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de wikipedia e jdact
«(…) Apesar disso, sua sapiência demasiado
ostensiva e o modo nada ingénuo que tinha de manejar o poder do próprio nome
acabaram por lhe valer menos afectos do que merecia. As instruções ao
comissário e ao praticante foram precisas e rápidas. Não haveria autópsia. O
cheiro da casa bastava para determinar que a causa da morte tinham sido as
emanações do cianureto activado na vasilha por algum ácido de fotografia, e
Jeremiah de Saint-Amour entendia muito do assunto para não fazê-lo por
acidente. Diante de uma reticência do comissário, deteve-o com uma estocada típica
do seu modo de ser: não se esqueça de que sou eu quem assina o atestado de óbito.
O médico jovem ficou decepcionado: nunca tinha tido a sorte de estudar os efeitos
do cianureto de ouro num cadáver. O doutor Juvenal Urbino tinha ficado espantado
de não havê-lo visto na Escola de Medicina, mas compreendeu de pronto ao notar
seu rubor fácil e o seu sotaque andino: era sem dúvida um recém-chegado à cidade.
Disse: não faltará por aqui algum louco de amor que lhe dê a oportunidade um
dia destes. E só ao dizê-lo percebeu que entre os incontáveis suicídios que lembrava,
aquele era o primeiro com cianureto que não tinha sido causado por um infortúnio
de amor. Algo se alterou então na sua maneira de falar. Quando encontrá-lo,
preste bem atenção, disse ao praticante: costumam ter areia no coração.
Em seguida falou com o comissário
como quem fala a um subalterno. Ordenou-lhe que desse um jeito em todas as instâncias
para que o enterro se realizasse nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse:
eu falo depois com o prefeito. Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma
austeridade primitiva, e que ganhava com a sua arte muito mais do que carecia
para viver, de modo que em algumas das gavetas da casa devia haver dinheiro de
sobra para os gastos do enterro. Mas se não o acharem, não importa, disse. Eu
me encarrego de tudo. Mandou que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha
morrido de morte natural, embora achasse que a notícia não lhes interessava de
nenhum modo. Disse: se for necessário, falo com o governador. O comissário, um
empregado sério e humilde, sabia que o rigor cívico do mestre exasperava até os
seus amigos mais chegados, e estranhava a facilidade com que saltava por cima
dos trâmites legais para apressar o enterro. Só não acedeu em falar com o
arcebispo para que Jeremiah de Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada.
O comissário, mortificado com sua própria impertinência, tratou de se
desculpar. A minha ideia é que este homem era um santo, disse. Era algo ainda
mais raro, disse o doutor Urbino: um santo ateu. Mas esses assuntos a Deus
pertencem.
Remotos, do outro lado da cidade
colonial, se ouviram os sinos da catedral chamando à missa solene. O doutor
Urbino repôs os óculos de meia-lua com armação de ouro e consultou o relógio da
corrente, que era quadrado e fino, e a sua tampa se abria com uma mola: estava
a ponto de perder a missa de Pentecostes. Na sala havia uma enorme máquina
fotográfica sobre rodas como as dos jardins públicos, e o telão de um
crepúsculo marinho pintado com tintas artesanais, e as paredes estavam forradas
de retratos de crianças nas suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a
fantasia de coelho, o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o
revestimento paulatino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas
das tardes de xadrez, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação
que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura, governada
e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não restariam sequer as
cinzas de sua glória». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos
de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.
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