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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «… progresso que se tem feito no entendimento da natureza e significado humano dos sentimentos, tal como os vejo agora, como neurologista, neurocientista e consumidor habitual»

jdact

Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«A emoção e o sentimento já tinham desempenhado um papel importante, embora bem diferente, em dois livros precedentes. Em O erro de Descartes abordei o papel da emoção e do sentimento na tomada de decisões. Em O Mistério da Consciência descrevi o papel da emoção e do sentimento na construção do self. O foco deste novo livro são os sentimentos propriamente ditos, aquilo que são e aquilo que fazem. A maior parte dos dados que agora apresento não existiam quando escrevi os livros anteriores, e temos hoje uma plataforma bem mais sólida para o entendimento da biologia dos sentimentos. Em suma, a finalidade principal deste livro é descrever o progresso que se tem feito no entendimento da natureza e significado humano dos sentimentos, tal como os vejo agora, como neurologista, neurocientista e consumidor habitual.

Na minha perspectiva actual, os sentimentos são a expressão do florescimento ou do sofrimento humano, na mente e no corpo. Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções, qualquer coisa que possamos guardar ou jogar fora. Os sentimentos podem ser, e geralmente são, revelações do estado da vida dentro do organismo. São o levantar de um véu no sentido literal do termo. Considerando a vida como uma acrobacia na corda bamba, a maior parte dos sentimentos são expressões de uma luta contínua para atingir o equilíbrio, reflexos de todos os minúsculos ajustamentos e correções sem os quais o espectáculo colapsa por inteiro.

Na existência do dia-a-dia os sentimentos revelam, simultaneamente, a nossa grandeza e a nossa pequenez.

A forma como a revelação se introduz na mente só agora começa, ela mesma, a ser revelada. O cérebro dedica várias regiões que trabalham em concerto a retratar de diversos aspectos as actividades do corpo sob a forma de mapas neurais. Esse retrato é uma imagem composta da vida nas suas contínuas modificações. As vias químicas e neurais que trazem ao cérebro os sinais com que esse retrato da vida é pintado são tão específicas como a tela que os recebe. O mistério do sentir está se tornando, assim, um pouco menos misterioso.

É perfeitamente legítimo perguntar se a tentativa de elucidar os sentimentos tem qualquer espécie de valor além da satisfação da nossa curiosidade. Não deve surpreender ninguém que a minha resposta seja afirmativa. Elucidar a neurobiologia dos sentimentos e das emoções que os percebem altera a nossa visão do problema mente-corpo, um problema cujo debate é central para a nossa compreensão daquilo que somos. A emoção e as várias reacções com ela relacionadas estão alinhadas com o corpo, enquanto os sentimentos estão alinhados com a mente. A investigação da forma como os pensamentos desencadeiam as emoções e de como as modificações do corpo durante as emoções se transformam nos fenómenos mentais a que chamamos sentimentos abre um panorama novo sobre o corpo e sobre a mente, duas manifestações aparentemente separadas de um organismo integrado e singular». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento, 

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente»

jdact

Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«Imaginem, por exemplo, encontrar alguém a quem uma certa lesão cerebral tornou incapaz de sentir vergonha ou compaixão, mas em nada alterou a capacidade de sentir tristeza, felicidade ou medo. Imaginem uma pessoa a quem uma lesão de outra região cerebral tornou incapaz de sentir medo, mas não interferia com a capacidade de sentir compaixão ou vergonha. A crueldade da doença neurológica é um poço sem fundo para as suas vítimas os doentes, bem como os médicos que os observam e tratam. Mas a doença neurológica também tem qualquer coisa de redenção: a doença funciona como um bisturi que separa o cérebro normal do cérebro doente com espantosa precisão e que assim permite uma rara porta de entrada na fortaleza do cérebro e mente.

A reflexão sobre a situação desses doentes e de outros com problemas comparáveis levou-me à construção de diversas hipóteses. Primeiro, era óbvio que certas espécies de sentimentos podiam ser bloqueadas pela lesão de um sector cerebral discreto; a perda de um sector cerebral específico implicava a perda de uma classe específica de fenômeno mental. Segundo, era também óbvio que sistemas cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos; a lesão de uma certa região anatómica cerebral não causava a perda de todas as formas possíveis de sentimento. Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de exprimir uma certa emoção também perdiam a capacidade de ter o correspondente sentimento. De forma surpreendente, contudo, alguns doentes incapazes de ter certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes correspondem ou seja, era possível exibir uma expressão de medo mas não sentir medo.

A emoção e o sentimento eram irmãos gémeos, mas tudo indicava que a emoção tinha nascido primeiro, seguida pelo sentimento, e que o sentimento se seguia sempre à emoção como uma sombra. Apesar da intimidade e aparente simultaneidade, tudo indicava que a emoção precedia o sentimento. Entrever essa relação específica permitiu, como iremos ver, uma perspectiva privilegiada na investigação dos sentimentos. Essas hipóteses podiam ser testadas com a ajuda de técnicas de neuroimagem que permitem a criação de imagens da anatomia e actividade do cérebro humano.

Passo a passo, primeiro em doentes e depois tanto em doentes como em pessoas sem doença neurológica, começamos a mapear a geografia do cérebro que sente. A meta era elucidar a teia de mecanismos que permitem aos nossos pensamentos desencadear estados  emocionais e construir sentimentos». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento, 

domingo, 22 de outubro de 2023

Em Busca de Espinosa. António Damásio. «Como era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia empenhada em negar qualquer explicação…»

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Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos

