terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Viagem ao Fundo das Consciências. A Escravatura na Época Moderna. Maria do Rosário Pimentel. «Como resultado do entusiasmo geral, constituiu-se o primeiro ‘agrupamento comercial de particulares’, hoje conhecido pela designação de “Companhia de Lagos”. Dispondo de tantos navios ‘vergonhosa coisa seria tornar para Portugal sem avantajada presa’»

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Os Descobrimentos e o Tráfico de Escravos
«(…) Como resultado do entusiasmo geral, constituiu-se o primeiro agrupamento comercial de particulares, hoje conhecido pela designação de Companhia de Lagos. Lançarote, almoxarife do rei em Lagos, depois de reunir 6 caravelas bem armadas, foi o primeiro a pedir licença ao Infante para se deslocar à terra donde vinham aqueles mouros. Sob a sua chefia, partiu de Portugal a primeira grande expedição com o objectivo exclusivo e declarado de apresar escravos. Não iam com o fim de travar relações com os indígenas, mas para os aprisionar. O nauta era agora também um caçador de escravos e o valor económico a estes conferido era por demais evidente. A expedição partiu de Lagos em 1444 e, na ilha das Garças, Lançarote, ao falar aos companheiros da missão de que tinham sido mandatados por Deus e pelo Infante, exortou-os a levar para o reino uma presa bem maior do que todas as anteriores. Dispondo de tantos navios vergonhosa coisa seria tornar para Portugal sem avantajada presa. Segundo Zurara, a expedição regressou a Lagos com 235 cativos que aí foram expostos em mercado. Porém, Diogo Gomes, que fez parte desta expedição, aumentou o número para cerca de 650. A sua partilha, a primeira a que o infante Henrique assistiu, ficou imortalizada em patético relato na Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné. Criaturas na maior miséria, debilitadas pela fome e tormentos da viagem, eram extraídas dos navios. Uns eram de razoável brancura, outros pardos e outros negros. Repartidos em lotes ao sabor do acaso, uns conservavam-se cabisbaixos, chorando, outros gemiam dolorosamente de olhos fixos no céu, outros ainda, no desespero da sorte obscura, feriam-se ou lamentavam-se segundo o costume da sua terra, e as crianças, engrossando o coro trágico, constantemente fugiam para os pais. Perante tal visão, qual seria o coração, por duro que ser podesse que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela campanha? Mas à luz da consciência cristã, tudo isto podia ser perfeitamente justificável, uma vez que, embora por um caminho de sacrifício, estes indivíduos eram conduzidos à salvação:
  • Ó tu, celestial Padre [...] eu te rogo que as minhas lágrimas nem sejam dano da minha consciência, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore piedosamente o seu padecimento.
Em 1445, Antão Gonçalves com 3 caravelas rumou para o cabo Branco. Na ilha de Arguim, tomou de noite um mouro negro e sua filha, tendo sido aconselhado por estes a atacar uma aldeia em terra firme, onde acabou por fazer 25 cativos. Ali recolheram João Fernandes, deixado por uma expedição anterior, com o fim de aprender a língua e tomar conhecimento directo com a terra. Por seu intermédio, negociaram com um chefe mouro a compra de 9 negros e um pouco de ouro em pó. Ao voltarem ao cabo Branco, assaltaram ainda uma aldeia de azenegues, onde apresaram 55 indígenas. As incursões não se faziam somente ao litoral saariano; simultaneamente continuaram a realizar-se constantes correrias ao arquipélago das Canárias. Em Zurara, colhemos exemplos significativos da frequência com que os navegadores portugueses aí se dirigiam, no intuito de fazer escravos. Da grande expedição de 1445 à Guiné, desgarraram-se as caravelas de Tavira e Picanço que, ao encontrarem o navegador Álvaro Gonçalves Ataíde, lhe propuseram ir à ilha de Palma, a fim de cobrar alguma presa daqueles canários. Depois da concordância geral, para lá se dirigiram e, com a ajuda de alguns naturais, apresaram num só dia l7 canários (guanches). No entanto, João Castilha, capitão da caravela de Álvaro Gonçalves Ataíde, achando que a presa era pequena para assim tornar ao reino, conseguiu a anuência de todos para se apoderarem de 21 daqueles indígenas que os ajudaram, fazendo-os ir traiçoeiramente às caravelas. Porém, à sua chegada ao reino, o Infante não reconheceu esta presa feita tão ardilosamente e, depois de bem tratar os indígenas, mandou-os de novo para a sua terra. Também Álvaro Dornelas se dirigiu à ilha da Palma onde, com a ajuda dos guanches, aprisionou 20 naturais da ilha.
Não foram só os portugueses que navegaram até àquelas ilhas com o fim de fazer escravos. Desde muito cedo que Castela se havia envolvido nesse tráfico. Segundo os historiadores espanhóis, os castelhanos navegaram para as Canárias e comerciaram em escravos negros desde os primeiros anos do reinado de Henrique III (1390-1406). Manuel Fernández Alvarez na obra La Sociedad española del renscimento, salienta que as Canárias constituíram um centro de aprovisionamento de escravos, não só para a coroa de Aragão mas, sobretudo a partir do século XV, também para Castela. E Vitorino Magalhães Godinho, no artigo Guanches, inserido no Dicionário de História de Portugal, refere que nos começos do século XIV, os canários deveriam ultrapassar o número de 80 000, para em 1424 estarem já reduzidos a 60 000, número que baixaria para metade nos dois últimos quartéis do século XV, devido aos numerosos assaltos escravistas a que estavam sujeitos. Só na ilha de Ferro, em 1402, foram feitos cerca de 400 cativos». In Maria do Rosário Pimentel, Viagem ao Fundo das Consciências, A Escravatura na Época Moderna, Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Colibri, Lisboa, 1995, ISBN 972-8047-75-4.

Cortesia de Colibri/JDACT