-lhe como as velas da falua. Aqui vou eu com Sua Alteza. Aqui vou eu a caminho do futuro, de não sei onde nem quando, a caminho de algures, de alhures, escoltando uma ideia. As mudanças não alteram a natureza das pessoas. Arreiem-se bandeiras dos mastros, para ver ondular ao vento outras cores e outros símbolos, abafem-se hinos, amordacem-se gritos de guerra, para gritar outros ideais, cantar outras verdades. Anatematizem-se reformas, para decretar em concílios dogmas de outra fé, caminhos das consciências. Apeia daí o teu ídolo, o teu herói, para eu lá colocar o meu. Sábio foi aquele príncipe que não permitiu lhe erguessem estátua nos Estaus. Troquem-se os nomes de ruas, de pontes, de castelos e palácios, de cidades, nações e reinos. Não se muda o essencial, que é o destino e a morte.

Tanta canseira, meu Deus! Doem-me os ossos da alma. Amortalha-te, também tu, no capote e dormita... Mas esta luta não é de casca de ovo, de cortiça de árvore, senão do âmago, do cerne, da gema, da seiva. El-rei é a ressurreição da liberdade dos antepassados, que lavraram a terra, o mar e a história... Como ele dorme! Que frágil parece! E se os inimigos o alcançam? Se mo matam?... Não matam a ideia. Irei até ao fim. Para o proteger ou para o ressuscitar fá-lo-ei, se for preciso, substituir por esse outro que, parecido com ele, aí vai a velejar o seu sonho. Tire-se um rei, ponha-se outro, conquanto, na floresta de enganos e desenganos, permaneça a ressurreição... Sabeis, que temos entre nós um traidor? Acordou Marco Túlio a frei Estêvão do solilóquio interior». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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Coração Tão Branco. Javier Marías. «… ou em sussurros imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte»

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«Assim, o que vemos e ouvimos acaba se assemelhando e até se igualando ao que não vimos nem ouvimos, é apenas uma questão de tempo, ou de que desapareçamos. E apesar de tudo não podemos deixar de encaminhar nossas vidas para o ouvir e o ver e o presenciar e o saber, com a convicção de que essas nossas vidas dependem de estarmos juntos um dia

ou de atendermos um telefonema, ou de nos atrevermos, ou de cometermos um crime ou causarmos uma morte e sabermos que foi assim. Às vezes tenho a sensação de que nada do que acontece acontece, porque nada acontece sem interrupção, nada perdura nem persevera nem se recorda incessantemente, e até a mais monótona e rotineira das existências vai se anulando e negando a si mesma em sua aparente repetição até que nada seja nada e ninguém seja ninguém que tenham sido antes, e a frágil roda do mundo é empurrada por desmemoriados que ouvem e vêem e sabem o que não se diz nem sucede nem é cognoscível nem comprovável. O que ocorre é idêntico ao que não ocorre, o que descartamos ou deixamos passar idêntico ao que pegamos e agarramos, o que experimentamos idêntico ao que não provamos, e no entanto vai-nos a vida e vai-se-nos a vida em escolher, rejeitar e selecionar, em traçar uma linha que separe essas coisas que são idênticas e faça de nossa história uma história única que recordemos e possa ser contada. Dirigimos toda a nossa inteligência, os nossos sentidos e o nosso afã à tarefa de discernir o que será nivelado, ou já está, e por isso estamos cheios de arrependimentos e de ocasiões perdidas, de confirmações e reafirmações e ocasiões aproveitadas, quando o certo é que nada se afirma e tudo se vai perdendo. Ou talvez que nunca tenha havido nada.