Dar a Palavra aos Sentimentos

«Os sentimentos de dor ou prazer são os alicerces da mente. É fácil não dar conta dessa simples realidade porque as imagens dos objectos e dos acontecimentos que nos rodeiam, bem como as imagens das palavras e frases que os descrevem, ocupam toda a nossa modesta atenção, ou quase toda. Mas é assim. Os sentimentos de prazer ou de dor ou de toda e qualquer qualidade entre dor e prazer, os sentimentos de toda e qualquer emoção, ou dos diversos estados que se relacionam com uma emoção qualquer, são a mais universal das melodias, uma canção que só descansa quando chega o sono, e que se torna um verdadeiro hino quando a alegria nos ocupa, ou se desfaz em lúgubre réquiem quando a tristeza nos invade. Dada a ubiquidade dos sentimentos, seria fácil pensar que a sua ciência estaria já há muito elucidada. Mas não está. Dentre todos os fenômenos mentais que podemos descrever, os sentimentos e os seus ingredientes essenciais a dor e o prazer são de longe os menos compreendidos no que diz respeito à sua biologia e em particular à neurobiologia. Isso é especialmente surpreendente quando pensamos que as sociedades avançadas cultivam os sentimentos da forma mais despudorada e manipulam os sentimentos com álcool ou drogas ilícitas, medicamentos, boa e má alimentação, sexo real e virtual, toda espécie de consumos e práticas sociais e religiosas cuja única finalidade é o bem-estar. Tratamos dos nossos sentimentos com comprimidos, bebidas, exercícios físicos e espirituais, mas nem o público nem a ciência fazem uma ideia clara do que são os sentimentos do ponto de vista biológico.

Não posso me declarar inteiramente surpreso com esse estado de coisas dadas as estranhas ideias com que cresci no que diz respeito aos sentimentos. Por exemplo, costumava pensar que os sentimentos não podiam se definir de forma específica, ao contrário dos objectos que se veem, que se ouvem ou em que se pode tocar. Ao contrário dessas entidades concretas, os sentimentos eram intangíveis. Quando comecei a pensar na forma como o cérebro criava a mente, aceitei sem protesto a ideia de que os sentimentos não cabiam em nenhum programa científico. Podíamos estudar a forma como o cérebro nos movimenta. Podíamos estudar processos sensitivos, tais como a visão, e compreender como se organiza o pensamento. Podíamos até estudar as reações emocionais com as quais respondemos a diversos objetos e situações. Mas os sentimentos que, como veremos no próximo capítulo, podem ser distinguidos das emoções continuavam fora do nosso alcance, para sempre misteriosos e inacessíveis. Não era possível explicar como aconteciam os sentimentos e, menos ainda, o local onde aconteciam.

Como era o caso com a consciência, os sentimentos existiam fora das portas da ciência, aí mantidos cuidadosamente não só por uma certa filosofia empenhada em negar qualquer explicação neurocientífica para os fenómenos mentais, mas também por neurocientistas diplomados que lhes negavam a entrada. A prova de que tomei a sério essas diversas limitações é o facto de que durante muitos anos evitei qualquer projecto que dissesse respeito aos sentimentos. Levei muito tempo para descobrir que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não tinham cabimento e que a neurologia dos sentimentos não era menos viável do que a da visão ou a da memória. Mas a realidade de certos doentes neurológicos forçou-me, ao fim e ao cabo, a rever a minha posição». In António Damásio, Em Busca de Espinosa, Prazer e dor na Ciência dos Conhecimentos, Companhia das Letras, 2004, ISBN 978-853-590-490-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

JDACT, António Damásio, Ciência, Espinosa, Filosofia, Conhecimento, 

domingo, 14 de julho de 2019

A Estranha Ordem das Coisas. António Damásio. «Porque seriam capazes os sentimentos de levar a mente a agir de forma tão sensata e vantajosa? Um dos motivos advém daquilo que os sentimentos realizam na mente e fazem à mente»

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Da condição humana. Uma ideia simples
«Eis a ideia simples que tenho vindo a considerar. Se nos ferimos e sentimos dor, seja qual for a causa do ferimento ou o perfil da dor, temos a possibilidade de remediar o problema. A variedade de situações que podem causar sofrimento humano inclui não só as lesões físicas, mas também o tipo de dor que resulta da perda de um ente querido ou de uma humilhação. A recuperação constante de memórias associadas mantém e amplifica o sofrimento, porque a memória ajuda a projectar a situação para um futuro imaginado e permite-nos antever as consequências. Seja qual for a causa, os seres humanos seriam capazes de reagir ao sofrimento tentando compreender esse seu calvário e inventando compensações, correcções ou soluções de eficácia radical.
A par da dor, os seres humanos seriam também capazes de viver o seu oposto, prazer e entusiasmo, numa grande variedade de situações, desde as simples e banais às sublimes, desde o prazer que constitui a reacção a paladares e cheiros, comida, vinho, sexo e confortos físicos, ao espanto e à iluminação que advêm da contemplação de uma paisagem, ou à admiração e ao afecto profundos sentidos em relação a outra pessoa. Os seres humanos também terão descoberto que exercer poder, dominar e até destruir os outros, provocando caos puro e saqueando, podia proporcionar prazer. Também nestes casos os seres humanos poderiam empregar tais sentimentos com um objectivo prático: como motivo para questionar a razão por que a dor existe, e talvez para se fascinarem com o facto bizarro de que, em determinadas circunstâncias, o sofrimento dos outros pode ser gratificante. Talvez usassem os sentimentos relacionados, entre eles medo, surpresa, fúria, tristeza e compaixão, como guia para imaginarem formas de contrariar o sofrimento e as suas origens. Aperceber-se-iam de que entre a variedade de comportamentos sociais disponíveis, alguns, a pertença a um grupo, a amizade, o carinho, o amor, representavam o oposto da agressividade e da violência, estando directamente associados não só ao bem-estar dos outros, mas também ao bem-estar próprio.
Porque seriam capazes os sentimentos de levar a mente a agir de forma tão sensata e vantajosa? Um dos motivos advém daquilo que os sentimentos realizam na mente e fazem à mente. Em circunstâncias normais, a cada momento, os sentimentos indicam à mente, sem que profiram qualquer palavra, o bom ou mau rumo dos processos da vida no interior do respectivo corpo. Ao fazê-lo, os sentimentos estão naturalmente a qualificar o processo vital como sendo ou não conducente ao bem-estar e ao desenvolvimento.
Outro motivo por que os sentimentos seriam bem-sucedidos onde as simples ideias falham tem a ver com a sua natureza particular. Os sentimentos não são uma fabricação independente do cérebro. Eles resultam de uma colaboração entre corpo e cérebro, os quais interagem graças a moléculas químicas e vias nervosas. Esta relação única entre corpo, e cérebro, em geral ignorada, garante que os sentimentos perturbem aquilo que, na sua ausência, seria um fluxo mental indiferente. É a vida na corda bamba, entre o florescimento e a morte, que dá origem ao sentimento. Consequentemente, os sentimentos são perturbações mentais, preocupantes ou gloriosas, gentis ou intensas». In António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, Da condição Humana, 2017, Temas e Debates, Bertrand Editora, Círculo de Leitores, 2017, ISBN 978-989-644-334-4.

