«(…) Num frémito de emoção e de
descontrolo, a velha ajoelhou-se de seguida no chão, ergueu os olhos e as mãos
aos céus e bradou: perdoai-lhe, meu Deus Nosso Senhor que estais no Céu, e não
queirais ouvir o que esta minha adorada dama Vos disse agora, levada com toda a
certeza por algum espírito maligno trazido para aqui pelo seu danado esposo.
Perdoai-lhe, Deus Nosso Senhor, e não a deixeis cair em tentações satânicas... De
bruços sobre a cama e com o rosto escondido na palma das mãos, a dama começou a
chorar já então arrependida, não só de ultrajar a Deus mas também com o receio
de vir a sofrer pesados castigos por tanto ter pecado naquela hora exasperante.
Emocionalmente devastada, exausta de dor e de pranto, a senhora do morgado
acabou por adormecer sob a cuidada vigilância de Briolanja Mendes.
Nas duas semanas seguintes Leonor
Teles e João Lourenço raramente se viram e se relacionaram. Ela passava a maior
parte do tempo nos aposentos e no leito; ele consumia-o nas caçadas e
diversões. Numa manhã, estava a jovem sentada na cozinha em frente à lareira,
chegou o marido com a notícia de que João Afonso Telo mandara dizer que era sua
intenção deslocar-se a Pombeiro para uma visita de cortesia, no último dia do
mês. E que levaria consigo um grupo de amigos. Radiante com a novidade, quanto mais
não fosse pela circunstância de rever o tio e de conhecer pessoas diferentes
das habituais, Leonor prontificou-se imediatamente a organizar a ementa e a
dirigir a recepção. Porém, até ao dia aprazado, o último de Novembro, o
quotidiano de ambos não se alterou, como também nunca se recompôs a relação entre
o casal. O matrimónio era recente, sem dúvida, mas as suas vidas já se tinham
autonomizado. Ela continuava a dormir, a chorar e a rezar; ele persistia na
caça, nas diversões e na ida às put… Foi, portanto, com um sentimento de enorme
alegria que Leonor recebeu aquele bendito anúncio, sobretudo pela perspectiva
de uma alteração, embora breve, do curso regular do seu calendário, monótono e
triste.
Tamanho o entusiasmo dela que
logo ali e naquele momento se manifestou empenhada na concepção de uma farta
ementa, destinando para o jantar desse dia carne de vaca picada com cebola,
cravo, açafrão, pimenta e gengibre, regada abundantemente com azeite e vinagre;
fatias de galinha temperadas com salsa, coentros, hortelã, canela e um número
considerável de ovos cozidos e escalfados; coelho assado com cebola pisada,
vinagre, cravo, pimenta e muita gordura; e lampreia cozida, temperada com quase
todos os condimentos utilizados nas anteriores iguarias. E porque ninguém melhor
do que ela sabia dos gostos do tio, mandaria confeccionar, para o fim de tudo,
a guloseima que ele mais apreciava: tigelada de arroz cozido com muitas gemas
de ovos e queijo fresco. Vinho palhete de Azóia, que os apreciadores comparavam
aos vinhos gregos de malvasia e que já era conhecido em Inglaterra, nos Países
Baixos e em todo o mundo hanseático, haveria de servir de rega à poderosa
ementa.
Como estava previsto, a meio da
manhã de 30 de Novembro chegava ao morgado de Pombeiro João Afonso Telo com um
familiar e oito amigos: o sobrinho Gonçalo Teles Menezes, irmão de Leonor, o
arcebispo de Viseu, os alcaides de Castelo Rodrigo e da Covilhã, um fidalgo de
São Pedro do Sul, um infanção de Montemor-o-Velho, um médico do Porto, um juiz
e um lente da Faculdade de Direito Civil, de Coimbra. Cumprida a recepção de
boas-vindas, sem quaisquer formalidades, os convidados passaram imediatamente à
sala comum para descansar um pouco e, de seguida, se servirem das viandas
postas à disposição de todos sobre a mesa de pinho que em espaço ocupava um
quinto da divisão. O conde de Barcelos foi o primeiro a servir-se, como haveria
de ser o último a acabar já o sol se tinha posto. A dado instante da conversa e
ao correr do prândio, João Afonso Telo virou-se para a sobrinha e perguntou: então
quando é que vamos ter a alegria de nos dares um descendente? A jovem passou
disfarçadamente a ponta dos dedos pelos lábios, sorriu com indisfarçável
nervosismo e mentiu: não sei para quando será, estimado tio, para já nada
indica que venha a caminho...» In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina
do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
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