jdact
«(…) Belmira desposara, havia quatro anos, um carpinteiro que
tinha idade para ser avô dela. Era a mais velha de seis irmãos, os quais, antes
de virem para Guimarães, os pais tentavam sustentar com um parco pedaço de
terra. Mesmo em anos de boa colheita, depois de se deduzir o cereal guardado
para semear no ano seguinte, o que se pagava ao senhor da terra e o dízimo
eclesiástico, pouco ficava para satisfazer as bocas famintas. E a situação
piorou, quando o pai de Belmira desapareceu, sem deixar rastro, tinha ela dez
anos. Dizia-se que tinha caído ao rio Lima, num dia de tempestade, mas o corpo nunca
fora encontrado. A mãe não recuperara as suas forças, depois de um último parto atribulado. E, apesar de
Belmira e de dois dos seus irmãos já poderem ajudar na labuta, a família não
mais conseguiria pagar o tributo devido ao senhor. Abandonaram o casebre em que
viviam e procuraram protecção no convento de São Mamede. Os monges arranjaram
trabalho para os dois filhos varões com mais de seis anos, a um, nas
cavalariças do próprio convento, e ao outro, numa olaria de Guimarães. Quanto
às moçoilas... Enfim, era preciso esperar que atingissem idade casadoira. Mal
Belmira completara os treze, os monges ofereceram-na ao carpinteiro viúvo, que
ainda ganhava o suficiente para sustentar uma dona. Apesar de o homem já ver
mal e de ter os dedos tolhidos por maleitas de ossos, o jovem Afonso Henriques
encomendava-lhe pequenos trabalhos. E foi na sua oficina que o príncipe
conheceu Belmira. O velho carpinteiro logo notou como o jovem senhor cobiçava a
sua esposa. Mas não se incomodou. Havia algum tempo que já não se encontrava em condições de reclamar dela as obrigações
matrimoniais. Não era só a idade que lhe pesava, também a mágoa que lhe ia na
alma. Os olhos falhavam-lhe, os dedos não lhe obedeciam. E logo ele, que,
durante trinta anos, fora o carpinteiro mais habilidoso da região à volta de
Braga e Guimarães. O vinho era, agora, a única coisa que o aquecia por dentro.
Mas roubava-lhe o apetite e o resto das forças, pondo-lhe o corpo mirrado.
O pobre do homem venerava o jovem infante. Afonso Henriques
bem sabia que ele já não trabalhava em condições e, no entanto, aparecia-lhe a
encomendar banquetas, onde as senhoras que o visitassem pudessem pousar os pés,
quando se sentassem à lareira, ou caixinhas, para guardar pequenas coisas.
Quando o homem lhe entregava os trabalhos toscos, Afonso nunca reclamava. Pelo
contrário. Elogiava-lhe a dedicação e o esforço. E pagava mais do que lhe era
pedido. Bondoso, tal como o pai, falecido havia quinze anos e de quem o
carpinteiro bem se recordava. Já no semblante, o jovem infante assemelhava-se
mais à senhora sua mãe.
Naquele serão, era bem tarde, quando Afonso se viu sozinho
com Belmira. E a sua expectativa por uma noite de prazer crescera tanto, que a
tomou de rompante. O que, aliás, não incomodou a moça. Nunca lhe passaria pela
cabeça chamar a atenção do infante para as suas próprias necessidades.
Chegava-lhe o conforto daquele quarto, o poder dormir sem se encolher de frio.
Além disso, enchera a barriga de guloseimas. E o jovem senhor agradava-lhe.
Assim se viu ela, inesperadamente, a gemer e a suspirar de prazer, enquanto a
fogueira crepitava. Afonso não fazia ideia de quanto tempo dormira, quando se
deu conta da confusão. Como se todos os cães de Guimarães tivessem endoudecido.
E as sentinelas do castelo berravam como possessas. Ainda antes de se levantar,
entrou-lhe o lacaio pelo quarto dentro: acordai, Afonso, acordai!
Que diabo se passa, homem? As sentinelas juram que tropas
se aproximam da cidade. Egas e Soeiro já estão no cimo da torre. Que dizes?
Afonso vestia-se à pressa, com a ajuda do criado. Mas que tropas? Não sei, Afonso.
Ide ao encontro dos outros senhores, que esperam por vós. Belmira, que segurava
a roupa da cama bem junto do pescoço, lançava olhares medrosos ao seu amante,
mas ele não tinha tempo para ela. Galgou os degraus dois a dois da escada em
caracol. No cimo da torre, já Gonçalo Mendes e o Moço faziam companhia aos dois mais velhos. Que se
passa? Há homens armados, à volta da cidade, respondeu Egas Moniz. Mas quem e
porquê, ainda ninguém sabe. Sem luar, nem com os fachos dá para perceber. Fala-se
em mais de mil homens, acrescentou Gonçalo Mendes». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição
Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
Cortesia de EÉsquilo/JDACT