«(…) Numa perspectiva biográfica, de cariz psicanalítico, João Gaspar
Simões, como fará mais tarde e, em termos muitos próximos, para Fernando
Pessoa, ocupou-se e julgou decifrar o particular mistério de Eros, do homem Eça de Queirós, não por ele mesmo
mas pela luz que projecta sobre a sua ficção. Não são irrelevantes as
suposições que, romanescamente, mais guiado pelo seu instinto de criador do que
por Freud, João Gaspar Simões faz, entrevendo na origem da ficção de Eça
de Queirós o trauma da bastardia mais tarde tematizada por Marthe Robert. Não é
essa a nossa perspectiva. Importa-nos o erotismo tal como Eça o põe concretamente
em cena na sua ficção, pois é essa encenação particular de Eros que confere à
sua escrita e ao seu imaginário um lugar à parte na ficção portuguesa. O
erotismo queirosiano não é a mera mimesis da realidade ou dos ecos da sensualidade,
como dos seus jogos e representação artisticamente recriados. Já seria uma
novidade numa literatura que até ele evitava cuidadosamente assumir essa
realidade, salvo sob forma poética, ou alusiva. Mas o seu erotismo é estrutura,
visão do mundo, que conscientemente orienta, determina e embebe toda a sua
escrita. Não por ausência ou sublimação como no nosso romantismo, mesmo em
Garrett, mas por sobreexposição, por excesso, quase ofuscação.
Cru ou refinado, é um erotismo plenamente autoconsciente da sua função
fantasmal, recebendo e provocando pela evocação da sensualidade ou da
imaginação dela uma perturbação que atinge não só o código ético que regula a divisão
entre o que é socialmente percebido como decente ou indecente, obsceno no
sentido próprio do termo, como a totalidade do ser. Em particular, a de um
sujeito simbólica e afectivamente subdeterminado pela vivência dos valores cristãos,
como é próprio da cultura ocidental e paradoxalmente no momento em que essa
vivência se desloca ou se inverte. À parte Baudelaire que é o seu
verdadeiro modelo, ou duplo, em sensibilidade, bem mais que Flaubert,
ninguém como Eça viverá tão fundamente e tão ambiguamente o abalo dessa
vivência, não de maneira abstracta como Antero, mas no mais inomeável e
opaco de si, e de toda a gente, nesse ponto cego que o Desejo manifesta e oculta.
E na sua obra, e nela só, que se situa a verdadeira ruptura ou fractura que
miticamente atribuímos à Geração de 70. Como o resto do País, e talvez
mais, os seus amigos e camaradas de letras e de agitação cultural, velaram a
face ou ignoraram essa nova transmutação
de valores implícita ou implicada na visão erótica de Eça de Queirós.
Até porque ela é precisamente visão do mundo como erótica.
É sabido que Ramalho, confrontado com as páginas licenciosas do Primo
Basílio, corou, o que dá
pretexto ao seu amigo Eça para o tratar, brincando a sério, como era seu
costume, de Tartuffe. Só que o personagem de Molière não cora, faz que cora: Cachez Madame ce sein que je ne saurais voir.
Além do mais, Ramalho não era nenhuma vestal, nem miss vitoriana. Ramalho escandaliza-se
menos porque, como sugere Gaspar Simões, o
seu arcaboiço puritano não se compadecia com uma pintura de tal modo minuciosa
dos desregramentos licenciosos de Basílio e Luísa mas porque percebeu e
sentiu que se perturbava nele toda a sua sensibilidade de católico tradicional,
toda a sua ética fundada precisamente sobre a superação ou contenção do que
tradicionalmente a teologia moral chama a
concupiscência. Dessa concupiscência
ninguém como a teologia, de real ou aparente inspiração pauliniana, conhece melhor
o universal e irresistível império. Basta ler o Traité de la Concupiscence de Bossuet para o comprovar, ou
os nossos casuístas da escola de Évora, para saber a que grau de curiosidade o
fascínio de Eros os levava. O seu significante aparente é o desejo carnal, mas
enquanto manifestação sensual relevando do instinto não é propriamente concupiscência. A concupiscência
releva do espírito, a sua versão sexual é só uma das suas manifestações, a mais
radical, pois está ligada à eclosão da vida, tanto como o alimentoque a
conserva. Daí a ligação profunda entre volúpia
e gula que os romances de Eça,
ilustram». In Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva,
Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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