Talvez não tenha havido uma só palavra entre Miriam e o homem durante todo o instante em que acreditei as estar perdendo. Talvez tenham apenas se olhado, ou se abraçado de pé, calados, ou se aproximado da cama para se despirem, ou talvez ela tenha se limitado a descalçar-se, mostrando ao homem seus pés que teria lavado tão conscienciosamente antes de sair de casa e agora estariam cansados e doloridos (a planta de um deles suja pelo calçamento da rua). Não devem ter-se esbofeteado nem se engalfinhado numa briga nem nada do género (quero dizer num corpo-a-corpo), porque depois se arqueja fortemente e se grita ao fazê-lo, ou então logo antes, senão depois. Talvez, como eu (mas eu o fazia por Luísa, e entrava e saía), Miriam tenha ido ao banheiro e se trancado nele durante aqueles minutos sem dizer nada, para se olhar no espelho, se arrumar e tentar apagar do rosto as expressões acumuladas de ira, cansaço, decepção e alívio, perguntando-se que outra seria mais adequada e benéfica para por fim encarar aquele homem canhoto de braços peludos que teria achado engraçado ou divertido ela ter esperado gratuitamente e ter me confundido com ele. Talvez o tenha feito esperar um pouco, a porta fechada do banheiro, ou talvez sua intenção não fosse essa, mas sim chorar às escondidas e contidamente sobre a tampa da privada ou sobre o rebordo da banheira com as lentes de contacto tiradas, se é que as usava, enxugando-se e ocultando-se a seus próprios olhos com uma toalha até conseguir se acalmar, lavar o rosto, pintar-se e estar em condições de sair de novo, dissimulando.

Eu tinha pressa de poder ouvir e, para tanto, necessitava que Luísa voltasse a dormir, que deixasse de ser corpórea e contínua para relegar-se e fazer-se distante, e necessitava estar quieto para escutar através da parede do espelho ou pela sacada aberta, ou estereofonicamente através de ambos. Falo, entendo e leio quatro línguas contando a minha, por isso, suponho, me dediquei parcialmente a ser tradutor e intérprete em congressos, reuniões e encontros, sobretudo políticos e às vezes o mais alto nível (em duas oportunidades servi de intérprete a chefes de Estado; bem, um só era chefe de governo). Suponho que por isso tenho a tendência (como tem Luísa, que se dedica à mesma coisa, só que não compartilhamos exatamente as mesmas línguas e ela está menos profissionalizada ou se dedica menos e, portanto, não a tem tão acentuada) de querer compreender tudo o que se diz e que chega a meus ouvidos, tanto no trabalho como fora dele, ainda que à distância, ainda que num dos inúmeros idiomas que desconheço, ainda que em murmúrios indistinguíveis ou em sussurros imperceptíveis, ainda que seja melhor eu não compreender e o que se diz não seja dito para que eu ouça, ou mesmo seja dito justamente para que eu não capte». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

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quinta-feira, 21 de março de 2024

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Fez menção Nuno da Costa, que se mantivera à porta, de o acompanhar, mas Marco Túlio adiantou-se-lhe: Eu vou com frei Estêvão. Saíram os dois e, tomando a barca que o frade havia fretado, desapareceram na noite»

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A Ponte dos Suspiros. Os Sinais do Corpo

«Foi Sebastião Neto, o meu barbeiro, quem mo tirou. Quem me sabe dar notícias dele? Frei Estêvão Sampaio... Lembro-me dele... deve estar a chegar. Quando foi a Lisboa pelos sinais, falou com ele... Quiseram calçar-lhe o sapato. Com o peito do pé tão alto não conseguiram. Então el-rei, com a maior das facilidades, o calçou.

Senhor, disse dom Cristóvão, tendes de comer qualquer coisa de alimento. Deveis estar fraco. Não, primo, não. Hoje é sexta-feira, não quero quebrar o voto de jejum. Com graciosidade notava a diferença de vestimentas dos que o rodeavam: Diogo Manuel veste à francesa, Sebastião Figueira à flamenga, meu primo dom Cristóvão à italiana... e eu, meu Senhor, disse rindo dom João Castro, à veneziana...

É verdade, é verdade. À portuguesa só vejo Pimentel e Neiva, que os irmãos vestem seus hábitos e Francisco António... bordão e sombreiro como peregrino... vestes que eu tantas vezes usei por esse mundo de Deus... Rogou então dom João Castro a el-rei que, pois tinham a dita de terem vivo ali na sua presença o seu rei, lhes fizesse Sua Alteza a graça de lhes contar alguma coisa de sua fadigosa peregrinação.

Não me lembreis mágoas de meus trabalhos. Tempo virá de minha prosperidade e então, com grande gosto, vos contarei o que agora me seria tão penoso se o renovasse na memória. Dai-me antes vós notícias de Portugal. Que é feito, Dom João, de vossos irmãos? Lembro-me de que vossos pais tiveram uma ninhada de filhos... Oh, Senhor! Lembrar o que lá passa é coisa triste, um vazio de alma. Nada sei de meus irmãos João, Fernando, Francisco... Manuel casou com Beatriz de Vilhena, Violante com o conde de Odemira, Luís morreu em Alcácer... Mea culpa.

Dos tios pouco sei. Fernando morreu abrasado na mina do baluarte de Dio, Miguel morreu capitão em Malaca... E Cristóvão? Do tio Cristóvão não sei nada, nada... - Sabeis alguma coisa de dona Catarina de Bragança? Quando, depois da morte do cardeal vosso tio, respondeu o cónego Rodrigues, se apresentaram os herdeiros ao trono de Portugal, a senhora duquesa era na primeira linha dos direitos... Eu sei. Depois... contra a força dos exércitos do duque de Alba e a inércia no interior do reino...

Era doloroso recordar tais factos; e os senhores, para poupar el-rei, falavam-lhe de coisas menores, dos paços da Ribeira, do Castelo, de Enxobregas, da torre de São Gião... E ainda fazem em Lisboa a procissão de São Sebastião que se ordenou pelo meu nascimento? Os mais não sabiam responder, mas o cónego acudia dizendo que em algumas paróquias dirigidas por padres velhos ainda se fazia sem serem molestados. Perguntava el-rei por om Teodósio, arcebispo de Évora, por dom Fernando de Meneses, o Boca Aberta, por dom Luís de Noronha, por dona Maria de Alcáçova...

Ah! Dona Maria!, exclamou dom João. Poderei ser um pouco irreverente convosco, meu senhor? Aquele jovem rei orgulhoso, colérico, intratável, egoísta, que vós conhecestes, morreu há muito tempo. Falai à vontade. Senhor, todos julgavam, nesse tempo, que vos era indiferente senão incómodo o trato com mulheres. E agora perguntais vós por tão formosa dona?... Eu sei. A evocação do seu nome traz-nos ao teatro da memória o de seu pai, Pedro de Alcáçova, fidalgo de vossa casa e de vossa confiança... Como mudam os tempos e as vontades! Com a notícia da vossa morte, o cardeal vosso tio mandou-o prender...  chorava ele a morte de dois filhos na batalha de Alcácer... disse frei Lourenço… fê-lo julgar... Alcáçova, por ressabio e aliciado pelo traidor Cristóvão de Moura, tomou o partido de Filipe segundo. Já rei usurpador de Portugal, Filipe restituiu-lhe os bens, fê-lo conde de Idanha, membro do conselho do vice-rei o cardeal Alberto...

Coisas tristes me contais. Mas não é triste certamente, meu senhor, a lembrança daquela belíssima criatura que era dona Maria de Alcáçova... Quereis lembrar-me que ainda não respondi à vossa pergunta, não é? Se assim o quiserdes entender, Senhor... É, sim, uma grata recordação... aqueles olhos, aqueles cabelos em ondas de oiro sobre os ombros, o donaire do andar, do busto, das... Olhai, amigos. Parecia eu indiferente? Nesse tempo considerava com raiva por que razão não podia um rei casar senão com uns fantoches sem alma que lhe propunham os reis e príncipes dos outros reinos da Europa... Que é feito dela, de dona Maria? Casou, claro. Com dom Álvaro de Melo, senhor, neto de dom Rodrigo, conde de Tentúgal e marquês de Ferreira.

