Estudos
Camilo Castelo Branco
«Uma personalidade domina a segunda geração romântica e pode considerar-se
como o seu representante típico e superior, quer pelo temperamento, quer pelo
caudal da sua obra e pelo extenso público a quem interessou: Camilo
Castelo Branco (n. Lisboa, 1825-03-16 – f. 1890-06-01). A
persistência dos morgadios e de velhos preconceitos de classe em Portugal,
particularmente na região de Entre Douro e Minho, até passante de meados do
século XIX, relaciona-se com alguns dos seus aspectos arcaicos, relativamente à
evolução das literaturas inglesa e francesa suas contemporâneas. Mas o seu
inconformismo define-se também, biográfica e literariamente, numa antipatia já
tipicamente romântica em relação ao espírito burguês, ao brasileiro, ao titular do Constitucionalismo, e
na ânsia de um casamento por amor. Essa antipatia exprime-se pela caricatura,
pelo traço grosso, pois Camilo nem supera ideologicamente o
seu meio, nem pode profissionalmente dirigir-se a um público actualizado, e tem
portanto de adaptar-se de algum modo aos preconceitos morais, religiosos,
estéticos, ideológicos em geral, mais difundidos. Daí, profundas contradições e
oscilações entre um idealismo e um materialismo, ambos moralizantes; daí um estilo
frequentemente azedo, sarcástico, sobretudo o auto-sarcasmo daqueles mesmos tipos
morais e estéticos que quer idealizar na sua obra. Tal sarcasmo dava-lhe a ele,
e ao seu público, a ilusão de vencer os conflitos, sociais e intimamente seus,
do real e do ideal; embora também possa considerar-se uma forma de resignação e
conformismo.
No entanto, a sua obra traz até, nós o palpitar humano das províncias nortenhas
no seu tempo, com uma vida que nenhum outro ficcionista voltou a captar. É o
nosso grande mestre da narrativa densa, rápida, de objectividade inteiramente
persuasiva, nas melhores páginas que escreveu.
Vida e Carácter
A acidentada vida passional de Camilo Castelo Branco foi a mais importante
fonte da própria novela camiliana, a tal ponto que um dos seus biógrafos, Alberto
Pimentel, imaginou O Romance do Romancista por uma
simples montagem de textos da sua autoria. Filho natural, órfão de mãe quando
tinha um ano e de pai desde os dez anos, recebe a partir daí uma educação
provinciana e irregular, entre parentes transmontanos, primeiro junto de uma
tia de Vila Real, depois na casa de uma irmã mais velha, em Vilarinho da
Samardã, e na de outro parente em Friúme (Ribeira de Pena). É a dois padres de
aldeia que deve os princípios da instrução literária, de modo que, tirante
algum estudo de Francês, pode dizer-se que a sua adolescência se formou
culturalmente ao contacto dos clássicos portugueses e latinos, da literatura
eclesiástica, e do viver aldeão no ar livre e na aventura. Com efeito, a
experiência de uma fuga, de muitas jornadas pelas regiões mais sertanejas de
Trás-os-Montes, de várias viagens (por vezes acidentadas) a Lisboa, de
caça montês, de amores bravios, o conhecimento íntimo da gente serrana obtido
na companhia de padres e de um cunhado médico, tudo isso se filtra na sua obra,
através de um estilo e de uma concepção de vida que, sobretudo até, cerca de 1857, parecem prolongar muito do pré-romantismo
setecentista. Em 1841 celebra-se o
seu casamento, que em breve esquecerá, com Joaquina Pereira, de quem
teve uma filha que morreu com cinco anos. Entre 1843-46 intenta, primeiro no Porto e depois em Coimbra, tirar um
curso de Medicina, que não levará a cabo mas que lhe deixará uma erudição
superficial em drogas e descrições patológicas. Sobreexcitado e aventureiro em
matéria de amores, conta-nos, entre outras coisas estranhas, que foi buscar um
esqueleto para estudos médicos aos despojos mortais inumados de Maria do
Adro, uma das suas amadas. Pouco antes de enviuvar, rapta de Vila Real para
o Porto a jovem e órfã Patrícia Emília, de quem teve outra filha; mas também
dera em breve se enfastiou. Esse rapto valeu-lhe alguns dias de prisão. Sobrevêm as lutas patuleias, em que, segundo
conta, teria episodicamente participado na guerrilha miguelista de Mac Donnell.
A partir de 1848
desenrola-se a fase das primícias literárias, com a sua vida fixada, em geral,
no Porto. Camilo pertence então à roda dos leões do Café Guichard
e ao ambiente que caracterizou O Romantismo
sob a Regeneração. Escreve sátiras anticabralistas e antieclesiásticas,
folhetos de cordel, publica as primeiras poesias, e as suas primeiras novelas
surgem no folhetim do Eco Popular e de O
Nacional. Estreara-se pouco antes como autor num palco de Vila Real com
o drama Agostinho de Ceuta».
In Óscar Lopes, Ensaios Camilianos, Fundação António de Almeida, Greca
Artes Gráficas, Porto, 2007, ISBN 978-972-8386-69-6.