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Da
condição humana. Uma ideia simples
«Eis a ideia simples que tenho vindo
a considerar. Se nos ferimos e sentimos dor, seja qual for a causa do ferimento
ou o perfil da dor, temos a possibilidade de remediar o problema. A variedade de
situações que podem causar sofrimento humano inclui não só as lesões físicas,
mas também o tipo de dor que resulta da perda de um ente querido ou de uma humilhação.
A recuperação constante de memórias associadas mantém e amplifica o sofrimento,
porque a memória ajuda a projectar a situação para um futuro imaginado e permite-nos
antever as consequências. Seja qual for a causa, os seres humanos seriam capazes
de reagir ao sofrimento tentando compreender esse seu calvário e inventando compensações,
correcções ou soluções de eficácia radical.
A par da dor, os seres humanos seriam
também capazes de viver o seu oposto, prazer e entusiasmo, numa grande variedade
de situações, desde as simples e banais às sublimes, desde o prazer que constitui
a reacção a paladares e cheiros, comida, vinho, sexo e confortos físicos, ao
espanto e à iluminação que advêm da contemplação de uma paisagem, ou à admiração
e ao afecto profundos sentidos em relação a outra pessoa. Os seres humanos também
terão descoberto que exercer poder, dominar e até destruir os outros,
provocando caos puro e saqueando, podia proporcionar prazer. Também nestes casos
os seres humanos poderiam empregar tais sentimentos com um objectivo prático: como
motivo para questionar a razão por que a dor existe, e talvez para se fascinarem
com o facto bizarro de que, em determinadas circunstâncias, o sofrimento dos outros
pode ser gratificante. Talvez usassem os sentimentos relacionados, entre eles medo,
surpresa, fúria, tristeza e compaixão, como guia para imaginarem formas de contrariar
o sofrimento e as suas origens. Aperceber-se-iam de que entre a variedade de comportamentos
sociais disponíveis, alguns, a pertença a um grupo, a amizade, o carinho, o amor,
representavam o oposto da agressividade e da violência, estando directamente associados
não só ao bem-estar dos outros, mas também ao bem-estar próprio.
Porque seriam capazes os sentimentos
de levar a mente a agir de forma tão sensata e vantajosa? Um dos motivos advém daquilo
que os sentimentos realizam na mente e fazem à mente. Em circunstâncias normais,
a cada momento, os sentimentos indicam à mente, sem que profiram qualquer
palavra, o bom ou mau rumo dos processos da vida no interior do respectivo corpo.
Ao fazê-lo, os sentimentos estão naturalmente a qualificar o processo vital como
sendo ou não conducente ao bem-estar e ao desenvolvimento.
Outro motivo por que os sentimentos
seriam bem-sucedidos onde as simples ideias falham tem a ver com a sua natureza
particular. Os sentimentos não são uma fabricação independente do cérebro. Eles
resultam de uma colaboração entre corpo e cérebro, os quais interagem graças a moléculas
químicas e vias nervosas. Esta relação única entre corpo, e cérebro, em geral ignorada,
garante que os sentimentos perturbem aquilo que, na sua ausência, seria um fluxo
mental indiferente. É a vida na corda bamba, entre o florescimento e a morte, que
dá origem ao sentimento. Consequentemente, os sentimentos são perturbações mentais,
preocupantes ou gloriosas, gentis ou intensas». In António Damásio, A Estranha Ordem
das Coisas, Da condição Humana, 2017, Temas e Debates, Bertrand Editora, Círculo
de Leitores, 2017, ISBN 978-989-644-334-4.
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