Nisto irrompeu porta dentro frei Estêvão de Sampaio e, logo após, Nuno da Costa. Senhores!, dizia o frade com calor. Estamos rodeados de espiões. Que aconteceu? Esta gente do embaixador de Castela que vejo em duas ou três faluas a rondar-vos a casa?... Deu-se conta, de súbito, do estranho acatamento com que todos, de pé, rodeavam aquele homem sentado com natural dignidade em frente da lareira. O silêncio que mantiveram e aqueles olhos espetados a fitar-lhe a entrada tempestuosa fê-lo compreender:

Meu senhor!, arrojou-se frei Estêvão aos pés de el-rei. Então fostes vós, frei Estêvão, que vos destes à canseira de ir a Portugal... dizia el-rei tomando-lhe os braços para que se levantasse. Meu senhor, agora há urgência em vos tirar daqui sem serdes reconhecido... Sugiro, disse dom João de Castro, que vós ou frei Lourenço vá a um dos vossos mosteiros por um hábito em que Sua Alteza se possa salvar pelo meio desses aleivosos que espreitam lá fora. Mais despachado, frei Estêvão logo se prontificou: Pois Nosso Senhor tem guardado Vossa Alteza de tantos perigos, vos há-de salvar de mais este.

Fez menção Nuno da Costa, que se mantivera à porta, de o acompanhar, mas Marco Túlio adiantou-se-lhe: Eu vou com frei Estêvão. Saíram os dois e, tomando a barca que o frade havia fretado, desapareceram na noite». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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Coração Tão Branco. Javier Marías. «O dia em que não estivemos juntos já não teremos estado juntos, ou o que nos iam dizer por telefone quando nos ligaram e não respondemos nunca será dito, nunca a mesma coisa nem com o mesmo espírito…»

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«Com quem você estava falando antes?, perguntou-me outra vez. Não vi motivo para não lhe dizer a verdade, no entanto tive a sensação de não o fazer ao fazê-lo. Nesse momento eu tinha na mão uma toalha com a ponta húmida e me dispunha a refrescar-lhe o rosto, o pescoço, a nuca (seu cabelo comprido e em desalinho tinha se grudado, e alguns fios soltos lhe atravessavam a testa como se fossem finas rugas vindas do futuro para ensombrecê-la um instante).

Com ninguém, com uma mulher que me confundiu. Confundiu nossa sacada com a do lado. Devia ter vista ruim, só quando chegou bem perto viu que eu não era o homem com quem marcara encontro. Ali. E apontei para a parede que agora nos separava de Miriam e do homem. Nessa parede havia uma mesa e em cima dela um espelho no qual, conforme nos mexêssemos ou nos erguêssemos, podíamos nos ver da cama.

Mas por que gritava? Pareceu-me que gritava muito. Ou não sei se sonhei. Estou com muito calor. Deixei a toalha ao pé da cama e acariciei-lhe várias vezes a face e o queixo arredondado. Seus grandes olhos escuros fitavam ainda nebulosos. Se tivera febre, esta já havia baixado. Não posso saber, porque na realidade não era comigo que gritava, mas com o outro por quem me tomou. Sabe lá o que se terão feito um ao outro. Enquanto me ocupava de Luísa eu tinha ouvido (mas sem prestar atenção, porque atendia Luísa e estava fazendo ao mesmo tempo várias coisas e indo do quarto ao banheiro e do banheiro ao quarto) como os saltos chegavam até a porta ao lado e esta se abria sem que batessem nela, e a partir do leve rangido (foi rápido) e da suave batida ao se fechar de novo (que foi muito lenta) apenas um murmúrio indistinto, sussurros de palavras que não podiam se distinguir apesar de pronunciadas em minha língua e de, segundo o som de pouco antes, a sacada deles ter ficado entreaberta e eu não ter fechado a nossa. À preocupação com meu indevido atraso somou-se outra, minha preocupação com a sensação de pressa. Senti que tinha pressa não apenas para tranquilizar Luísa, esticar-lhe os lençóis e paliar na medida do possível os efeitos de sua doença efêmera, mas também para que não me fizesse mais perguntas e dormisse de novo, pois não havia tempo para fazê-la participar de minha curiosidade nem ela estava em condições de se interessar por nada exterior a seu corpo e, enquanto trocávamos algumas palavras e eu ia ao banheiro molhar a ponta de uma toalha, dava-lhe de beber e acariciava seu queixo que eu apreciava muito, os pequenos ruídos que eu mesmo ia fazendo e nossas próprias frases curtas e descontínuas me impediam de prestar atenção e apurar o ouvido procurando distinguir o murmúrio contíguo, que eu tinha pressa de decifrar.

