terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Bonuns Rex ou Rex Inutilis. As Periferias e o Centro. Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248). José Varandas. «António Brandão não deixa de apontar a “má consciência” dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razão ao humilharem com todos os defeitos o príncipe deposto»

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Sancho II de Portugal. Fr. António Brandão (1632)
«(…) É comum ao referir-se a códices existentes na Torre do Tombo reclamar da sua veracidade, apontando-os como cópias e indicando quais os erros contidos. Entre muitos exemplos que podemos dar da sua perícia e da sua prudência podemos apontar o que dizia sobre os feitos militares do famoso Paio Peres Correia, um dos maiores capitães do tempo de Sancho II. Afirmava que queria seguir o que os antigos tinham escrito, mas adverte os seus leitores que irá discordar de muitas informações que aqueles apresentam, pois os tempos são outros. Exemplo desta interessante postura crítica pode ser o que afirma sobre a veracidade do episódio de Trancoso, quando Sancho II se prepara para abandonar o país. Considera verdadeiras as reclamações de lealdade dalguns cavaleiros para com o seu senhor. Diz que não crê em tudo, nem dúvida de tudo. O escrúpulo pela verdade parece predominar neste autor. É, o último dos cronistas, e o primeiro dos historiadores portugueses. E, talvez, por este facto, seja apreciável, de todas as obras que escreveu, observar como no Livro IV recupera a memória de Sancho II, afirmando peremptoriamente de que este foi um rei injustiçado e muitas das estórias que se contavam não faziam jus aos feitos daquele monarca. Duarte Nunes Leão, Rui de Pina, Fernão Lopes, todos referiam, até à exaustão, as poucas qualidades de soberano que Sancho II apresentava. Era para eles um ser inútil, incapaz e incapaz. Prejudicial para o reino e para os povos que governava e responsável por todas as violências e crimes, grandes e pequenos, que assolavam o reino.
Todas aquelas crónicas seguiam um caminho pré-determinado: o da deposição do rei. Todos os assuntos, todos os acontecimentos, toda a lógica de construção da narrativa se dirigia para a necessidade que o país tinha de se ver livre daquele monarca, marcando-o como um soberano desprezível, que nem aos mouros sabia fazer a guerra. E, bastou um documento exarado nos gabinetes da Santa Sé, por um papa da Cristandade, para a infelicidade de Sancho ser completa e ficar marcado, definitivamente, para a história. Nenhuma crónica se atreve a elogiar, mesmo depois da sua morte, as suas virtudes, os seus feitos, as suas acções em prol da paz e do bem comum; nenhuma se esforçava por diminuir algum dos vergonhosos epítetos que de todo o lado surgiam e tombavam sobre a memória do rei. Queria-se odiosa para o país, como exemplo do que não deve ser um governante.
E Brandão? O que achava aquele monge cisterciense? A visão sob o reinado de Sancho II é bastante crítica. Crítica, para já, em relação aos que narravam vituperando o rei, mas crítica também, porque apesar de valorizar os feitos do soberano que lhe pareciam ser indiscutíveis e que estavam sustentados em documentos bastante verosímeis, discutia e criticava algumas opções de governo menos felizes por parte do monarca. No entanto, e apesar desta tentativa de distanciamento sobre as provas, característica de uma forte consciência historiográfica, António Brandão não deixa de apontar a má consciência dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razão ao humilharem com todos os defeitos o príncipe deposto. Apesar de escrita no século XVII esta narrativa do reinado de Sancho II não passou despercebida à historiografia romântica do século XIX e, Alexandre Herculano recupera muitas das afirmações daquele autor seiscentista, como verídicas e bem fundamentadas. O recurso à confrontação com os documentos, embora não tão desenvolvida como no tempo de Herculano, não deixava de ser apreciada por este historiador que não desprezou muitas das informações sugeridas por Brandão.
Parece ser Brandão o primeiro a sugerir alguns dos problemas que mais tarde irão tornar-se incontornáveis, de uma forma ou de outra, para todos os que tentaram estudar com maior profundidade aquele reinado. E o primeiro, como não podia deixar de ser, é a apresentação da menoridade do rei na subida ao trono. A posição de António Brandão não é muito clara, já que ao longo do seu trabalho entra em contradição em relação à idade que o príncipe teria e que Herculano perspicazmente criticou. Se a data de casamento de Afonso II parece não apresentar controvérsia. Todos os historiadores depois de Herculano a aceitam como verdadeira, a afirmação de que o jovem rei teria já vinte anos em 1223 é muito mais difícil de aceitar e, provavelmente, um erro de leitura sobre a Era em que o documento foi produzido (Brandão, trocou a Era de 1251 pela de 1241) e que à primeira vista lhe parecia argumento suficiente para apresentar o monarca como adulto quando subiu ao trono». In José Varandas, Bonuns Rex ou Rex Inutilis, As Periferias e o Centro, Redes de Poder no reinado de Sancho II (1223-1248), U. de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de História, Tese de Doutoramento em História Medieval, 2003.

Cortesia da FLUP/JDACT