segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Anel Misterioso. Cenas da Guerra Peninsular. 1873. Alberto Pimentel. «Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé, e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta»

Cortesia de wikipedia

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Na quinta das Chãs

Na noite de 17 de Fevereiro de 1809, a morgada viuva da quinta das Chãs conferenciava gravemente com o seu capellão n'uma das salas terreas do solar, a duas leguas de Braga, sobranceiro á aldeia de Carvalho d'Éste. A morgada, senhora de uns sessenta annos, deixava entrever nas sombras da physionomia a tempestade que lhe agitava a alma; o capellão, passeando de um para outro lado, enviesava á morgada olhares investigadores, que para logo revelariam perfidia e cupidez. - É preciso partir, padre capellão, dizia afflictivamente a morgada. Se os francezes logram atravessar o rio Minho, estarão brevemente em Braga. A mim pouco me importaria a vida se não fosse Augusta, que a esta hora está dormindo na serenidade da sua innocencia. Tomára que chegasse o Teixeira para contar o que se passou. Diga o que disser, padre capellão, é preciso pensar maduramente. Meu genro fez-me depositária de um thesouro, que eu hoje quero salvar de todos os perigos, custe o que custar, porque se me affigura que já estimo mais Augusta do que aos seus proprios paes, e a seu irmão. Recebi minha neta aos 5 annos, porque á luz da consciencia conheci que melhor poderia eu sustentar uma criança, apesar das hypothecas da minha casa, do que um pobre capitão do exercito poderia sustentar dois filhos. O padre capellão administrava as propriedades. Que me restava a mim para não morrer de aborrecimento durante o dia? Augusta, a criança que me tinha sido confiada. Era ella a minha unica distracção, o meu unico amor; ha dez annos que este tecto lhe abriga a innocencia, e ha dez annos que eu abençôo a resolução de a chamar para amparo da minha velhice. Olhe que os annos tornam a gente egoista, padre capellão; a abnegação é só apanagio da mocidade. Não pense que me bastava a unica distracção do voltarete; é sempre a mesma cousa! Quando eu peço licença o padre capellão prefere, e o Teixeira dá-lhe codilho. Tambem é boa embirração a sua de preferir sem jogo. Nem que tivesse vontade de fazer mal... E o dia, estes longos dias da provincia, que não teem fim! Era morrer de fastio. Augusta trouxe-me cuidados e variedade. A principio com as suas exigencias de criança; agora com as suas ingenuidades de donzella. Vi, anno a anno, desabotoar a flôr. A flôr, disse bem, porque Augusta é realmente uma rosa... de quinze annos. E é que eu a estimo como seu jardineiro que sou. Instantemente lhe pedi que se deitasse para que não ouvisse dizer ao Teixeira as proezas que os senhores francezes teem feito lá para esse rio Minho. Mas, padre capellão, o que é certo é que eu já haveria partido para o Porto, se n'esta occasião estivesse prevenida com recursos. O padre capellão bem sabe...
 - Sei, sei, senhora morgada, que a occasião é má para todos. - Se os caseiros pudessem pagar o resto das rendas... - A senhora morgada devia conhecer o que é guerra sobre guerra. Tivemos esse excommungado Junot, mais as suas aves de rapina, a comer-nos os olhos da cara. Nem as egrejas respeitou, o maldito! A senhora morgada ainda fala em pedir o resto das rendas aos caseiros! E para quê? Para fugir para o Porto, para casa de seu genro, para abandonar as suas propriedades! - O padre capellão velará por ellas. É que eu bem sei os sustos que curti aqui durante a primeira invasão. Se no Porto não estivesse a soldadesca do Taranco, teria fugido para lá. - E que teima essa de me querer confiar as suas propriedades, capacitado como estou de que a senhora morgada suppõe que lh'as administro mal! Administro mal, administro, porque não forço os caseiros a pagarem o resto das rendas para vossa senhoria o ir gastar no Porto com a familia de seu genro. Depois de uma guerra e em vesperas de outra é que a senhora morgada fala em pagar! - Pagar é um dever, padre capellão, e quanto mais nos apressamos a fazer o que devemos tanto maior é o repouso do espirito. Bem sei que são más as circumstancias, mas é que tambem esta pobre gente se importa pouco com o calendario, e acha que todo o tempo é tempo. É que tambem não imaginam que se esconda a pobresa detraz de pergaminhos e genealogias. Pois esconde, se esconde! Sabe o padre capellão que eu falei no resto das rendas porque n'esta occasião não ha dinheiro em casa. Ninguem melhor o sabe, porque lhe passam os negocios pela mão. O que é certo é que eu sinto ameaços de pobresa... - Nem tanto ao mar, senhora morgada... - Se presinto! Vivo modestamente n'estas solitarias Chãs, encantada nas graças d'Augusta, cerrando ouvidos ao bulicio da cidade que está proxima. Não posso fazer despezas extraordinarias, é preciso não largar a brida da mão para costear as indispensaveis. - Os chás não são indispensaveis, senhora morgada...
 - Magôa-me a sua ironia, padre capellão! Tanto mais que sabe como é limitado o serviço da nossa mesa de jogo. E depois queria que eu fechasse as minhas portas na face do velho Teixeira, amigo leal da nossa casa desde a mocidade de meu marido? Sabe o padre capellão como o morgado deixou as propriedades sobrecarregadas de hypothecas. Mal tenho podido rehabilitar o casal, apesar de todas as economias e da maxima abstenção d'obras de beneficencia... - Maxima abstenção!... - É injusto, padre capellão! Refere-se talvez á Augusta... Não sabe que é filha de minha filha, casada por inclinação com um honrado militar do exercito portuguez, a quem não basta unicamente a sua immaculada honradez para ser feliz! Era-me impossivel soccorrer a mãe; soccorri a filha. Eu não podia ir mais longe, senão teria ido. Sempre contrariedades! Sempre o padre capellão a annunciar-me algum novo desastre! Ah!Mas d'esta vez creia que não haverá desastre nem contrariedade que me véde o tirar dos hombros uma enorme responsabilidade, levando Augusta para a companhia dos seus, e minha tambem, porque ella é minha, e muito minha, pelo sangue e pelo coração... Em ultimo caso, recorrerei ao emprestimo... - Outro? - É minha filha e meus netos que eu prejudico; o padre capellão, não. Todavia, como é para bem d'elles, elles m'o perdoarão. O padre capellão por sua propria mão recebe os juros das quantias que tem desembolçado, e creio que as propriedades que conservo fartamente abastarão ao pagamento do capital, no momento em que queira usar dos seus direitos de crédor.
 - Eu não quero... - Deixe-me figurar a peior hypothese, e evidenciar-lhe que lhe não causam detrimento os seus desembolços. - Falando francamente, senhora morgada, sou a dizer-lhe que o juro é pequeno... - Augmente-o como lhe apraza. Não é meu costume questionar cinco réis ao padre capellão. - Eu sou tão pobre como a senhora morgada, tartamudeou o reverendo com um frouxo de tosse que denunciava estar providencialmente entalado com o osso da mentira. A morgada gesticulou de incredulidade e enfado. - Eu sou tão pobre como a senhora morgada, reatou o capellão ajudando-se a engulir a falsidade com um sorvo de rapé, e é á custa de trabalho que tenho recolhido escassas mealhas ao canto da gaveta. De Inverno arrosto as neves da madrugada para saír aos campos a espionar os trabalhadores no interesse de vossa senhoria. No Verão aguento as calmas do meio dia para os estimular ao trabalho. As horas feriadas de canceiras externas passo-as á banca a fazer a escripturação ou no quarto a rezar as minhas orações. Tenho envelhecido ao serviço de vossa senhoria, e o magro peculio do pobre padre ao trabalho o devo. E o mais é que já vou achando ser horas de descançar... Vejo porém que não seria facil encontrar quem com zelosa dedicação governasse a casa alheia, e, se me é canceira o dirigil-a a despeito da velhice, tambem me é consolação o ouvir dizer-me a consciencia que devo trabalhar por não ver quem facilmente me substitua. Digam embora o senhor seu genro e a senhora sua filha o que quizerem, e me consta que dizem: a verdade é esta... » In Alberto Pimentel, O Anel Misterioso, Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da História de Portugal, Lisboa, Sociedade Editora Livraria Moderna,1904.

Cortesia da EHdePortugal/JDACT