Cortesia de TeD/CL/BertrandE/JDACT

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Ao Encontro de Espinosa. António Damásio. «E o que é o ‘conatus’ de Espinosa em termos biológicos contemporâneos? É o agregado de disposições presentes em circuitos cerebrais que, uma vez activados, levam à procura da sobrevida e do bem-estar»

Cortesia de wikipedia

Os Apetites e as Emoções.. Nos Ramos Médios
«(…) Não contente com as benesses da sobrevida, a natureza tratou de nos proporcionar uma mais valia: o equipamento inato da regulação da vida não está desenhado para produzir um estado neutro, a meio caminho entre a vida e a morte. Pelo contrário, a finalidade do esforço homeostático é produzir um estado de vida melhor do que neutro, produzir aquilo que nós, seres pensantes, identificamos com o bem-estar. A colecção inteira de processos homeostáticos governa a vida, de momento a momento, em cada célula dos nossos corpos. Esta governação é conseguida por meio de um arranjo simples. Primeiro, opera-se uma mudança no ambiente de um organismo, internamente ou externamente. Segundo, as mudanças podem alterar potencialmente o curso da vida de um organismo, constituindo uma ameaça para a sua integridade ou uma oportunidade para a sua melhoria. Terceiro, o organismo detecta a mudança e responde de forma a criar uma situação mais benéfica para a sua auto-preservação. Todas as reacções homeostáticas funcionam desta maneira e constituem, por isso mesmo, meios de avaliar as circunstâncias internas ou externas de um organismo, de modo a permitir uma actuação que corresponda a essas circunstâncias. As reacções homeostáticas detectam dificuldades ou oportunidades e resolvem, por meio de acções, o problema de eliminar as dificuldades ou aproveitar as oportunidades. O que difere, a esse nível, é a complexidade da avaliação e da resposta, maiores do que nas simples reacções a partir das quais as emoções-propriamente-ditas foram construídas no curso da evolução biológica. Está bem de ver que a tentativa contínua de conseguir um estado de vida equilibrado é um aspecto profundo e definidor da nossa existência. É o que nos diz Espinosa, que vai mais longe e chama a esta tentativa a primeira realidade da nossa existência, uma realidade que ele descreve como o esforço implacável da auto-preservação presente em qualquer ser. Espinosa designa esse esforço implacável com o termo conatus, a palavra latina que pode também traduzir-se como tendência, no sentido em que aparece nas Proposições VI, VII e VII da Ética, Parte III. Nas palavras de Espinosa: cada coisa na medida do seu poder, esforça-se por perseverar no seu ser e, o esforço através do qual cada coisa tende a perseverar no seu ser nada mais é do que a essência dessa coisa.
Interpretada à luz do conhecimento actual, a noção de Espinosa implica que um organismo vivo está construído de forma a lutar, contra toda e qualquer ameaça, pela manutenção da coerência das suas estruturas e funções. O conatus diz respeito não só ao ímpeto de auto-preservação, mas também ao conjunto de actos de auto-preservação que mantêm a integridade de um corpo. Apesar de todas as transformações por que um corpo vivo passa, à medida que se desenvolve, substitui as suas partes constitutivas e envelhece, o conatus encarrega-se de respeitar o mesmo plano estrutural em todas essas operações e, deste modo, de manter o mesmo indivíduo. Os sentimentos suportam o nível de regulação homeostática que se segue ao das emoções-propriamente-ditas. Os sentimentos são a expressão mental de todos os outros níveis da regulação homeostática. E o que é o conatus de Espinosa em termos biológicos contemporâneos? O conatus é o agregado de disposições presentes em circuitos cerebrais que, uma vez activados por certas condições do ambiente interno ou externo, levam à procura da sobrevida e do bem-estar. As variadas actividades do conatus estão representadas no cérebro por sinais químicos e neurais. Os numerosos aspectos do processo da vida são continuamente representados no cérebro em mapas constituídos por células nervosas que se encontram em diversos locais do cérebro». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT

domingo, 31 de maio de 2015

Uma Pausa para a Luz no 31. O Sentimento do Si. António Damásio. «… a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção…»

wikipedia e jdact

Em busca do Si
«(…) Se, nesta altura, começarem a ficar preocupados, pensando que estou prestes a cair na armadilha do homúnculo, deixem-me dizer imediata e veementemente que nada devem recear. O modelo-do-corpo-no-cérebro a que me refiro em nada se parece com o rígido homúnculo, essa criatura problemática que habita os antiquados manuais de neurologia. Nada neste modelo se assemelha a uma pequena pessoa escondida dentro de uma grande. O modelo nada percebe e nada conhece. Não fala nem produz consciência. Em vez disso, o modelo é um conjunto de dispositivos cerebrais cuja principal tarefa é a gestão automatizada da vida do organismo. Como veremos mais adiante, a gestão da vida é conseguida através de uma variedade de acções reguladoras, predeterminadas de forma inata: secreção de substâncias químicas, tais como as hormonas, bem como movimentos eficazes nas vísceras e nos sectores musculo-esqueléticos do corpo. O desenrolar destas acções depende da informação fornecida pelos mapas neurais que assinalam, a cada momento, o estado dos diversos departamentos do organismo. Acima de tudo, nem os dispositivos de regulação vital nem os seus mapas corporais são os geradores de consciência, embora a sua presença seja indispensável para os mecanismos que produzem a consciência nuclear. Esta é a questão-chave, no jogo da consciência, o organismo é representado no cérebro, de forma abundante e com diversas facetas, e essa representação está ligada à manutenção da vida. Se esta minha ideia estiver correcta, a vida e a consciência estão indelevelmente entrelaçadas.

