Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Cada ofício com seu estilo, e este,
guia, pregoeiro, arauto e actividades associadas, precisa de ter o seu. Por que
diabo não há-de haver copyrights para os cauteleiros? Então o Infante?,
aí está como ele me veio receber, não há muito tempo, quando me apeei no largo.
E, enfim, não se pode dizer que seja uma maneira muito própria de saudar um
conhecido, um hóspede, como é o caso, que regressa à aldeia ao cabo de uma ausência
de 365 dias. É verdade, trezentos e sessenta e cinco dias, Velho. 31 de Outubro
de 1966, 31 de Outubro de 1967. Datas de caçador. E este ano, que eu saiba, não
foi bissexto. Mas, ainda que tivesse decorrido apenas um mês, ainda que fosse
uma escassa quinzena, uma semana, a questão põe-se no mesmo pé. Um caçador
desembarca naquele terreiro, corre os olhos em redor, muralha, casas mudas, a
porta aberta da loja do Regedor, e salta-lhe uma voz não sabe donde. Vira-se.
Dá com um homenzinho a fitá-lo: então o Infante? Palavra, parece uma acusação.
Desconcerta encontrar assim uma cara que nos é conhecida e no meio dela um
grande dente espetado a pedir-nos contas: o Infante? Depois os olhos, Velho.
Essas frestas sem brilho também se estavam nas tintas para tudo, para mim,
visitante de boa vontade, e para todos os outros caçadores que hoje e amanhã
vêm à Gafeira em romagem às aves da lagoa. Queriam saber do Engenheiro (do
Infante, peço desculpa). Quanto ao resto, os olhos nem bom-dia nem boa-tarde. Não
o viu? Não se encontrou com ele lá por Lisboa? Perante isto um homem hesita.
Percebe que houve coisa. Mas o quê? Crime, pronuncia o dente inquisidor; e
sente-se que dentro do Velho se tinha levantado uma alegria mansa. A vitória do
profissional de novidades que gosta de chegar primeiro, e no momento
inesperado, com a revelação que deslumbra o visitante.
Estou-lhe a dizer. Cães, criado e
dona Mercês, já nada disso existe. Caramba, não me diga que não sabia. Calcula-se
como um dente como aquele, único, eremita, pode apanhar um forasteiro à hora do
meio-dia numa aldeia em silêncio. É um osso eriçado no deserto, um estilete que
se aproveita da desorientação de um estranho para penetrar nele a fundo, sempre
mais fundo, de modo a destruir-lhe os últimos restos de dúvida e de serenidade.
Homem..., tenta ainda o viajante. E o outro a cortar rápido, sem mais aquelas:
assim mesmo. A dona Mercês matou o criado e o Infante matou-a a ela. Nem mais. A
partir daqui o Velho não tem bandeira. Entrou num discurso tortuoso, carregado
de meias palavras, no qual era possível vislumbrar Maria das Mercês,
tresloucada de todo, a enfrentar o marido e o criado, essa estranha aliança que
a torturava. Acabou-se. Comeram-se uns aos outros, tiveram o fim que
mereciam... Agora quem quiser caçar na lagoa já não precisa da autorização do
Infante para nada. E etc.
Assim, de cabeça baixa, gabardina no
braço, deixei eu há coisa de três horas o meu carro, rumo à pensão. Levava em
cima de mim a voz do pregoeiro da aldeia; ia envolvido numa tempestade de
vinganças e delírios populares, as tiras de lotaria esvoaçavam à minha frente e
o homem parecia louco, louco varrido. Ou fazia o seu número?, perguntava eu a
todo o passo. Avalio deste miradouro as voltas e contravoltas que aquele dente
não deu sobre o terreiro: picando-o todo em redor de mim, mordiscando-o em
círculos enquanto estive parado junto do carro; singrando depois em ponto
corrido a perseguir-me com lengalengas, e finalmente, já mais confiante,
tecendo renda de palavras, enovelando-se-me nos passos, a tolher-me a marcha. A
dada altura fui eu que me deixei levar por ele. Tocado pelo veneno da
curiosidade, em vez de me dirigir logo para aqui, onde uma estalajadeira de
caçadores aguardava a minha chegada desde manhã, acompanhei o Velho ao café. A
pensão que esperasse, decidi. Primeiramente convinha tomar fôlego, beber um copo,
e, já agora, conhecer as linhas com que se cose o caçador ignorante dos
mistérios aldeões. Estes da Gafeira sobretudo tinham sido muitos e
inacreditáveis. Se tinham. Eu não dizia?, anunciou o Velho, mal entrámos no
café. O Infante também não está em Lisboa. Apontava-me a dois homens que
estavam sentados a uma mesa, como se me tivesse ido buscar algures para vir ali
confirmar o que há muito suspeitava. Diabo..., murmurou um deles, o dono do
café, coçando a cabeça. Isso agora é que é o diabo... E o outro, um batedor de
caça: teria ele abalado para a África? África?, gritou o Velho. Deixa-me rir.
Em África nunca ele estaria em segurança. O Batedor então: de qualquer maneira
fugiu. E quem foge é porque não quer ser apanhado. Essa é que é essa. Velho-dum-Só
Dente: agora assobiem-lhe às botas. Matou, cometeu crime... E ainda dizem que
há justiça». In José Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª edição, Moraes Editores,
Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom Quixote, 1988, 2003, ISBN
972-201-654-7.
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