Moçambique: essa imensa varanda sobre o Índico... In Eduardo Lourenço, 1995
«(…) Era a primeira vez que eu iria sair da morte. Por estreada vez iria escutar, sem o filtro da terra, as humanas vozes do asilo. Ouvir os velhos sem que eles nunca me sentissem. Uma dúvida me enrugava. E se eu acabasse gostando de ser um passa-noite? E se, no momento de morrer por segunda vez, me tivesse apaixonado pela outra margem? Afinal, eu era um morto solitário. Nunca tinha passado de um pré-antepassado. O que surpreendia era eu não ter lembrança do tempo que vivi. Recordava somente certos momentos mas sempre exteriores a mim. Recordava, sobretudo, o perfume da terra quando chovia. Vendo a chuva escorrendo por Janeiro, me perguntava: como sabemos que este cheiro é da terra e não do céu? Mas não lembrava, no entanto, nenhuma intimidade do meu viver. Será sempre assim?
Os
restantes mortos teriam perdido a privada memória? Não sei. Em meu caso,
contudo, eu aspirava ganhar acesso às minhas privadas vivências. O que queria
lembrar, muito-muito, eram as mulheres que amei. Confessei esse desejo
ao pangolim. Ele me sugeriu, então: Você mal chegue à vida queime umas sementes
de abóbora. Para quê? Não sabe? Queimar pevides faz lembrar amantes esquecidos.
No
dia seguinte, porém, eu repensei a minha viagem à vida. Esse pangolim já estava
demasiado gasto. Poderia eu confiar em seus poderes? Seu corpo rangia que nem
curva. Seu cansaço derivava do peso de sua carapaça. O pangolim é como o cágado,
caminha junto com a casa. Daí seus extremos cansaços.
Chamei
o halakavuma e lhe disse da minha recusa em me transferir para o lado da vida.
Ele que entendesse: a força do crocodilo é a água. Minha força era estar longe
dos viventes. Eu nunca soube viver, mesmo quando era vivo. Agora, mergulhado em
carne alheia, eu seria roído por minhas próprias unhas. Ora, Ermelindo: você
vá, o tempo lá está bonito, molhado a boas chuvinhas.
Eu
que fosse e agasalhasse a alma de verde. Quem sabe eu encontrasse uma mulher e
tropeçasse em paixão? O pangolim vaselinavam a conversa e engrossava a vista.
Ele sabia que não era assim fácil. Eu tinha medo, o mesmo medo que os vivos
sentem quando se imaginam morrer. O pangolim me assegurava futuros
mais-que-perfeitos. Tudo se passaria ali, na mesmíssima varanda, no debaixo da
árvore onde eu estava enterrado.
Olhei
o frangipani e senti saudade antecedida dele. Eu e a árvore nos semelhávamos.
Quem, alguma vez, tinha regado as nossas raízes? Ambos éramos criaturas
amamentadas a cacimbo. O halakavuma tinha também suas gratidões com o
frangipani. Apontou a varanda e disse: Aqui é onde os deuses vêm rezar». In
Mia Couto, A Varanda do Frangipani, 1996, Editorial Caminho, colecção Outras
Margens, 2000, ISBN 978-972-211-050-1.
Cortesia de ECaminho/JDACT
JDACT, Mia Couto, Moçambique, O Saber,