Para que serve a Consciência?
Para os leitores que por acaso se surpreendam com a ligação entre vida e consciência, gostaria de acrescentar o seguinte: a sobrevivência depende de encontrarmos e incorporarmos fontes de energia e de evitarmos toda a espécie de situações que ameaçam a integridade dos tecidos vivos. Desprovidos de capacidade de acção, organismos como os nossos não sobreviveriam, uma vez que não encontrariam as fontes de energia necessárias à renovação da estrutura do organismo e à manutenção da vida e não poderiam evitar os perigos presentes no ambiente. Porém, as acções não nos levariam muito longe se não fossem orientadas por imagens. As boas acções precisam da companhia de boas imagens. As imagens permitem-nos escolher entre repertórios de acção anteriormente disponíveis e optimizar a execução da acção escolhida. De forma mais ou menos deliberada ou mais ou menos automática, conseguimos rever mentalmente as imagens que representam as diferentes opções de acção, os diferentes cenários e os diferentes resultados da acção. Podemos seleccionar as acções mais adequadas e rejeitar as que o não são. As imagens também nos permitem inventar novas acções aplicáveis a novas situações e conceber planos para acções futuras.
A capacidade de transformar e combinar imagens de acções e cenários é a fonte de toda a criatividade. Se as acções estão na origem da sobrevivência e se o seu poder está ligado à disponibilidade de imagens orientadoras, é bem plausível que um dispositivo capaz de maximizar a manipulação efectiva de imagens ao serviço dos interesses de um determinado organismo tivesse conferido uma enorme vantagem aos organismos que o possuíssem e tivesse provavelmente prevalecido na evolução. A consciência é, precisamente, esse dispositivo. A novidade pioneira trazida pela consciência foi a possibilidade de ligar o santuário íntimo da regulação da vida à capacidade de manipular imagens. Dito por outras palavras, foi a possibilidade de o sistema de regulação vital, que se encontra situado nas profundezas do cérebro, em regiões como o tronco cerebral e o hipotálamo, se relacionar com o processamento de imagens que representam as coisas e os acontecimentos que existem dentro e fora do organismo. Esta novidade tornou-se numa vantagem porque a sobrevivência num meio ambiente complexo, isto é, a gestão eficiente da regulação da vida, depende de um curso de acção correcto que pode ser melhorado através de previsão e planeamento duas funções que, por seu turno, dependem da manipulação de imagens na mente. A consciência permitiu a ligação entre a regulação da vida interior e a manipulação das imagens». In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT

domingo, 16 de novembro de 2014

Ao Encontro de Espinosa. António Damásio. «Quanto mais complexa a reacção, mais a aprendizagem assume este papel. Reacções como o chorar e o soluçar estão prontas à data do nascimento, mas as razões por que choramos ou soluçamos através da vida variam com a nossa experiência»

Cortesia de wikipedia

Os Apetites e as Emoções.. Nos Ramos Médios
«(…) Comportamentos normalmente associados à noção de prazer (e recompensa) ou dor (e punição). Estes comportamentos incluem reacções de aproximação e retraimento do organismo em relação a um objecto ou situação específicos. Nos seres humanos, que não apenas sentem mas podem também relatar aquilo que sentem, estas reacções são descritas como dolorosas ou aprazíveis, como recompensadoras ou punitivas. Por exemplo, quando os tecidos celulares do corpo estão à beira de sofrer uma lesão, o que acontece no caso de uma queimadura ou de uma infecção, as células da região afectada emitem sinais químicos chamados nociceptivos (a palavra nociceptivo significa indicador de dor). Como resposta e esses sinais, o organismo reage automaticamente com comportamentos de dor e comportamentos de doença. Estes comportamentos são colecções de acções, por vezes subtis, por vezes óbvias, com as quais a natureza tenta restabelecer o equilíbrio biológico de forma automática. Da lista dessas acções faz parte o retraimento do corpo (ou de uma parte do corpo), relação à origem do problema, a protecção da parte do corpo afectada e expressões faciais de alarme e sofrimento. Estas acções são acompanhadas de diversas respostas, invisíveis a olho nu, organizadas pelo sistema imunitário. De entre essas respostas consta o aumento de certas classes de glóbulos brancos, o envio desses glóbulos brancos para as áreas do corpo ameaçadas e a produção de moléculas tais como as citoquinas, que ajudam tanto na luta contra a causa do ataque (o micróbio invasor) como no restauro de um tecido lesionado. É o conjunto destas acções e dos sinais químicos relacionados com a sua produção que resulta na experiência a que chamam a dor.
Da mesma forma que o cérebro reage a um problema que se declara no corpo, também reage quando o corpo funciona bem. Quando o corpo funciona sem dificuldade e quando a transformação e a utilização de energia se desenrolam com à-vontade, o corpo comporta-se com um estado definido. A aproximação em relação a outros é facilitada. Nota-se uma descontracção e abertura do corpo, bem como expressões que traduzem confiança e bem-estar; por outro lado, libertam-se certas classes de moléculas, tais como as endorfinas. O conjunto destas reacções e dos sinais químicos com elas associados resultam na experiência do prazer. A dor ou o prazer têm causas diversas, problemas da função corporal, funcionamento ideal do metabolismo ou acontecimentos exteriores que ameaçam o organismo ou promovem a sua protecção. Mas a experiência da dor ou do prazer não é a causa dos comportamentos de dor ou de prazer, e não é sequer necessária para que esses comportamentos ocorram.
Seres extremamente simples exibem comportamentos emotivos embora a probabilidade de sentirem esses comportamentos seja pequena. Certas pulsões e motivações. Os exemplos principais incluem a fome, a sede, a curiosidade e os comportamentos exploratórios, os comportamentos lúdicos e os comportamentos sexuais. Espinosa colocou todas estas reacções sob a excelente designação de apetites e, com grande refinamento, usou uma outra palavra, desejo, para a situação em que o indivíduo consciente toma conhecimento de um apetite. A palavra apetite designa o estado comportamental de um organismo afectado por uma pulsão; a palavra desejo refere-se ao sentimento consciente de um apetite e ao eventual consumar ou frustrar de um apetite. Esta distinção espinosiana é equivalente à distinção entre emoção e sentimento. É claro que os seres humanos têm tanto apetites como desejos ligados, de forma subtil, às emoções e os sentimentos.

