Sancho II de Portugal. Fr.
António Brandão (1632)
«(…) É comum ao
referir-se a códices existentes na Torre do Tombo reclamar da sua veracidade,
apontando-os como cópias e indicando quais os erros contidos. Entre muitos
exemplos que podemos dar da sua perícia e da sua prudência podemos apontar o que
dizia sobre os feitos militares do famoso Paio Peres Correia, um dos
maiores capitães do tempo de Sancho II. Afirmava que queria seguir o que os
antigos tinham escrito, mas adverte os seus leitores que irá discordar de
muitas informações que aqueles apresentam, pois os tempos são outros. Exemplo
desta interessante postura crítica pode ser o que afirma sobre a veracidade do episódio de Trancoso, quando
Sancho II se prepara para abandonar o país. Considera verdadeiras as
reclamações de lealdade dalguns
cavaleiros para com o seu senhor. Diz que não crê em tudo, nem dúvida de tudo.
O escrúpulo pela verdade parece predominar neste autor. É, o último dos
cronistas, e o primeiro dos historiadores portugueses. E, talvez, por este
facto, seja apreciável, de todas as obras que escreveu, observar como no Livro
IV recupera a memória de Sancho II, afirmando peremptoriamente de que este foi
um rei injustiçado e muitas das estórias que se contavam não faziam jus aos
feitos daquele monarca. Duarte Nunes Leão, Rui de Pina, Fernão Lopes,
todos referiam, até à exaustão, as poucas qualidades de soberano que Sancho II
apresentava. Era para eles um ser inútil, incapaz e incapaz. Prejudicial para o
reino e para os povos que governava e responsável por todas as violências e
crimes, grandes e pequenos, que assolavam o reino.
Todas aquelas crónicas
seguiam um caminho pré-determinado: o da deposição do rei. Todos os
assuntos, todos os acontecimentos, toda a lógica de construção da narrativa se dirigia
para a necessidade que o país tinha de se ver livre daquele monarca, marcando-o
como um soberano desprezível, que nem aos mouros sabia fazer a guerra. E,
bastou um documento exarado nos gabinetes da Santa Sé, por um papa da Cristandade,
para a infelicidade de Sancho ser completa e ficar marcado, definitivamente, para
a história. Nenhuma crónica se atreve a elogiar, mesmo depois da sua morte, as
suas virtudes, os seus feitos, as suas acções em prol da paz e do bem comum;
nenhuma se esforçava por diminuir algum dos vergonhosos epítetos que de todo o
lado surgiam e tombavam sobre a memória do rei. Queria-se odiosa para o país,
como exemplo do que não deve ser um governante.
E Brandão? O que achava
aquele monge cisterciense? A visão sob o reinado de Sancho II é
bastante crítica. Crítica, para já, em relação aos que narravam vituperando o rei,
mas crítica também, porque apesar de valorizar os feitos do soberano que lhe pareciam
ser indiscutíveis e que estavam sustentados em documentos bastante verosímeis,
discutia e criticava algumas opções de governo menos felizes por parte do monarca.
No entanto, e apesar desta tentativa de distanciamento sobre as provas, característica de uma
forte consciência historiográfica, António Brandão não deixa de apontar
a má consciência dos que para
valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de Afonso III, distorceram a
verdade e enganaram a razão ao humilharem com todos os defeitos o príncipe
deposto. Apesar de escrita no século XVII esta narrativa do reinado de Sancho
II não passou despercebida à historiografia romântica do século XIX e, Alexandre
Herculano recupera muitas das
afirmações daquele autor seiscentista, como verídicas e bem fundamentadas.
O recurso à confrontação com os documentos, embora não tão desenvolvida como no
tempo de Herculano, não deixava de ser apreciada por este historiador que não
desprezou muitas das informações sugeridas por Brandão.
Parece ser Brandão o primeiro a sugerir alguns dos problemas que
mais tarde irão tornar-se incontornáveis, de uma forma ou de outra, para todos
os que tentaram estudar com maior profundidade aquele reinado. E o primeiro,
como não podia deixar de ser, é a apresentação da menoridade do rei na subida
ao trono. A posição de António Brandão não é muito clara, já que ao longo do
seu trabalho entra em contradição em relação à idade que o príncipe teria e que
Herculano perspicazmente criticou. Se a data de casamento de Afonso II parece
não apresentar controvérsia. Todos os historiadores depois de Herculano a
aceitam como verdadeira, a afirmação de que o jovem rei teria já vinte anos em 1223 é muito mais difícil de aceitar e,
provavelmente, um erro de leitura sobre a Era em que o documento foi
produzido (Brandão, trocou a Era de 1251 pela de 1241)
e que à primeira vista lhe parecia argumento suficiente para apresentar o
monarca como adulto quando subiu ao trono». In José Varandas, Bonuns Rex ou
Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II
(1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese
de Doutoramento em História Medieval, 2003.
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