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A filha
do rei. 1470
«(…)
Os três vultos moviam-se em círculo e entoavam um cântico. Cabisbaixos, pareciam
contemplar a figura que haviam desenhado no chão. A cantilena ganhava ritmo e
eles dançavam cada vez mais depressa. Gritavam:
As
minhas imagens lançaram-te para o território dos mortos
As
minhas imagens sepultaram-te num caixão com os mortos
As
minhas imagens entregaram-te à destruição!
Os
capuzes de dois vultos caíram. Eram mulheres: uma, de cabelos grisalhos; a outra,
loura. Foram atrás do homem-burro, com as capas negras a esvoaçar, a gesticular
num frenesim desvairado. Eu estava aterrada. Nem conseguia respirar. Elas eram
bruxas e toda a gente sabia que as bruxas arrancavam o coração às pessoas e comiam-no.
Deus da Noite, lança um feitiço que provoque consternação ao inimigo e lhe
impregne os pensamentos! Um feitiço que provoque a destruição total! Espírito
das Sepulturas, lembra-te! Dele é o tempo das trevas! O homem-burro levava um
livro numa mão e aspergia água com a outra. Um dos vultos temíveis saiu das
sombras. O fumo dissipou-se. Ela tinha a cara pintada de branco e sorria como
uma louca. Continuava a girar. Continuava a sair das sombras e a dirigir-se
para o círculo de luz. De repente, ficou emoldurada por um arco. A luz das
tochas iluminou-lhe a cara. Fiquei espantada. A minha boca abriu-se para dar um
grito que me chegou à garganta e ali ficou a tremer, mas não saiu nenhum som. A
bruxa com a cara pintada de branco... Era a minha mãe.
Ninguém
sabia o que eu tinha visto, porque Tom e Dick haviam dito à minha mãe que eu
estava na retrete quando ela perguntou por mim. Pouco depois, no dia 2 de
Novembro, a minha mãe agarrou-se à barriga, soltou um grito de dor e por pouco
não caiu. A minha avó correu para ela. Anda, Bel..., disse a minha avó. Levou-a
para o outro lado da cortina de seda branca que dividia a sala. Oh, que
desgraça a minha!, soluçou a minha mãe atrás da cortina. Que desgraça, que
desgraça! Um catre em cima da palha em vez do meu lindo quarto na Torre para
dar à luz o meu filho... Como é possível? Como, mãe? Cala-te, filha. Se Eduardo
vencer a batalha, não tardarás a voltar para a Torre. A culpa é..., dos...
Neville, disse a minha mãe a arquejar. - Não me esquecerei. Não, não nos
esqueceremos.
Se
o irmão do Warwick..., não tivesse voltado..., para junto dele, nada disto
teria acontecido... Eduardo ainda..., seria rei. Eu sei, filha. Eu sei. Maldito
seja aquele animal..., aquele urso, o Warwick… O Fazedor de Reis, como ele
chama..., a si próprio. Quando eu voltar para a Torre…, e for rainha outra vez,
o Warwick será... quem dera que ele morresse! - Chiu!, disse a minha avó. Assim
será. Não foi isso que o frade nos garantiu? Agora concentra-te em dar à luz
essa criança. E faz com que seja um filho». In Sandra Worth, A Favorita do
Rei, A Primeira rainha Tudor, 2008, tradução de Maria F. Duarte, Planeta
Manuscrito, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-657-165-8.
Cortesia
de PlanetaM/JDACT