Próximo do Cume
As emoções-propriamente-ditas. É aqui que encontramos as jóias da regulação automática da vida: as emoções no sentido estrito do termo, desde a alegria à mágoa, desde o medo ao orgulho, desde a vergonha à simpatia. E na parte mais alta da árvore, na ponta dos seus diversos ramos, vamos encontrar os sentimentos. O genoma garante que todos estes dispositivos estão activos à data do nascimento, ou pouco depois, com pouca ou nenhuma dependência da aprendizagem, embora a aprendizagem venha a desempenhar um papel importante na determinação das ocasiões em que estes dispositivos virão a ser usados. Quanto mais complexa a reacção, mais a aprendizagem assume este papel. Reacções como o chorar e o soluçar estão prontas à data do nascimento, mas as razões por que choramos ou soluçamos através da vida variam com a nossa experiência. Todas estas reacções são automáticas e, em geral, estereotipadas, embora a aprendizagem possa modelar a execução de certos padrões esterotípicos. O riso ou o choro são executados de forma diferente em circunstâncias diferentes, tal como as notas que constituem a partitura de uma sonata podem ser tocadas de forma diferente. Seja como for, todas estas reacções têm como fim, de forma directa ou indirecta, regular a vida e promover a sobrevida. Os comportamentos de prazer e de dor, as pulsões e as motivações, e as emoções-propriamente ditas, são por vezes designadas pela mesma palavra, emoções no sentido lato do termo, o que é aceitável e razoável dado que todas estas reacções têm uma parecença formal e têm precisamente a mesma finalidade». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Sentimento de Si. António Damásio. «… tem dentro de si uma espécie de modelo desse mesmo organismo. Este estranho facto, tantas vezes esquecido, é mais do que notável. Considero-o a pista mais importante na descoberta dos possíveis alicerces da consciência»

jdact

Em busca do Si
«(…) A imagem construída nos ecrãs multiplex do seu cérebro mudou de forma notória. Mas enquanto o seu sistema visual mudou submissamente de acordo com os objectos a cartografar, certas outras regiões do seu cérebro, cuja função é regular o processo da vida e que representam vários aspectos do seu corpo, mantiveram-se inalteradas em termos do tipo de objecto que representam. O corpo permaneceu sempre como objecto, e as sim permanecerá até que a morte sobrevenha. Não só o tipo do objecto se manteve precisamente o mesmo, mas também o grau de modificação que ocorreu no objecto, o corpo, foi mínimo. E porquê? Porque apenas uma pequena amplitude de estados corporais é compatível com a vida e o organismo está geneticamente desenhado de forma a manter essa pequena amplitude de estados vitais e equipado para procurar obtê-los, a qualquer preço. Repare na curiosa assimetria que acabo de descrever e que pode ser expressa nos seguintes termos: algumas partes do cérebro têm liberdade para vaguear pelo mundo e, ao fazê-lo, podem cartografar qualquer objecto que as características do organismo lhes permitam cartografar. Por outro lado, certas partes do cérebro, as que representam o próprio estado do organismo, não têm esse mesmo à-vontade. Não têm liberdade de escolha. Só podem cartografar o corpo e fazem-no no interior de mapas relativamente predeterminados. Constituem a audiência cativa do corpo e encontram-se à mercê da sua uniformidade e conformidade.
Existem várias razões por trás desta assimetria. Em primeiro lugar, a composição e as funções gerais do organismo vivo permanecem as mesmas, em termos da sua qualidade, ao longo de uma vida inteira. Em segundo lugar, as modificações corporais que continuamente ocorrem são pequenas, em termos quantitativos. Possuem limites dinâmicos estreitos, uma vez que o corpo, para sobreviver, tem de operar dentro de uma pequena amplitude de parâmetros; o estado interno do corpo deve permanecer relativamente estável em comparação com o ambiente que o rodeia. Em terceiro lugar, este estado de estabilidade é governado a partir do cérebro através de um sofisticado equipamento neural desenhado para detectar variações mínimas nos parâmetros do perfil químico interno do corpo e para comandar acções destinadas a corrigir, directa ou indirectamente, as variações detectadas. Em suma, no teatro de relações da consciência, o organismo constitui a unidade do nosso ser vivo, ou seja, do nosso corpo; e, no entanto, como se verá, a parte do organismo chamada cérebro tem dentro de si uma espécie de modelo desse mesmo organismo. Este estranho facto, tantas vezes esquecido, é mais do que notável. Considero-o a pista mais importante na descoberta dos possíveis alicerces da consciência.
Cheguei à conclusão de que o organismo, tal como é representado no interior do seu próprio cérebro, é um precursor biológico provável daquilo que finalmente se torna o fugidio sentido do si. As raízes profundas do si, incluindo o si alargado que abarca identidade e individualidade, podem ser encontradas no conjunto dos dispositivos cerebrais que de forma contínua e não consciente mantêm o estado do corpo dentro dos estreitos limites e da relativa estabilidade necessárias à sobrevivência. Estes dispositivos representam, de forma contínua e não consciente, o estado do organismo vivo nas suas várias dimensões. Denomino proto-si a actividade que ocorre no conjunto destes dispositivos. O proto-si é o precursor não consciente dos níveis do si que surgem nas nossas mentes como os protagonistas da consciência: o si nuclear e o si autobiográfico».

