História da vida e da morte de um Cavaleiro Andante
«(…) Livro que invoca e
reactualiza a memória dos mortos, confinada ao espaço sacralizado do templo. Os
outros, os livros da vida, mergulham-no no esquecimento. Incompreensivelmente.
De facto, nobiliários e crónicas não podiam ser mais lacónicos a seu respeito, mencionando-o
apenas na linha de descendência de Afonso II, sem qualquer menção de relevo.
Desaparecido o seu corpo, perdido o nome entre as episódicas e vagas anotações
dos pergaminhos, esquecido o personagem nos densos textos pontifícios que, ora
com violência ora com compaixão, o evocam, assim tem permanecido olvidada a sua
memória.
NOTA: O infante D. Fernando aparece muitas vezes citado
por Alexandre Herculano a propósito da sua intervenção na crise do reinado de
Sancho II, em particular sobre os seus conflitos com a Igreja; cf. História
de Portugal. Desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa,
1980, ed. Crítica de José Mattoso; e é nesta perspectiva que tem sido evocado o
seu nome nas histórias gerais de Portugal, de que basta citara mais recente, de
José Mattoso, História de Portugal. Lisboa, 1992, vol. II; a figura do
infante mereceu um esboço biográfico mais detalhado ao conde de Ficalho; o
infante D. Peruando de Serpa, in Notas históricas acerca de Serpa, Lisboa,
1979 (a 1ª ed. é de 1904), pp. 99-107. Depois da pequena nota biográfica da Grande
enciclopédia portuguesa e brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro, s/d, vol. XI, o
Dicionário de História de Portugal (dir. Joel SERRÃO), Porto. 1984. vol.
II, reduze-o a algumas poucas palavras. Os elementos prosopográficos da sua vida
foram actualizados por Leontina Ventura, A nobreza da corte de Afonso III, Coimbra.
1992, vol. II tese de doutoramento policopiada.
Sobre Afonso II e o significado da conquista de Alcácer no contexto do
seu reinado, cf. Luís R US; Afonso II. D. (I 185-1223); in Dicionário
ilustrado da História de Portugal, Lisboa, 1985, vol. I; um estudo muito
minucioso, com recurso a fontes coevas, encontra-se em Maria Teresa Lopes
Pereira; Memória cruzadística do feito da tomada de Alcácer (1217), segundo o
Carmen de Gosuíno; in 2º Congresso histórico de Guimarães, D. Afonso
Henriques e a sua época; Actas, Guimarães, 1997.
Quando o infante Fernando
nasceu, o seu pai devia comemorar ainda com júbilo a vitória sobre Alcácer do
Sal, conseguida alguns meses antes, em Outubro do ano de 1217; apesar de aí não ter participado directamente, atacado pela
doença e envolvido que andava na administração do Reino, trata-se do único
grande triunfo sobre o Islão durante o seu reinado. Já desde 1212 que o poderio almóada declinava na
Península, e o Andaluz era uma faixa de terra cada vez mais estreita em
acelerada regressão para o Mediterrâneo, mas será sobretudo a partir dos
últimos anos da década de vinte do século XIII, quando surgem as terceiras taifas, que a grande Reconquista avança em
todas as frentes: catalães e aragoneses ocupam as Baleares em 1229 e o Reino de Valência a partir de 1232; depois das conquistas de Cáceres,
em 1227, e Badajoz, em 1230, castelhanos e leoneses, unidos em
Fernando III, lançam-se à conquista das praças da Estremadura e avançam sobre o
vale do Guadalquivir durante a década de trinta, em direcção às vastas, ricas e
urbanizadas planícies do Sul. É também por estes anos que os portugueses ocupam o vale do Baixo Guadiana: após o
fracasso de Elvas em 1226, a
ocupação do Alentejo e do Algarve é relativamente rápida, pelo abandono de
algumas praças por um Islão fragmentado e dividido, pela simultaneidade da reconquista
castelhana, pela participação dos profissionais da guerra que eram os
cavaleiros das ordens militares e ainda com o auxílio das milícias concelhias,
mais do que por uma suposta actuação e iniciativa de um rei de infrutífera
belicosidade. É neste panorama que tem
lugar a conquista de Serpa,
conseguida pela acção de Afonso Peres Farinha, prior do Hospital, Ordem que
passa a controlar as principais praças da margem esquerda do Guadiana .
Corria o ano de 1232 e o infante Fernando, agora com 14
anos, a mesma idade com que o seu bisavô se armou cavaleiro na catedral de
Zamora, já se podia orgulhar de também ele ser cavaleiro, uma vez alcançada a
idade de rebora, entrando assim no mundo dos adultos, um mundo
de guerreiros e aventura, onde o prestígio se alcança pela qualidade das
façanhas realizadas. Foi nesta ambiência que cresceu e se fez homem, entre as
armas, a violência, o sangue e as histórias das proezas, mais ou menos
fantasiosas, que ouvia contar. Não se sabe quem foi o responsável pela sua
educação, ou quem o acompanhou de perto nesta primeira fase da sua vida, mas se
quiseram fazer dele um homem de guerra, conseguiram-no perfeitamente.
NOTA: Sobre as
representações mentais que modelam e dão consistência ao grupo nobre, e o
comportamento social daí resultante, marcado pela guerra, pela violência e pelo
culto da força física, veiculadas e cristalizadas num determinado modelo
educativo cf. José Mattoso, Identificação de um país. Ensaio sobre as
origens de Portugal (1096-1325), 5ª ed. Lisboa. 1995. Para uma
interpretação do papel da agressividade no contexto das estruturas sociais da
Idade Média, La civilisation des moeurs. Paris. 1995.
A atribuição que lhe é feita do
senhorio da terra de Serpa, na fronteira mais meridional com o Islão, surge
quase como um prémio ou reconhecimento desta sua maioridade, e como
terra de fronteira que era, aí podia exercitar amplamente as suas virtudes
guerreiras. Não são claras as circunstâncias em que este senhorio lhe foi
atribuído, na ausência de documento que o confirme, mas é prova concludente o
facto de assim sempre se intitular e ser denominado. Mesmo assim, vejamos, em
hipótese, como isto se processou. No seu último testamento, de Novembro de 1221, Afonso II deixava parte dos seus bens
móveis aos filij mei et filia me a
quos habeo de Regina doitina Vrraca et inter ipsos equaliter dividantur. Avancemos um pouco no tempo. Em 22
de Dezembro de 1239, na bula Constitutus
in presentia nostra. Gregório IX ordenava ao bispo de Osma e ao abade
de Valladolid que anulassem o contrato feito entre o infante e o rei Sancho, seu
irmão, no qual o primeiro renunciava aos bens a que tinha direito pelo
testamento paterno e àqueles que lhe eram devidos pela morte de sua irmã Leonor
em 1231; provavelmente teria sido a
pedido seu ao queixar-se ao papa do facto de naquela altura ainda ser minor,
e por isso ter ficado lesado em tal acordo». In Armando Sousa Pereira, O
Infante Fernando de Portugal, Senhor de Serpa (1218-1246), História da vida e
da morte de um Cavaleiro Andante, Estudo apresentado em Setembro de 1997,
Seminário “A nobreza medieval portuguesa: parentesco, identidade e poder”,
dirigido por Bernardo Vasconcelos Sousa, revista Lusitânia Sacha, 2ª série, 10,
1998.
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