terça-feira, 19 de março de 2019

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa. «Gostaria que dissésseis a meu irmão, muito lhe agradecer o não me tornar a chamar ao parlatório; assim me pouparia a penosa resolução de me negar a vê-lo…»

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Carta de Mariana Alcoforado a sua mãe
Senhora Minha Mãe
Não vos podendo ver mais nesse martírio inventado de desgosto e dúvida por mim, vos escrevo logo após vossa partida (hoje precipitada a senti e em desprendimento me foi clara: pois pensais acaso que não?) a dar desta vossa filha conhecimento e das causas que me trazem neste cruel e profundo abatimento ou medo.
Talvez de amor vos fale ou de morte; de clausura (aquela a que desde menina me votastes, tão bem paramentada, em sossego posta), de hábito: aquele que visto e aquele adquirido de mim e através de mim também de outrem, mesmo agora criada tanta distância. Tendo o mar entre nós penso inevitável ser esquecida, eu o esqueça, me esqueça. Deixais de vez vosso susto que já nada mais me pode acontecer neste mundo senão o viver sozinha a imaginar-me, lamentando-me de sorte tão adversa (de braços de homem passei aos meus e talvez por minha única culpa, que mulher não o soube aprisionar, ou repelir a tempo), enganando-me em cartas que tanto mais entendo de meu engenho que de paixão, construídas todas elas em língua não materna (assim vos recuso, de vós me liberto um pouco, ó vingança, ó riso...) tão doce e amarga tornada, desde que da boca dele a ouvi em proveito de meu uso.
Sabei Senhora Mãe: nada do que é vosso me importa, nem pensamentos, nem costumes. Costumes que apesar de tudo e todavia, continuo a aceitar, de lei e cobardia, aceitando este estado onde de acordo com meu pai me pusestes por homem não ter nascido e entrave fazer a meu irmão e minha irmã, de dote, podendo ela assim arranjar marido que a receba apesar de feia, não vos custando eu mais que parto e raivas acesas ao me saberdes por amada e possuída de corpo contra vossas ordens, mando, vontades; apesar mesmo de vossas ameaças.
Mas tranquilizai que abandonada me encontro e isso, sei, vos dá alegria, a verdade foi, enraivecida não me terdes perdoado usufruir da vida o que da vida jamais usufruístes. Agora, inquieta encontro vossa atenção por minha saúde e desgosto por minha apatia..., nada mais me restando senão aceitar essas atenções, fingindo não ver nelas a secreta alegria de me encontrardes repelida, logo vós vingada de minha ousadia em recusar o que generosamente meus pais me haviam dado ao me mandarem para este convento..., castigo sofro por me ter entregue: amante de homem por prazer; entrega nomeada de amor e de amor me haja perdido, diz dona Brites.
Embora..., de prazer me dei e conquistei, desafiando de aparência o mundo e a mim mesma nesse desafio de coragem, inconsciência ou grande tentação de fuga, a única que desde sempre se me deparou. Minha trégua, paz. Limite de mim própria, Senhora Mãe.

Que mulher vós nunca fostes nem eu jamais o serei...
Pouco vos escondo e em nada vós me entendeis. Com esta carta sei apenas conseguir reacender raivas, orgulhos e sentidos de posse sobre mim. Bem me podeis executar, quem me defende? A lei? A que dá aos pais todos os direitos de mordaça, aos machos primazia e à mulher somente o infinitamente menos nada, com dádivas de tudo?
Olhai que não me iludo, Senhora, este convento será meu túmulo, guardião feroz em morte como jamais o foi em meses de fala e agasalho. Que isso lhe é alheio. Me alheio. Permiti-me apenas alheada ficar, só isso peço: deixai-me fiar os dias que me restam com seus fios tecidos hora a hora, em fuso de memória. Assim me encontrastes e quisestes saber os motivos com a certeza deles, primeiro falando-me com azedume, depois com certa brandura, tentando tirar por astúcia aquilo que de mim afinal não consigo esconder. Prefiro o azedume, Senhora Minha Mãe, que a ele estou mais habituada partindo de vossa mercê.
Que mal vos fiz nascendo?
É como se a vossas entranhas tivesse sido obrigada e me gerásseis de culpa, quem sabe..., e bem contrariada, por certo. Gostaria que dissésseis a meu irmão, muito lhe agradecer o não me tornar a chamar ao parlatório; assim me pouparia a penosa resolução de me negar a vê-lo, ou, com total precisão: a ouvi-lo. Os seus assomos de cólera deixam-me num estado de nervos deplorável, não queira ele tornar sua irmã mais desgraçada.
Soubesse ser por amizade que ele o faria..., porém apenas é seu nome que defende, invocando princípios de honra que ora me convencem, ora me aterrorizam.
Comunicai-lhe que o cavaleiro de Chamilly jamais voltará ao nosso país e como de lhe escrever larguei para sempre, não preciso mesmo de meu irmão licença para o fazer, como até aqui; assim ando eu ao mando e ao uso de todos...

Beijo-vos a mão, Senhora Minha Mãe, como prova de grande consideração
Vossa filha dedicada
Mariana
28/Mar/71

In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT