Um suposto enigma
«(…) Por esse tempo já
no Parnaso académico do Mondego havia acordado um poeta algarvio, leve
como as borboletas, delicado como as flores, belo de suavidade e candura. Quando
lhe foi comunicada a noticia de estar entre ferros A. A., ele, lembrando-se de
Ana de Coigny, que o Terror arremessara para o fundo dum
cárcere, fez chegar á cadeia do Porto a enternecida versão da Jeune
captive de André Chénier, elegia sublime onde, por esse facto, ficou igualada
em linguagem portuguesa a sorte de duas mulheres formosas e a piedade de dois poetas
célebres. Em 1860 publicava-se o Archivo
Pittoresco, excelente revista ilustrada, das melhores que temos tido. O
magnifico Panorama vivera até 1858
e foi durante a sua interrupção que Bíester teve oportunidade para lançar a Revista
Contemporânea. Havia gosto, entusiasmo pela literatura, lia-se, discutia-se,
porque os escritores notáveis criam legiões de leitores, como os grandes
capitães recrutavam outrora os grandes exércitos. Assinalava-se em Lisboa um
salão literário, o de D. Maria Krus, mulher de Pedro Brito Rio, salão que foi
tão brilhante como os da Restauração em França, porque as celebridades portuguesas
dessa época ali iam esgrimir as mais destras e polidas agudezas de espirito. Bulhão
Pato, um dos habitués,
descreve em dois fundos traços de gravura a acção inteligente e sociável de D.
Maria Krus:
- Tinha artes de congraçar os que andavam picados; sabia combinar os grupos dos seus convivas, ás vezes inimigos politicos capitães, escolher os parceiros da mesa de jogo, e os personagens que entravam no circulo da conversação, unica, a d’aquella casa.
Sainte-Beuve disse que o
salão de madame Geoffrin tinha sido em França uma das instituições do século XVIII.
Não se pode dizer tanto relativamente ao salão literário da rua Formosa na sua
época. Mas se não foi o primeiro de Portugal, porque já houvera três séculos
antes o da infanta D. Maria, foi certamente o último. As questões
literárias despertavam então igual ou maior interesse que todas as outras questões.
Ainda em 1865 o conflito coimbrão
provocara um duelo entre Ramalho
Ortigão e Antero de Quental. Últimos restos de intelectualidade
cavalheiresca… Depois dessa época encontra-se a origem de todos os duelos nas
diatribes do jornalismo político ou do parlamento. Mas onde vou eu dar comigo? É preciso reatar o fio da
narrativa para dizer que, em seguida aos Martyrios obscuros, a Revista
Contemporânea inseriu nova produção de A. A. com um título que tornava cada vez mais transparente o
mistério daquelas duas iniciais: Horas de luz nas trevas d’um cárcere (título
também adoptado por A. A. num
folhetim do Nacional, como
logo veremos, e que parece ter sido o primeiro escolhido para toda a colecção
dos seus escritos autobiográficos).
A bela dama malfadada jazia entre ferros: este seria um decisivo fio
condutor para o descobrimento da verdade, se alguém pudesse ignorá-la ainda.
Júlio César Machado tinha visto chorar A.
A. na partida de Lisboa para o Porto. Viu-a afogada em lágrimas, porque o último estádio da sua viagem
devia ser o sinistro edifício de uma cadeia. Mas aquelas impetuosas lágrimas
foram uma expansão momentânea, porque o ânimo da mulher forte venceu facilmente
a repulsão que o cárcere inspira, sofreu valorosamente as duras consequências
do seu delito amoroso e ofereceu-se como exemplo de expiação moral para afastar
do cairel do abismo outras mulheres que pudessem estar em perigo de delinquir. A. A. não pertenceu ao número das
escritoras que, como Balzac disse de George Sand, constituem o género
neutro porque lhes sobeja em altura de estilo o que lhes falta na
medida das calças. Não, A. A.
nunca se masculinizou, falando ou escrevendo, por excesso de varonilidade. Nem
também se deixou abater por um longo sofrimento que, ainda depois do cárcere e
do tribunal, aceitou como justa punição do seu desvario escandaloso. Falou de
si mesma, não para se vangloriar cinicamente da queda ou para conquistar a
piedade pública á força de lástimas e prantos, mas para convencer as mulheres
incautas de que o maior castigo do adultério é... o próprio adultério». In
Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa
Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.
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