segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Primeira Mulher de Camilo. Silêncio Injustificado. Alberto Pimentel. «Elle chegaria a julgar, talvez, que a sua existência derivaria toda alli. placidamente. á beira do Tâmega, contente com o amor dedicado e leal, que encontrara no coração de Joaquina Pereira»

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Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In Camilo Castelo Branco, A Enjeitada.

«(…) Que magnifico amanuense seria Camillo! Tinha ortographia, prenda não vulgar em Ribeira de Pena e outras partes, incluindo as ilhas adjacentes, mas, principalmente, dispunha de uma bella calligraphia, que a rapidez da escripta não conseguiu estragar completamente mais tarde. Sebastião Santos não podia encontrar melhor genro, nem mais a seu geito. Dir-se-ia que o tendeiro de Friume, o antigo alfaiate de Gondomar, tivera a intuição do futuro de gloria reservado a Camillo. A certa altura impoz o casamento, tanto mais invejado quanto a imaginação popular, fascinada pelas eminentes qualidades do sobrinho de D. Rita, acalentara a lenda de que elle teria a receber uma grande herança. Foi por uma tarde de Agosto, a 18, de 1841 que, na egreja do Salvador de Ribeira de Pena. Camillo Ferreira Botelho Castello Branco desposou a filha de Sebastião Martins dos Santos. O párocho encommendado, Domingos José Ribeiro, lançou as bênçãos. Como testemunhas assistiram o padre José Maria Sousa, de Pontido de Aguiar, e o genro de D. Rita, Francisco José Ribeiro Moreira, primo, por affinidade. de Camillo. Está a gente a ver toda a movimentação teatral d'essa tarde de Agosto em Friume.
Camillo, uma creança de dezeseis anos, mentalizando a plenitude da posse legitima na contemplação da noiva, cujas graças acirrantes, modeladas numa plástica vigorosa, a elle offuscariam nessa hora electrizante os liames e encargos do casamento. Joaquina Pereira, espiritualizada pela paixão, que é dynamite capaz de fazer saltar os mais duros blocos do cérebro humano, e ella era uma pobre camponeza, que ainda assim se distinguia entre muitas outras por saber ler e escrever. Sebastião dos Santos desvanecido pela satisfação de ter ganho a partida num rápido lance de távolas, dizendo porventura aos convidados que, nas suas mãos, o rapaz havia de ir muito longo. As raparigas de Friume mordidas de inveja pela felicidade que uma estranha lhes viera roubar, levando-lhes o melhor noivo que podiam apetecer, e a herança fabulosa que havia de enriquecel-o um dia. A casa dos noivos, em Friume, era, como a maior parte de todas as da povoação, construída de pedra tosca, sem rebocos e sem vidraças. Foi essa choupana o ninho de amor onde Camillo passou os dias do noivado, certamente sem ambicionar holiandas finas para o leito, manjares delicados para a mesa, perfumes de boudoir que não fossem o do rosmaninho silvestre e da madresilva das sebes floridas.
Elle chegaria a julgar, talvez, que a sua existência derivaria toda alli. placidamente. á beira do Tâmega, contente com o amor dedicado e leal, que encontrara no coração de Joaquina Pereira. E, comtudo, a vida amorosa de Camillo começava apenas; aquelle sereno idyllio conjugal era o prefacio de um inferno de paixões tempestuosas. Ambições, quem lh'as dera, fora o próprio sogro, fascinado pela evidencia social que lhe viria do genro. A breve trecho Sebastião Martins dos Santos quis que Camillo se preparasse para um curso superior. Desejava-o medico e, para realizar este ideal, não duvidou affastar Camillo de Friume». In Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT