terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Carteiro de Fernando Pessoa. Leituras. Fernando E. Pinto. «… porque o poeta se incomodasse em negociar cumprimentos e amabilidades com a mesma pessoa todos os dias e a toda a hora, ele que, por não se sentir um ser único, se apresentava diverso na sua forma de existência…»

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Não há melhor fragata do que um livro para nos levar a terras distantes. In E. Dickinson

«O corpo encontrava-se deitado de bruços, nu, sobre a cama. A cabeça estava coberta por um travesseiro. O médico deduziu tratar-se de morte por asfixia, acreditando que a vítima sucumbira naquela mesma posição. Não havia vestígios de deslocação do corpo. Também concluiu não ter havido violência: a pele das costas, das nádegas e das pernas não apresentava qualquer tipo de ferimentos. Os braços encontravam-se debaixo do corpo e, quando foram examinados pelo médico, este confirmou a ausência de lesões de defesa. Ao lado do cadáver encontrava-se um fato de homem, um chapéu e um par de sapatos pretos, irrepreensivelmente em ordem. Após os agentes terem examinado o apartamento, puseram de parte a hipótese de ter havido arrombamento ou pilhagem. O quarto e as outras divisões da casa não indiciavam sinais de o crime ter sido cometido por alguém estranho à vítima...
Alberto Reis estava parado à frente da porta n.º 16 do prédio na rua Coelho da Rocha. Tinha um jornal dobrado debaixo do braço. Era um homem baixo, a forma oval do corpo fazia lembrar uma pipa, como se o tempo fosse polindo as arestas que fizeram dele, em plena actividade profissional, uma pessoa brusca e implacável. Recuou alguns passos a olhar para cima e foi colocar-se no outro lado da rua para ter uma visão mais ampla do prédio onde vivia. O seu olhar minucioso mantinha-se ainda apurado e competente, eficiência acumulada pelo dever do ofício, quando era um jovem empenhado ao serviço da Polícia de Defesa Política e Social. A viuvez acrescentou-lhe acidez e rigor na avaliação da vida. Tinha planos para a última etapa na companhia da esposa, e, não fosse a doença súbita e a morte prematura, a felicidade teria sido cenário perfeito. Mas nem tudo é garantido quando se trata de projectar a vida para além do que nos resta ainda cumprir. De um momento para o outro, estranha realidade ou pesadelo que nos guia até ao isolamento, Alberto Reis viu-se sozinho na vida, situação que lhe trouxe um leque de novas experiências notoriamente solitárias, sensações indesejáveis, insónias e uma propensão para adivinhar através dos ruídos o que os vizinhos do prédio faziam na privacidade das suas casas.
Embora a sua atenção não representasse mais do que um passatempo que preenchia os lugares vazios da sua consciência, mais tarde esses pequenos e insignificantes ruídos traduzir-se-iam em movimentos suspeitos que revelariam pistas e impressões de que alguma coisa anormal se passava à sua volta. Com o pescoço estendido para cima, sentiu o ar frio da manhã num arrepio de lâmina dentro da gola do casaco. O seu olhar fez uma linha recta a partir da janela do primeiro andar esquerdo para a do primeiro andar direito. A janela do quarto do seu vizinho Fernando Pessoa estava entreaberta, e os cortinados estremeciam levemente. Também esta criatura vive em desassossego, pensou Alberto Reis, e aceita a solidão como um medicamento prescrito para remodelar o sentido da vida, os seus tumultos, um medicamento que o alimenta e que o faz sentir-se em delírio, insuportavelmente feliz, protegido, embora dominado pelo sacrifício e pelo tormento, pela criação e ruína. Não simpatizava com o poeta. Quando se cruzavam no vestíbulo do prédio os cumprimentos eram tímidos e profetizavam desavença futura. No princípio, quando Fernando Pessoa se mudou para a Coelho da Rocha, houve no entanto uma aproximação de cortesia e de boa vizinhança, alguns préstimos ao novo inquilino, atenções simples que, pelos vistos, não mereceram nenhuma consideração na contabilidade das boas relações entre ambos. Possivelmente, porque Fernando Pessoa parecia ser um homem reservado e pouco interessado nos contactos com as pessoas reais. Ou, talvez, porque o poeta se incomodasse em negociar cumprimentos e amabilidades com a mesma pessoa todos os dias e a toda a hora, ele que, por não se sentir um ser único, se apresentava diverso na sua forma de existência, integrando em si personagens herdeiras de um pensamento engenhoso e complexo. No entanto, a aversão do polícia reformado por Fernando Pessoa tinha origem noutro facto. Uma questão de honra, se assim se pode designar aquele breve episódio em que Alberto Reis, um estreante na criação de versos, entregou a Fernando Pessoa um manuscrito com um pedido de avaliação. A bem dizer, o ingénuo Alberto Reis estava a confiar ao poeta a sua alma isenta de felicidade, desconhecendo, por certo, que em matéria de almas estava o poeta abastado». In Fernando Esteves Pinto, O Carteiro de Fernando Pessoa, Baía dasPalavras, Edições Parsifal, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-98521-0-5.

Cortesia de Parsifal/JDACT