E a pressa vinha porque eu tinha consciência de que o que não ouvisse agora não ia ouvir mais; não ia haver repetição, como quando você ouve uma fita cassete ou assiste a um vídeo e pode retroceder, mas cada sussurro não captado nem compreendido se perderia para sempre. É o que há de ruim no que nos acontece e não é gravado, ou, pior ainda, nem mesmo sabido nem visto nem ouvido, porque depois não há forma de recuperá-lo.

O dia em que não estivemos juntos já não teremos estado juntos, ou o que nos iam dizer por telefone quando nos ligaram e não respondemos nunca será dito, nunca a mesma coisa nem com o mesmo espírito; e tudo será levemente diferente ou totalmente diferente por nossa falta de atrevimento que nos dissuadiu de falar. Mas mesmo se naquele dia estivemos juntos, ou se estávamos em casa quando nos telefonaram, ou se nos atrevemos a falar vencendo o temor e esquecendo o risco, mesmo assim nada disso voltará a se repetir, por conseguinte chegará um momento em que ter estado juntos será como não ter estado, e ter atendido o telefone será como não o ter feito, e ter-nos atrevido a nos falar será como ter calado. Até as coisas mais indeléveis têm uma duração, como as que não deixam vestígio ou nem mesmo acontecem, e se estivermos prevenidos e as anotarmos ou gravarmos ou filmarmos, se nos enchermos de recordações e chegarmos até a substituir o acontecido pela mera constância, registo e arquivamento do que aconteceu, de modo que o que na verdade ocorra desde o princípio seja nossa anotação ou nossa gravação ou nossa filmagem, apenas isso, mesmo nesse aperfeiçoamento infinito da repetição teremos perdido o tempo em que as coisas de facto aconteceram (embora seja o tempo da anotação); e enquanto procuramos revivê-lo ou reproduzi-lo e fazê-lo voltar e impedir que seja passado, outro tempo diferente estará acontecendo, e nele, sem dúvida, não estaremos juntos nem atenderemos nenhum telefonema, nem nos atreveremos a nada, nem poderemos evitar nenhum crime e nenhuma morte (embora tampouco venhamos a cometê-los ou a causá-los), porque o estaremos deixando passar como se não fosse nosso em nossa intenção doentia de que o que já aconteceu não acabe e retorne». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

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Coração Tão Branco. Javier Marías. «… secado o suor da testa e dos ombros e desabotoado o soutien para que não a incomodasse, deixando que fosse ela quem decidisse mantê-lo posto, embora solto, ou tirá-lo»

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«A mulata não usava relógio nem anéis. Pensei que a figura daquele indivíduo devia ter-lhe sido só um pouco visível durante todos aqueles minutos, ao contrário da minha, inteiramente visível por assomar e estar apoiada na balaustrada imóvel. Agora era o inverso, a minha se apagara de repente e era invisível, em compensação era o homem que eu não via, como tampouco.

