«É inexplicável que a esta altura, eu, Galcerán de Born, até pouco tempo cavaleiro da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, segundo filho do nobre senhor de Taradell, que foi cruzado em Terra Santa e é vassalo de Nosso Senhor Jaime II de Aragão, possa crer ainda na existência de um inevitável destino oculto por trás dos aparentes acasos da vida. Contudo, quando penso nos últimos quatro anos, e penso neles com bastante frequência, não consigo me livrar da suspeita de que um misterioso fatum, talvez esse supremum fatum de que fala a Cabala, tece os fios dos acontecimentos com uma lúcida visão de futuro sem contar, em absoluto, com nossos desejos e projectos. Assim sendo, com o propósito de tentar clarear minhas confusas ideias e com o desejo de deixar registo dos estranhos pormenores desta história, para que possam ser conhecidos fielmente pelas futuras gerações, começo esta crónica no ano de Nosso Senhor de 1319, na pequena localidade portuguesa de Serra d’El-Rei, onde, dentre outras actividades, actuo como médico». In Prólogo
«Assim
que desembarquei da robusta nau siciliana na qual havia feito a longa viagem
desde Rodas, com extenuantes escalas em Chipre, Atenas, Sardenha e Maiorca, e
após apresentar minhas cartas na Capitania provincial de minha Ordem em
Barcelona, rapidamente deixei a cidade para me dirigir a Taradell e fazer uma rápida
visita a meus pais, a quem não via fazia doze anos. Embora houvesse gostado de
permanecer alguns dias ao lado deles, só pude ficar umas poucas horas, pois meu
verdadeiro objectivo era chegar quanto antes ao distante mosteiro mauriciano de
Ponç de Riba, a pouco mais de duzentas milhas ao sul do reino, junto a terras
que, até não muito tempo, estavam ainda nas mãos de mouros.
Tinha
algo muito importante para fazer naquele lugar, tão importante a ponto de eu abandonar
subitamente minha ilha, minha casa e meu trabalho, embora, oficialmente, apenas
para dedicar alguns anos ao criterioso estudo de certos livros que obravam em
poder do mosteiro e que haviam sido postos à minha disposição graças às influências
e às solicitações de minha Ordem.
Meu cavalo, um belo animal de
poderosas ancas, fazia verdadeiros esforços para correr ao ritmo que minha
pressa lhe impunha, enquanto cruzávamos a galope os campos de trigo e cevada e
atravessávamos velozmente muitas aldeias e vilarejos. Não era um bom ano para
as colheitas, aquele de 1315, e a fome se espalhava como a peste por todos os
reinos cristãos. Contudo, o longo tempo passado longe de minha terra me fazia vê-la
com os olhos cegos de um apaixonado, linda e rica, como sempre.
Logo
avistei os vastos territórios mauricianos, próximos à localidade de Torá, e a
seguir os altos muros da abadia e as pontudas torres de sua linda igreja. Sem
abrigar nenhuma dúvida, atrevo-me a afirmar que Ponç de Riba, fundado cento e
cinquenta anos antes, por Ramón Berenguer IV, é um dos maiores e mais majestosos
mosteiros que eu jamais vi, e sua riquíssima biblioteca é única deste lado do
mundo, pois não só possui os códices sacros mais extraordinários da
cristandade, como também praticamente todos os textos científicos, árabes e
judeus, condenados pela hierarquia eclesiástica, visto que, felizmente, os
monges de São Maurício sempre se caracterizaram por ter um espírito muito
aberto a todo tipo de riqueza. Nos arquivos de Ponç de Riba, cheguei a ver coisas
que ninguém acreditaria: cartulários hebreus, bulas papais e cartas de reis muçulmanos
que teriam impressionado ao estudioso mais imperturbável». In Matilde Asensi, Iacobus,
Aventura dos Templários no Caminho de Santiago, 2000, Editorial Planeta, 2006, 2013,
ISBN 978-854 220-274-8.
Cortesia de EditorialPlaneta/JDACT
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