In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT

domingo, 10 de agosto de 2014

O Sentimento de Si. António Damásio. «… a compreensão da biologia da consciência transforma-se na questão de descobrir como é que o cérebro consegue cartografar "ambos" os actores e a relação que estes mantêm. O problema geral da representação do objecto não é particularmente enigmático»

Cortesia de wikipedia

Em busca do Si
«De que modo vimos a saber que estamos a ver um determinado objecto? Como é que nos tornamos conscientes no sentido completo da palavra? Como é que o sentido de si no acto de conhecimento se implanta na mente? O caminho para uma possível resposta a estas perguntas só se tornou claro após eu ter começado a encarar o problema da consciência em função de dois actores principais, o organismo e o objecto, e em função da relação mantida por estes actores ao longo das suas interacções naturais. O organismo em questão é aquele dentro do qual acontece a consciência; o objecto, em questão é qualquer um que se dê a conhecer no processo da consciência; e as relações entre organismo e objecto constituem o conteúdo do conhecimento a que chamamos consciência. Vista nesta perspectiva, a consciência consiste na construção do conhecimento sobre dois factos: que o organismo está envolvido numa relação com um objecto e que o objecto presente nessa relação provoca uma modificação no organismo. Esta nova perspectiva também transforma a realização biológica da consciência num problema tratável. O processo da construção do conhecimento requer um cérebro e requer as propriedades de sinalização através das quais os cérebros conseguem construir padrões neurais e formar imagens.
Os padrões e as imagens necessários ao aparecimento da consciência são nem mais nem menos que os deputados cerebrais do organismo, do objecto, e da relação entre os dois. Nesta perspectiva, a compreensão da biologia da consciência transforma-se na questão de descobrir como é que o cérebro consegue cartografar ambos os actores e a relação que estes mantêm. O problema geral da representação do objecto não é particularmente enigmático. O aturado estudo da percepção, da aprendizagem, da memória e da linguagem deu-nos uma ideia considerável do modo como o cérebro processa um objecto, em termos sensoriais e motores, e uma ideia de como o conhecimento de um objecto pode ser guardado na memória, classificado em termos conceptuais ou linguísticos, e recuperado na recordação ou no reconhecimento. Os pormenores neurofisiológicos destes processos ainda não foram completamente resolvidos, mas os contornos destes problemas são compreensíveis. Do meu ponto de vista, a neurociência tem vindo a dedicar a maior parte dos seus esforços à compreensão da base neural daquilo que vejo como o deputado do objecto. No jogo de relações da consciência, o objecto é mostrado sob a forma de padrões neurais, nos córtices sensoriais apropriados para cartografar as suas características. Por exemplo, no caso dos aspectos visuais de um objecto, os padrões neurais são construídos numa diversidade de regiões dos córtices visuais, não apenas numa ou duas mas em muitas, que trabalham concertadamente para cartografar os vários aspectos do objecto em termos visuais. Porém, do ponto de vista do organismo, as questões são bem diferentes. Para mostrar quão diferentes elas são, vou sugerir ao leitor um exercício.
Levante os olhos desta página e dirija-os para a sala e para as coisas que estão à sua frente, observe-as com atenção e regresse depois à página do livro. Quando levantou os olhos, as várias estações do seu sistema visual, desde as retinas até às diversas regiões do córtex cerebral, deixaram rapidamente de seguir estas palavras para cartografarem a sala que se encontra à sua frente. Quando regressou ao livro, todas essas regiões voltaram mais uma vez a cartografar a página. Agora, dê uma volta de cento e oitenta graus e olhe para o que está atrás de si. Mais uma vez a cartografia da página desaparece de repente para que o sistema visual possa representar a nova cena que está a contemplar. Moral da história: numa sucessão rápida, precisamente as mesmas regiões do cérebro construíram mapas completamente diferentes devido às diferentes disposições motoras que o organismo assumiu e às diversas informações sensoriais colhidas pelo organismo». In António Damásio, O Sentimento de Si, O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, Publicações Europa-América, 1999, 2004, ISBN 972-1-04757-0.

Cortesia de PEA/JDACT

domingo, 23 de março de 2014

Leituras. Ao Encontro de Espinosa. António Damásio. «A palavra homeostasia descreve este conjunto de processos de regulação e, ao mesmo tempo, o resultante estado de vida bem regulada. No curso da evolução biológica, o equipamento inato e automático do governo da vida tornou-se muito sofisticado»

Níveis da regulação homeostática automática
Cortesia de wikipedia

Os Apetites e as Emoções
As Emoções Precedem os Sentimentos
«(…) O que me lembra James Joyce, quando diz em Ulisses: Shakespeare é a coutada feliz de todos os espíritos que perderam o seu equilíbrio. Chegados aqui, é altura de perguntar: porque é que as emoções precedem os sentimentos? A minha resposta é simples: temos emoções primeiro e sentimentos depois porque, na evolução biológica, as emoções vieram primeiro e os sentimentos depois. As emoções foram construídas a partir de reacções simples que promovem a sobrevida de um organismo e que foram facilmente adoptadas pela evolução. Tem-se a impressão de que os deuses deram grande esperteza natural às criaturas que queriam salvar. Com efeito, muito antes dos seres vivos terem uma inteligência criadora e ainda antes de terem cérebros propriamente ditos, é como se a natureza tivesse decidido que a vida era, ao mesmo tempo, extremamente precária e extremamente preciosa. É claro que sabemos que a natureza não funciona de acordo com os planos de nenhum arquitecto e não decide como os artistas ou engenheiros decidem, mas talvez a metáfora nos ajude. Todos os organismos vivos, desde a humilde amiba até ao ser humano, nascem com dispositivos que solucionam automaticamente, sem qualquer raciocínio prévio, os problemas básicos da vida. Esses problemas são os seguintes:
  • encontrar fontes de energia;
  • incorporar e transformar energia;
  • manter, no interior do organismo, um equilíbrio químico comparável com a vida; 
  • substituir os sub-componentes que envelhecem e morrem de forma a manter a estrutura do organismo;
  • defender o organismo de processos de doença e de lesão física.
A palavra homeostasia descreve este conjunto de processos de regulação e, ao mesmo tempo, o resultante estado de vida bem regulada. No curso da evolução biológica, o equipamento inato e automático do governo da vida, a máquina homeostática, tornou-se muito sofisticado. Na base da organização da homeostasia encontramos respostas simples, tais como a de aproximação (approach) ou de retraimento (withdrawal) de um organismo inteiro ern relação a um determinado objecto; ou a de excitação ou quiescência. Nos níveis mais altos da organização encontramos respostas competitivas ou de cooperatividade. Podemos imaginar a máquina da homeostasia como uma árvore bem alta e larga em que os variados ramos são os fenómenos automáticos da regulação da vida. Em organismos multicelulares, caminhando do chão para o topo, eis o que devemos encontrar neste árvore.