Luisa, continuava dando-lhe as costas. Talvez aquele sujeito tivesse ido para trás e para a frente, sempre sem abrir a janela da sacada, conforme se visse ou não focalizado pelos olhos cor de limão da mulher da rua, por seu olhar míope e inofensivo. Estivera brincando com a vantagem de se deixar ver e se esconder, nenhuma das duas coisas, e ela tinha razão portanto, a pessoa com quem marcara encontro já havia subido ao hotel sem se incomodar em avisá-la, para vê-la esperar em frente e na distância, para contemplá-la em seus breves e doridos passeios de um lado para o outro, depois em seu trôpego avanço e em sua queda, calçar-se, como também eu tivera a oportunidade de observá-la.

O curioso foi que a reacção de Miriam não teve nada a ver com a que dedicara a mim ao tomar-me por outro, por aquele homem de braços fortes, peludos, compridos e relógio e aliança de canhoto. Ao vê-lo já com certeza, ao ver quem estivera esperando tanto e ouvi-lo chamá-la, não fez nenhum gesto nem gritou nada. Não o insultou nem o ameaçou nem lhe disse Vou te apanhar ou Eu te mato com o braço nu e os dedos rápidos, talvez porque, ao contrário de mim enquanto fui ele para ela, ele falara com ela ou dissera seu nome. A expressão da mulher mudou: foi de alívio, por um instante, e com prontidão, quase com um agradecimento sem destinatário, com mais graça em seus passos do que até então mostrara (como se de repente caminhasse descalça e suas pernas não fossem tão encorpadas), acabou de percorrer o trecho que a separava do hotel e entrou nele com sua grande bolsa preta agora mais leve, desaparecendo assim de meu campo visual sem me dizer mais palavras, reconciliada com o mundo durante aqueles passos. A janela da sacada à minha esquerda tornou a se fechar e logo tornou a se abrir para ficar entreaberta, como se o vento a tivesse empurrado ou o homem tivesse pensado melhor um segundo depois de fechá-la (pois não ventava) e não soubesse bem como ia querer mantê-la quando a mulher já estivesse com ele em cima, em breve (a mulher devia estar subindo a escada). Então eu, finalmente (mas passara muito pouco tempo, de modo que Luísa ainda devia sentir-se recém-acordada), abandonei meu posto, acendi o abajour do criado-mudo e me aproximei solícito da cabeceira de nossa cama, solícito mas atrasado.

Esse atraso é para mim inexplicável e já então o lamentei muito, não porque tivesse qualquer consequência, mas pelo que pensei que podia significar, num excesso de escrúpulo e zelo. E, embora seja certo que eu tenha associado de imediato esse atraso marital ao primeiro mal-estar de que falei e ao facto de que desde nosso casamento me fosse mais difícil pensar em Luísa (quanto mais corpórea e contínua, mais relegada e remota), o aparecimento do segundo mal-estar que também mencionei não se deveu à minha contemplação lacônica da mulata e à minha brevíssima negligência, mas antes ao que veio depois, isto é, ao que aconteceu quando eu já havia atendido Luísa, secado o suor da testa e dos ombros e desabotoado o soutien para que não a incomodasse, deixando que fosse ela quem decidisse mantê-lo posto, embora solto, ou tirá-lo. Com a luz, Luísa reanimou-se um pouco, quis beber água e, ao beber um pouco, sentiu-se melhor e, ao sentir-se um pouco melhor, dispôs-se a falar um pouco e, quando se acalmou e sentiu os lençóis menos pegajosos e se viu mais composta com a cama em ordem, e sobretudo compreendeu e se acostumou à ideia de que já era noite, de que, quisesse ou não, o dia terminara para ela sem possibilidade de continuar a fazer o que quer que fosse e de que só lhe restava tentar não fazer caso de sua doença e sepultá-la no sono até a manhã seguinte, quando presumivelmente tudo voltaria à normalidade algo anómala de nossa viagem de recém-casados e seu corpo estaria em ordem e seria outra vez corpóreo, então lembrou-se do meu descuido que seguramente ela não havia percebido como tal, ou o que recordou foi que eu tinha dito Não se preocupe a uma pessoa desconhecida que estava na rua e que de lá haviam subido vozes e gritos ouvidos no sono ou em seu torpor, que a tinham despertado e talvez assustado». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT

