domingo, 8 de dezembro de 2013

Mal por Mal, antes Pombal. Uma Memória. José Jorge Letria. «O marquês de Pombal sai do pedestal e desce à terra. Empolgante que permite conhecer uma época de luzes e sombras, glórias e catástrofes e os enigmas de uma figura polémica, viva, grande e contraditória»

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Mal por mal, antes Pombal, expressão popular usada pelo povo de Lisboa quando o marquês de Angeja, que substituiu Pombal, mandou suspender todas as obras de recuperação da cidade por ele iniciadas.

«(…) Mais do que mostrar que é piedosa e magnânima, a jovem rainha, que não esquece as dores imensas de que amigos seus padeceram, mostra que tem grande astúcia política, intuição e sentido da medida. Para castigar Pombal como os seus inimigos reclamavam, ela teria de rejeitar o despotismo de Pombal e deixar manchado na galeria da História o retrato de seu pai com as sombras da pusilanimidade, da ausência de firmeza na governação e da passividade cúmplice. Só em circunstâncias extremas guarda uma filha semelhante tratamento para um pai, sobretudo quando ele foi rei e amado nessa dupla condição. Nunca Maria, devota e temente a Deus, rezaria para que se agravasse ainda mais a decrepitude de Sebastião José. Mas, no íntimo, ansiava pelo desfecho fatal, pelo epílogo trágico que pusesse fim a tantos meses de sofrimento. Se fosse essa a vontade de Deus, seria uma dádiva dos céus para o sofredor Pombal e para a nova governação. Já nas terras que lhe davam título, em Pombal, ele próprio, farrapo de si mesmo, febril e em crescente estado de putrefacção, daria a ordem de execução, como muitas vezes fizera antes, se tal de si pudesse depender. - Majestade, só a morte pelo garrote e pelo fogo, como a que foi imposta ao pobre padre Malagrida, dará a Pombal o castigo que merece e que Deus, por certo, para ele tem reservado no tribunal da Sua vontade suprema. Raro era o dia em que D. Maria I não ouvia da boca de nobres e plebeus com responsabilidades frases deste jaez, ditadas por um ódio que nenhum bom senso ou memória de feitos incontroversos seria capaz de apaziguar. Até o povo, antes de pedir pão, reclamava agora a punição exemplar daquele que em nome dele tantas vezes pronunciara a palavra progresso ao falar do renascimento de Lisboa e do futuro de Portugal, prática tão comum que se vulgarizara.
Nem os confessores, jurados inimigos do ex-governante, davam agora sossego à jovem rainha, sussurrando-lhe visões dantescas como a que aqui fica registada:
  •  - Sabei, Majestade, que vosso amado pai sofre agora as tremendas penas do Inferno, por ter permitido que Pombal mandasse matar, degredar e humilhar tanta gente inocente, somente por ser na Terra um dos representantes do próprio Demónio.
Piedosa e de espírito atormentado, a rainha padecia de terríveis pesadelos, nos quais via o pai José I a arder no meio das mais furiosas labaredas, gritando pelo seu nome e exigindo-lhe que castigasse severamente o seu ministro por tanto o ter enganado e desviado do recto e iluminado caminho. Entretanto, despertava alagada em suores e dava-se conta de que o verdadeiro Inferno era ali mesmo na Terra, junto de si, com a vizinhança daquela personagem que, embora fisicamente distante, nos interrogatórios de Pombal, todos os dias a assombrava, a desassossegava, como se fosse ela e não ele o arguido. Os temores e alucinações que mais tarde viriam a toldar-lhe de vez a razão e a empurrá-la para a loucura foi nesses meses que se instalaram na sua mente inquieta para nunca mais dela saírem. As raízes da insanidade nunca se desprendem do chão movediço da razão atormentada. Se Pombal, o Marquês de todos os males e suspeitas, tinha de ser confrontado com a justiça, que o fosse quanto antes, sem tergiversações ou ambiguidades. Para tanto, designou a rainha dois desembargadores da sua confiança, ambos conhecedores dos trabalhos e do carácter do ex-ministro do rei, que deveriam confrontá-lo com todas as acusações contra ele inventariadas. E que não fossem brandos nem excessivamente cruéis, buscando a medida justa no discurso e na gestão do tempo.
Mais do que condenar Pombal, era imperioso, diga-se, fazer sofrer Pombal, sem permitir que viesse a Lisboa defender-se em tribuna pública, como chegou a reclamar, já que, se tal desiderato fosse atendido, iriam ouvir-se da sua boca muitas inconveniências sobre pessoas e instituições entretanto guindadas às mais altas funções do Estado. - Que se justifique, padeça e se defenda, caso possa, e que o interrogatório seja, em si mesmo, a parte mais importante da execução da sentença. O mais que houver para ser dito e lavrado para depois se tornar História constará de um decreto que assinarei com o meu punho, e não quero que tarde a hora em que o farei. Foi com estas ordens que os desembargadores José Luís França e Bruno Manuel Monteiro, reputados homens de leis, partiram sem demora, para, entre Outubro de 1779 e Janeiro de 1780, fazerem pesar sobre a consciência do Marquês o sentimento de agravo de uma nação inteira e de uma rainha comprometida com o destino do seu povo e com o valor sagrado da justiça, acima da qual o homem que fora ministro da plena confiança de seu pai não poderia em circunstância alguma ficar». In José Jorge Letria, Mal por Mal, Antes Pombal, Uma Memória de Sebastião J. Carvalho Melo, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-724-005-8.

Cortesia deCAutor/JDACT