Quando falares, cuida que tuas palavras sejam melhores que o silêncio (hindu)
Carta de Afonso de
Albuquerque a el-rei Manuel I
«Senhor: Vossa Alteza me culpa, me
culpa, me culpa em algumas cousas de cá da Índia, e creio que será por má informação
que vos de mim darão algumas pessoas, com inveja e dor de meus feitos e meus
serviços. Os que vos estas cousas escrevem, não andam em minha companhia, nem
me vêem o rosto, nem são companheiros em meus trabalhos, perigos e fadigas, nem
vestem as armas, (…) mas querem ganhar autoridade em vos escreverem mil enganos
e falsidades; prognosticam e profetizam, falam com feiticeiras que lhes
digam o que está por vir, e ajuntam toda essa massa, de que fazem esse pastel
que lá mandam a vossalteza cada ano (…) e não vos deixam tomar verdadeiro
assento nas cousas de vosso serviço, nem determinar o caminho que quereis que
leve o negócio da Índia. Digo-vos, senhor, isto, porque se bem olhardes vossos
regimentos e determinações, cada ano vem um contrairo ao outro, e cada ano
fazeis uma mudança e haveis novo conselho, e a Índia não é o castelo da Mina,
para cada ano bulirdes com ela, porque há nela muito grandes reis e senhores (…)
que s’esforçam a vos defender que não segureis vosso estado nela, nem vos façais
forte na terra, nem lhe ganheis os lugares principais; e estão confiados que
haveis de leixar a Índia (…) E vossalteza ajuda-os a seu propósito,
porque uma hora pondes um emplastro para este feito vir a furo, outra hora lhe
pondes defensivos que não crie matéria; e tanto pode vossalteza ir por
este caminho, que dareis com todo feito no chão. (…)
De Cananor ao primeiro dia de Dezembro de 1513.
Passavam já três relógios do quarto da prima quando Bento Castanho recomeça a saga de Iria Pereira e Fernão
Mendes semicerra os olhos e deixa-se ir, no sabor das palavras do narrador, ao
encontro do passado e daquela valente mulher, para lhe imaginar a vida e a luta
em Cochim, longe da família que a trouxera ao mundo e da terra onde deixara as
suas raízes.
Iria Pereira tomara a
longa navegação do reino para a Índia, sete anos antes, como castigo e expiação
dos seus pecados, sofrendo sem um queixume um terrível martírio durante mais de
sete negregados meses escondida na S. Jerónimo, a nau de Francisco de Almeida, o vizo-rei da Índia.
Muitos homens fortes haviam sucumbido às agruras da infernal viagem e só por
milagre da misericordiosa Santa Iria, sua protectora, é que ela não morrera nem
tivera um desmancho, encafuada num buraco malcheiroso, para não denunciar a sua
presença, contando apenas com a ajuda do primo, presa de terríveis vagados que
ora a deixavam prostrada, como desacordada, ora a faziam botar a comida e o estômago
pela boca, mareada de morte.
O último mês de viagem, Outubro de mil quinhentos e cinco,
coincidira com o fim da sua prenhez e, apesar do incómodo peso e do calor, fora
menos penoso do que os anteriores. Por terem partido de Lisboa em Novembro,
sofrera o primeiro Inverno quase até Cabo Verde, logo seguido de um Verão de
grandes calmas, ao passarem a linha equinocial; contudo, fora muito pior o
segundo Inverno, cerca do cabo da Boa Esperança, quando nevou no dia de S. João
e seguintes, com tanta força que os grumetes passavam horas a lançar a neve dos
navios às pazadas. O vizo-rei e os demais fidalgos não saíam dos seus
aposentos, assando-se aos braseiros, por ser menor o perigo do fogo, e os
homens que andavam nas fainas traziam todos os seus fatos vestidos, em camadas
sobrepostas de saios e gibões, bragas e calças, botas, borzeguins e sapatos, barretes,
boinas e sombreiros, e até cabeleiras de vestir! Iria fizera outro tanto, mas
quase perdera os dedos das mãos e dos pés.
Depois adviera medonha tempestade quando, para fugir do frio, se
tinham acercado de terra: ondas altíssimas pareciam querer engolir as naus e,
no seu esconderijo, sobrepondo-se ao bramido do mar e ao estrondear da
trovoada, chegavam-lhe os gritos e rogos que os matalotes lançavam aos céus,
encomendando a salvação da sua alma a Jesus Cristo ou a Nossa Senhora, e ela
orara também em silêncio, à espera da morte. As suas vozes haviam chegado aos céus,
porque o temporal amansara antes de os navios se desfazerem e serem engolidos
pelos mares». In Deana Barroqueiro, O Corsário dos Sete
Mares, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-972-462-117-3.
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Deana Barroqueiro, JDACT, Literatura, Fernão Mendes Pinto, Crónica,