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quarta-feira, 20 de março de 2024

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «… nomes a formarem várias ligações, mapa de muitos caminhos, como se todos fossem filhos, primos, sobrinhos, irmãos uns dos outros; e também as crianças, nunca esquecidas, crianças de todos, futuros pais, futuros avós, futuros bisavós»

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26 de Março de 2021

«Perguntou a uma delas pela mãe. Recebeu resposta e agradecimento: senhor comendador. Tinha pressa de ir ter com a mulher, de certeza que já estava bem acordada. Durante um par de minutos, inclinou-se lá de cima, sobre a linha dos fornos que caramelizavam a alfarroba. Havia trabalhadores a varrerem cinza, a carregarem caldeiras, cada um a cumprir a sua função. Pouco faltaria para haver espanhóis a tomarem aquela mistura, no desayuno em casa ou encostados à barra, como eles dizem. A torrefação Camelo é uma máquina certa, nunca se cansava de repetir. Lembrou-se do bolo seco na boca, a mastigá-lo, as pessoas vestidas com as melhores roupas, voltas e voltas na boca, havia muito que essas pessoas não teriam conseguido imaginar. Desembaciou os olhos. À sua frente ainda estavam os homens que trabalhavam nos fornos, sorriu para todos eles.

Voltou à divisão dos sacos de café, Uganda, das máquinas a torrar grãos, das pás a arrefecê-los. Desbarrigado, indiferente ao fato de treino fora de moda, levava uma alegria que era uma espécie de vaidade. No entanto, mesmo à beira da saída, o encarregado quis dar-lhe uma palavra mais sóbria, falou do lugar onde o senhor Rui tinha de ir nessa tarde.

A pensar no lugar onde tinha de ir nessa tarde, aquela hora mudou de cor. O sorriso esmoreceu no rosto do senhor Rui, senhor comendador.

Era um veio de acidez, podia avançar por ele, isolá-lo do resto do sabor. Nesse exercício, conseguia identificar um tipo de frescura que sugeria a imagem de maçãs verdes, como quando descascava uma maçã noutro tempo e a lâmina da faca tinha riscos húmidos e a carne da maçã sangrava pequenas gotas de sumo ácido. Mas, claro, reconhecia também o doce, a sua preferência. Em alguma idade teria aprendido esse gosto, o doce confortava-o. Todavia, o doce era complexo. Ali, aquecia-lhe ligeiramente a boca com um morno que, sem inventar, lhe trazia a memória de bolachas da infância, bolachas maria em dias assinalados.

Pousou a chávena no pires, o som da loiça. A manhã entrava inteira por aquele momento, assentava nas paredes brancas, pousava em toda a extensão da mesa, na toalha, no cesto do pão, nas palavras que a mulher dizia. Ao olhar para a mulher, sentiu ainda o peso do café sobre a língua, a espessura, sentiu também o seu nome bonito, Alice. O líquido descia-lhe pela garganta, desaparecia, e o sabor do café evaporava lentamente no interior da boca. Nesse processo, desenrolava novos sabores ou, talvez, novas gradações do mesmo sabor, como tons de uma cor, castanho. Aquilo que a mulher dizia apresentava uma delicadeza semelhante, estendia um enredo de filhos, netos e bisnetos, que se cruzavam em múltiplas direcções, nomes que se enredavam, Helena, Rui, Ivan, Rita, João Manuel, Marcos, nomes dispostos em várias ordens; e também as crianças, os filhos do Rui, do Ivan, do Marcos; nomes a formarem várias ligações, mapa de muitos caminhos, como se todos fossem filhos, primos, sobrinhos, irmãos uns dos outros; e também as crianças, nunca esquecidas, crianças de todos, futuros pais, futuros avós, futuros bisavós». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

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JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,