Cortesia
de wikipedia
Carcassonne
«(…) O conde de Mouthoumet olhou para o falcão. Tinha ouvido
falar daqueles pássaros, calades, que podiam
prever a morte ou a vida de um homem. Se o pássaro olhasse directamente os
olhos de uma pessoa doente, essa pessoa iria recuperar, mas se não olhasse ela
morreria. Um pássaro que conhece a eternidade? perguntou o conde. Olhe para o
pássaro, disse o padre, e diga: sabe onde la Malice está
escondida? Não, sussurrou o velho. O falcão parecia estar olhando para a
parede. Em seguida se remexeu no peito do velho, as garras apertando o cobertor
puído. Ninguém falou. O pássaro ficou imóvel, mas então, inesperadamente,
baixou a cabeça bruscamente e o conde gritou. Quieto, vociferou o padre. O
falcão havia cravado o bico adunco no olho esquerdo do agonizante,
transformando-o numa polpa, deixando uma trilha de geleia sangrenta em sua
bochecha barbada. O conde gemia. O bico do falcão fez um barulho áspero quando
o padre puxou-o para trás. A calade afirma
que você mentiu, disse o padre. E agora, se quiser manter o olho direito, vai
me contar a verdade. Onde está la Malice?
Não sei, soluçou o velho. O padre ficou em silêncio um tempo. O fogo estalou e
o vento soprou fumaça no quarto. Mente, insistiu o padre. A calade
diz-me que mente. Você cuspiu no rosto de Deus e de seus anjos. Não!, protestou
o velho. Onde está la Malice?
Não sei! O nome da sua família é Planchard, disse o padre
em tom de acusação. E os Planchard sempre foram hereges. Não!, protestou o
conde, e então, parecendo mais fraco: quem é o senhor? Pode chamar-me de padre
Calade, e sou o homem que decide se você vai para o inferno ou para o céu. Então
me absolva, implorou o velho. Eu preferiria lamber o rabo do diabo. Uma hora
depois, quando o conde estava cego e chorando, o padre finalmente se convenceu
de que o velho não sabia onde la Malice estava
escondida. Atraiu o falcão para o pulso e colocou o capuz de volta na cabeça
dele, depois fez sinal para um dos homens com cota de malha. Mande esse velho
idiota para o senhor dele. Para o senhor dele?, perguntou o soldado, perplexo. Para
Satanás, respondeu o padre. Pelo amor de Deus, implorou o conde de Mouthoumet,
depois sacudiu-se impotente quando o soldado colocou um travesseiro de pelo de
cordeiro no seu rosto. O velho demorou um tempo surpreendentemente longo para
morrer.
Nós três vamos voltar a Avignon, disse o padre aos
companheiros, mas o resto ficará aqui. Diga para revistarem este lugar. Ponham
tudo abaixo! Pedra por pedra. O padre cavalgou para Avignon, a leste. Mais
tarde, naquele dia, caiu um pouco de neve, macia e fina, cobrindo de branco as
pálidas oliveiras no vale abaixo da torre do morto. Na manhã seguinte a neve
havia sumido, e uma semana depois os ingleses chegaram.
Avignon
A mensagem chegou à cidade depois da
meia-noite, trazida por um jovem monge que tinha vindo da Inglaterra. Havia
deixado Carlisle em Agosto com outros dois irmãos, os três com ordens de chegar
à grande casa cisterciense em Montpellier, onde o irmão Michael, o mais novo,
aprenderia medicina e os outros estudariam na famosa escola de teologia. Os
três haviam caminhado por toda a extensão da Inglaterra, navegado de
Southampton a Bordeaux e depois se dirigido a pé para o interior, e, como
qualquer viajante numa longa jornada, traziam mensagens. Havia uma para o abade
de Puys, onde o irmão Vincent havia morrido de fluxo, depois Michael e seu
companheiro tinham caminhado até Toulouse, onde o irmão Peter havia adoecido e
fora levado ao hospital em que, pelo que Michael sabia, ainda se encontrava. Assim o jovem monge
estava sozinho e tinha apenas uma mensagem consigo, um pedaço de pergaminho
surrado, e tinham-lhe avisado que talvez não encontrasse o homem a quem ela era
endereçada caso não viajasse naquela mesma noite. Le Bâtard move-se
depressa, dissera o abade de Paville. Esteve aqui há dois dias, agora está em
Villon, mas amanhã? Le Bâtard? É o nome dele por aqui, dissera o
abade, fazendo o sinal da cruz, o que de certo modo sugeria que o jovem monge
inglês teria sorte se sobrevivesse ao encontro com o homem chamado le Bâtard».
In
Bernard Cornwell, 1356, 2012, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-371-1.
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