Nos Ramos Mais Baixos
O processo de metabolismo. Este processo inclui componentes químicos e mecânicos (por exemplo, secreções endócrinas/hormonais; contracções musculares relacionadas com a digestão) que mantêm o equilíbrio químico interior. Estas reacções governam o ritmo cardíaco e a pressão arterial, dos quais depende a distribuição apropriada do fluxo sanguíneo no corpo; os ajustamentos da acidez e da alcalinidade do meio interior (os fluidos que circulam no sangue e nos espaços entre as células); e o armazenamento e distribuição de proteínas, lípidos e hidratos de carbono, necessários para abastecer o organismo de energia, que, por sua vez, é necessária para o movimento, para a manufactura de enzimas e para o manter e renovar da estrutura do organismo.

Os reflexos básicos. Incluem o reflexo de startle (reflexo de alarme ou susto) que os organismos exibem quando reagem a um ruído inesperado, e os tropismos ou taxes, que levam os organismos a escolher a luz e não o escuro, ou a evitar o frio e o calor extremos.

O sistema imunitário. É um sistema que defende o organismo de vírus, de bactérias, de parasitas e de moléculas tóxicas que o podem invadir do exterior. Curiosamente, o sistema imunitário também está preparado para manejar moléculas que normalmente residem em células saudáveis do organismo e que se podem tornar tóxicas quando as células doentes ou mortas as libertam no meio interior (por exemplo, o ácido glutâmico e o ácido hianorónico). Em suma, o sistema imunitário constitui uma primeira linha de defesa dos organismos vertebrados quando a sua integridade é ameaçada, quer do exterior quer do interior».

In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT

Ao Encontro de Espinosa. Leituras. António Damásio. «… o que Ricardo devia ter dito, com as devidas desculpas para Shakespeare, é o seguinte: Ó, como esta forma exterior de lamentos lança uma sombra intolerável de pesar sobre o silêncio da minha alma torturada»

Cortesia de wikipedia

Os Apetites e as Emoções
Shakespeare já o tinha dito
«(…) Na parte final de Ricardo II, coma coroa já perdida e a prisão cada vez mais perto, Ricardo explica a Bolingbroke a distinção entre emoção e sentimento. Ricardo pede que lhe tragam um espelho e confronta no seu rosto o espectáculo do declínio. Declara então que a forma exterior de lamentos que o seu rosto exprime nada mais é do que as sombras do pesar que ninguém vê, um pesar que se avoluma em silêncio na alma torturada. O seu pesar, diz ele, é inteiramente interior. Em apenas quatro versos, Shakespeare anuncia que o processo unificado e aparentemente singular dos afectos, a que geralmente nos referimos indiscriminadamente como emoções ou sentimentos, pode ser analisado em partes. A elucidação dos sentimentos requer esta distinção. É verdade que o uso habitual da palavra emoção tende a incluir a noção de sentimento. Mas, na tentativa de compreender a cadeia complexa de acontecimentos que começa na emoção e termina no sentimento, separar a parte do processo que se torna pública da parte do processo que sempre se mantém privada ajuda a clarificar as ideias. À parte pública do processo chamo emoção e à parte privada sentimento. Peço ao leitor que me acompanhe nesta escolha de palavras e conceitos, porque esta escolha nos vai permitir descobrir qualquer coisa de novo na biologia que respeita a esses fenómenos. No contexto deste livro, as emoções são acções ou movimentos, muitos deles públicos, que ocorrem no rosto, na voz ou em comportamentos específicos. Alguns comportamentos da emoção não são perceptíveis a olho nu mas podem tornar-se visíveis com sondas científicas modernas, tais como a determinação de níveis hormonais sanguíneos ou de padrões de ondas electrofisiológicas. Os sentimentos, pelo contrário, são necessariamente invisíveis para o público, tal como é o caso com todas as outras imagens mentais, escondidas de quem quer que seja excepto do seu devido proprietário, a propriedade mais privada do organismo em cujo cérebro ocorrem.
As emoções desenrolam-se no teatro do corpo. Os sentimentos desenrolam-se no teatro da mente. Tal como veremos, as emoções e as várias reacções que as constituem fazem parte dos mecanismos básicos da regulação da vida. Os sentimentos também contribuem para a regulação da vida mas a um nível mais alto. As emoções e as reacções com elas relacionadas parecem preceder os sentimentos na história da vida e constituir o alicerce dos sentimentos. Os sentimentos, por outro lado, constituem o pano de fundo da mente. As emoções e os sentimentos estão tão intimamente relacionados ao longo de um processo contínuo que tendemos a vê-los, compreensivelmente, como uma entidade simples. No entanto, é possível entrever sectores diferentes nesse processo contínuo e, com a ajuda do microscópio da neurociência cognitiva, é possível e legítimo dissociar esses sectores. Com a ajuda dos métodos científicos modernos, um observador pode examinar objectivamente os comportamentos que perfazem uma emoção e, desse modo, estudar o prelúdio dos processos do sentimento. Transformar emoção e sentimento em objectos separados de pesquisa, ajuda-nos a descobrir como se sente.

As Emoções Precedem os Sentimentos
Ao discutir a precedência da emoção sobre o sentimento, devo começar por chamar a atenção para qualquer coisa que Shakespeare deixou ambígua nos seus versos para Ricardo. A ambiguidade tem a ver com a palavra sombra e com a possibilidade de que o sentimento pudesse surgir antes da respectiva emoção, uma possibilidade que de facto não se verifica. Os lamentos exteriores são uma sombra do pesar invisível, diz Ricardo, uma espécie de reflexo, no espelho, do objecto principal, o sentimento de pesar, tal como o rosto de Ricardo, no espelho, reflecte Ricardo, o objecto principal da peça. Esta ambiguidade é fácil de compreender.
Gostamos de acreditar que aquilo que está escondido é a origem daquilo que exprimimos, e claro que acreditamos que, no que diz respeito à mente, o sentimento é aquilo que conta. Eis a substância, diz Ricardo quando fala do seu pesar oculto, e concordamos com ele. Mas principal não significa que veio primeiro e, ainda menos, causativo. A grande importância dos sentimentos não deixa entrever facilmente a forma como eles surgem, e pode levar à falsa ideia de que os sentimentos ocorrem primeiro e, subsequentemente, se exprimem em emoções. Este ponto de vista é incorrecto e é uma das causas do atraso no estudo neurobiológico dos sentimentos. Na realidade, são os sentimentos que constituem sombras das manifestações emocionais. Com efeito, o que Ricardo devia ter dito, com as devidas desculpas para Shakespeare, é o seguinte: Ó, como esta forma exterior de lamentos lança uma sombra intolerável de pesar sobre o silêncio da minha alma torturada». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT

