Não há melhor fragata do que um
livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson
«O corpo encontrava-se deitado de bruços, nu, sobre a cama. A cabeça
estava coberta por um travesseiro. O médico deduziu tratar-se de morte por asfixia,
acreditando que a vítima sucumbira naquela mesma posição. Não havia vestígios
de deslocação do corpo. Também concluiu não ter havido violência: a pele das
costas, das nádegas e das pernas não apresentava qualquer tipo de ferimentos.
Os braços encontravam-se debaixo do corpo e, quando foram examinados pelo
médico, este confirmou a ausência de lesões de defesa. Ao lado do cadáver
encontrava-se um fato de homem, um chapéu e um par de sapatos pretos,
irrepreensivelmente em ordem. Após os agentes terem examinado o apartamento,
puseram de parte a hipótese de ter havido arrombamento ou pilhagem. O quarto e
as outras divisões da casa não indiciavam sinais de o crime ter sido cometido
por alguém estranho à vítima...
Alberto Reis estava parado à frente da porta n.º 16 do prédio na rua
Coelho da Rocha. Tinha um jornal dobrado debaixo do braço. Era um homem baixo,
a forma oval do corpo fazia lembrar uma pipa, como se o tempo fosse polindo as arestas
que fizeram dele, em plena actividade profissional, uma pessoa brusca e
implacável. Recuou alguns passos a olhar para cima e foi colocar-se no outro lado
da rua para ter uma visão mais ampla do prédio onde vivia. O seu olhar
minucioso mantinha-se ainda apurado e competente, eficiência acumulada pelo
dever do ofício, quando era um jovem empenhado ao serviço da Polícia de Defesa
Política e Social. A viuvez acrescentou-lhe acidez e rigor na avaliação da
vida. Tinha planos para a última etapa na companhia da esposa, e, não fosse a
doença súbita e a morte prematura, a felicidade teria sido cenário perfeito. Mas
nem tudo é garantido quando se trata de projectar a vida para além do que nos
resta ainda cumprir. De um momento para o outro, estranha realidade ou
pesadelo que nos guia até ao isolamento, Alberto Reis viu-se sozinho na
vida, situação que lhe trouxe um leque de novas experiências notoriamente
solitárias, sensações indesejáveis, insónias e uma propensão para adivinhar
através dos ruídos o que os vizinhos do prédio faziam na privacidade das suas
casas.
Embora a sua atenção não representasse mais do que um passatempo que
preenchia os lugares vazios da sua consciência, mais tarde esses pequenos e
insignificantes ruídos traduzir-se-iam em movimentos suspeitos que revelariam
pistas e impressões de que alguma coisa anormal se passava à sua volta. Com o
pescoço estendido para cima, sentiu o ar frio da manhã num arrepio de lâmina
dentro da gola do casaco. O seu olhar fez uma linha recta a partir da janela do
primeiro andar esquerdo para a do primeiro andar direito. A janela do quarto do
seu vizinho Fernando Pessoa estava entreaberta, e os cortinados estremeciam
levemente. Também esta criatura vive em desassossego, pensou Alberto Reis, e
aceita a solidão como um medicamento prescrito para remodelar o sentido da
vida, os seus tumultos, um medicamento que o alimenta e que o faz sentir-se em
delírio, insuportavelmente feliz, protegido, embora dominado pelo sacrifício e
pelo tormento, pela criação e ruína. Não simpatizava com o poeta. Quando se
cruzavam no vestíbulo do prédio os cumprimentos eram tímidos e profetizavam
desavença futura. No princípio, quando Fernando Pessoa se mudou para a
Coelho da Rocha, houve no entanto uma aproximação de cortesia e de boa
vizinhança, alguns préstimos ao novo inquilino, atenções simples que, pelos
vistos, não mereceram nenhuma consideração na contabilidade das boas relações
entre ambos. Possivelmente, porque Fernando Pessoa parecia ser um homem
reservado e pouco interessado nos contactos com as pessoas reais. Ou, talvez,
porque o poeta se incomodasse em negociar cumprimentos e amabilidades com a mesma
pessoa todos os dias e a toda a hora, ele que, por não se sentir um ser único,
se apresentava diverso na sua forma de existência, integrando em si personagens
herdeiras de um pensamento engenhoso e complexo. No entanto, a aversão do
polícia reformado por Fernando Pessoa tinha origem noutro
facto. Uma questão de honra, se assim se pode designar aquele breve episódio em
que Alberto Reis, um estreante na criação de versos, entregou a Fernando
Pessoa um manuscrito com um pedido de avaliação. A bem dizer, o ingénuo
Alberto Reis estava a confiar ao poeta a sua alma isenta de felicidade,
desconhecendo, por certo, que em matéria de almas estava o poeta abastado». In
Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições
Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.
Cortesia de Parsifal/JDACT