Ao Encontro de Espinosa. Leituras. António Damásio. «Ambos passaram a maior parte das suas vidas no paraíso holandês, um deles por direito de nascimento, o outro por escolha deliberada, Descartes tinha decidido no princípio da sua carreira que as suas ideias entrariam em provável conflito com a igreja Católica…»

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«(…) A igreja considerou o livro um ataque à religião organizada e ao poder político. Depois disso Espinosa deixou de publicar. Os seus últimos escritos ainda estavam na gaveta da secretária no dia da sua morte, mas Van der Spijk tinha instruções precisas: a secretária foi colocada numa barca com rumo a Amsterdão, onde foi entregue ao verdadeiro editor de Espinosa, John Rieuwertz. A colecção dos manuscritos póstumos, a Ética, constantemente revista, a Gramática Hebraica, o segundo e incompleto Tratado Político, o Ensaio para a Melhoria da Compreensão, e a Correspondência, foi publicada nesse mesmo ano de 1677 sob as inicias BdeS. Devemos recordar esta situação sempre que pensamos nas províncias holandesas como um paraíso de tolerância intelectual. Eram, de facto, um paraíso, mas a tolerância tinha limites.
Durante a maior parte da vida de Espinosa, a Holanda foi uma república, e durante a sua vida adulta a política holandesa foi dominada por Jan de Witt no seu papel de Grande Pensionário. De Witt era ambicioso e autocrático, mas era um espírito esclarecido. Não se sabe ao certo se Witt e Espinosa se conheceram pessoalmente, mas sem dúvida Witt conhecia o trabalho do filósofo, e é provável que tenha contido, mais do que uma vez, a fúria dos políticos calvinistas mais conservadores na altura em que o Tractatus começou a causar escândalo. É sabido que Witt possuía o Tractatus desde 1670, e pensa-se que se aconselhou com Espinosa. Seja como for, não há qualquer dúvida de que Witt manifestou interesse pelo pensamento político de Espinosa e tinha considerável simpatia pelas suas opiniões religiosas. Espinosa tinha boas razões para se sentir protegido pela presença de Witt.
Esta relativa segurança de Espinosa terminou abruptamente em 1672 durante uma das horas mais negras da história da Holanda. Num episódio inesperado que define uma era politicamente volátil, Witt e o seu irmão foram assassinados por uma turba, em consequência da suspeita infundada de que eram traidores da causa holandesa na guerra com a França que então se desenrolava. Os atacantes espancaram e esfaquearam os irmãos Witt e arrastaram-nos até aos cadafalsos da cidade, onde ambos chegaram já morros. Os corpos foram despidos, pendurados como num talho, esquartejados, e os fragmentos vendidos como recordações ou comidos no meio de um regozijo doentio. Tudo isto se passou perto do sítio onde estou neste momento, praticamente ao virar da esquina da casa de Espinosa. O episódio chocou a Europa intelectual do tempo. Leibniz declarou-se horrorizado, tal como o eternamente calmo Huygens na segurança da sua vida parisiense. Mas para Espinosa o acontecimento foi devastador. O revelar da natureza humana no seu mais selvagem e vergonhoso abalou a equanimidade que Espinosa mantinha com enorme disciplina. Espinosa preparou um dístico com as palavras ultimi barbororum (o cúmulo da barbaridade), e dispunha-se a ir colocá-lo junto do que restava dos irmãos Witt. Felizmente que a sensatez de Van der Spijk levou a melhor. Van der Spijk fechou a porta da casa à chave e assim evitou que Espinosa enfrentasse uma morte certa. Espinosa chorou em público, pela única vez, ao que parece. O porto de abrigo intelectual, mesmo que imperfeito, tinha desaparecido.
Olho para o túmulo de Espinosa, uma vez mais, e recordo-me da inscrição que Descartes preparou para o seu próprio túmulo: aquele que se escondeu bem, viveu bem. Apenas 27 anos separam a morte de Descartes e de Espinosa (Descartes morreu em 1650). Ambos passaram a maior parte das suas vidas no paraíso holandês, um deles por direito de nascimento, o outro por escolha deliberada, Descartes tinha decidido no princípio da sua carreira que as suas ideias entrariam em provável conflito com a igreja Católica e com a monarquia francesa, e partira discretamente para a Holanda. Ambos tinham tido que esconder e fingir, e, no caso de Descartes, talvez distorcer as suas próprias ideias. Ambos actuaram com sensatez e por razões óbvias. Em 1633, um ano depois do nascimento de Espinosa, Galileu foi interrogado pela inquisição romana e preso na sua própria casa. Nesse mesmo ano, Descartes suspendeu a publicação do seu Tratado do Homem, e, mesmo assim, teve de responder a ataques ferozes às suas opiniões. Em 1642, contradizendo o seu pensamento inicial, Descartes postulava uma alma imortal separada de um corpo perecível, talvez como uma tentativa desesperada de evitar novos ataques. Se foi essa a sua intenção a estratégia funcionou, embora não propriamente durante a sua vida. Mais tarde, dando novas provas de prudência, trocou a Holanda pela Suécia, para onde foi ensinar a irreverente rainha Cristina. Descartes morreu no meio do seu primeiro Inverno em Estocolmo, aos 54 anos. Devemos estar gratos por viver numa época bem mais tolerante, mas, mesmo assim, continua a recomendar-se prudência». In António Damásio, Ao Encontro de Espinosa, As Emoções Sociais e a Neurologia do Sentir, Publicações Europa-América, Fórum da Ciência, 2003, ISBN: 972-1-05229-9.

Cortesia de PEA/JDACT