quarta-feira, 28 de junho de 2017

O Vaticano contra Cristo. I Millenari. «Os sucessores desses homens da Igreja foram, depois, obrigados a fazer reentrar pela porta de serviço, com a maior confusão e o maior embaraço»

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A Igreja não é o Vaticanismo
«(…) Jesus, ao fundar a Igreja, deu-lhe toda a riqueza de graça suficiente para que os homens de todas as épocas possam conseguir a salvação de si próprios e salvar os outros, mas não podia dar-lhe a capacidade de conter em si mesma, criatura finita, todo o infinito bem de Deus, que Ele dispensa livremente, em forma de chuveiro, também fora da Igreja. Ela não pode, por isso, tornar-se guarda de Deus, fechando-o à chave atrás da porta do seu tabernáculo para o distribuir como e quando lhe agradar. A sua missão traduz-se melhor através da imagem de um ostensório que mostra Cristo aos homens sem, por isso, d' Ele se apropriar. O Absoluto não pode privar-se do poder de se manifestar seja como for a todas as suas criaturas, dentro e fora da Igreja, no tempo e no espaço, através de carismas e graças especiais sempre novos e nunca conferidos em obediência a clichés.
Os carismas divinos ou graças especiais, às vezes extraordinários como o dom dos milagres, são meios pelos quais o Espírito Santo opera e revela a jorros a presença omnipotente de Deus na criação. Tais sinais expressam o alfabeto divino através do qual o Senhor esconde por vezes uma mensagem ao homem e à humanidade e que, fazendo parte do natural poder divino ad intra, não se circunscrevem a priori aos limites de uma acção concreta ad extra, mesmo que seja de instituição divina como a Igreja, cuja finitude, repetimos, não pode circunscrever o infinito poder de Deus.
Então, qual a actuação conforme à natureza da Igreja face a um evento prodigioso ou a uma mensagem extraordinária? Deverá interpretá-los à luz da regra infalível ditada por Jesus: uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar frutos bons. A Igreja deveria saber permanecer fiel aos grandes princípios denunciando o que possa não ser carisma divino, mas estando bem atenta para não atribuir a Deus os erros e os preconceitos de alguns homens da Igreja, que historicamente o obrigaram a embarcar no comboio que circula apenas no espaço dos seus carris. Um facto histórico que interessa directamente à Igreja apenas será totalmente claro na parúsia; num corte vertical da história, o Eterno pode tornar-se visível sem que a substância divina seja afectada e sem que a espessura do temporal desapareça, de modo a que a Revelação seja compatível com a Incarnação, como a profecia do Apocalipse que se materializa na humanidade distraída.
A tese sobre a eclesiologia é de uma evidência óbvia, quer sob o aspecto teológico quer sob o aspecto histórico. Quantas vezes o juízo humano eclesiástico, tentado a ensinar Deus sobre como deveria intervir no mundo, sempre através dele, não soube identificar a intervenção do divino no temporal, chegando a pronunciar, sem reflexão suficiente, sentenças de reprovação, com as quais condenavam o próprio Autor desses carismas que os provocava para os ensinar. Muitas vezes se chegou ao absurdo de pensar que o que a Igreja ordenava era a verdade, em oposição ao que Deus operava através de homens de santidade comprovada ou de revelações, que, no seu pensar, seriam falsas. Sois capazes de entender os sinais do céu e da terra, como não sois capazes de entender o que acontece no tempo presente? Porque não julgais por vós mesmos o que é justo?, pergunta-lhes Jesus.
Os sucessores desses homens da Igreja foram, depois, obrigados a fazer reentrar pela porta de serviço, com a maior confusão e o maior embaraço, alguns fenómenos sobrenaturais. Exemplos de Galileu Galilei, Santa Joana d'Arc, Santa Teresa de Ávila, S. João da Cruz, S. José de Cupertino, Jerónimo Savonarola, Antonio Rosmini, padre Pio de Pietrelcina, Zeno Saltini (fundador de Nomadelfia), para terminar com o fenómeno de Medjugorie, aonde trinta milhões de membros da Igreja viva ainda hoje se dirigem em penitência enquanto trinta eclesiásticos insistiram em condená-lo. A história recorda vários erros registados na cúpula da Igreja». In I Millenari, Via col vento in Vaticano, Kaos Edizioni, 1999, O Vaticano contra Cristo, tradução de José A. Neto, Religiões, Casa das Letras, 2005, ISBN 972-46-1170-1.

Cortesia Casa das Letras/JDACT

terça-feira, 27 de junho de 2017

O Viajante do Infinito. Patrick Girard. «Tu, filho de um rústico de Moconesi, eis-te agora dono das quatro paredes onde irás viver a partir deste momento»

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Assassínio à porta dell’Olivella
«(…) Bartolomeo Costapelli, um cardador, não parava de vituperar os geegos: foi um justo castigo para esses cães heréticos, que se recusam a reconhecer a autoridade do papa. O irmão António, o guarda-portão de San Stefano, disse-me com a voz trémula de indignação que um dos chefes deles ousara afirmar: mais vale o turbante dos turcos do que a mitra dos latinos. Não entendi nada, mas aquilo devia ser muito grave, a julgar pela cólera dele. Que Nosso Senhor Jesus Cristo e a Sua Santíssima Mãe nos livrem para sempre dessa corja! Segundo Anna, uma criada, o viajante interrompera Costapelli com grosseria: que cristão és tu, pobre idiota, a maldizer esses gregos para quem trabalhas. Pelas tuas mãos, calculo que sejas tecelão. O que vais fazer quando tu e os teus deixarem de receber as nozes-de-galha de que vos servis para tingirdes de negro as vossas malditas lãs? São tão ásperas que só os pobres de Salerno ou de Nápoles aceitam comprá-las. Quando o estômago te gritar de fome, suplicarás a Deus para que o turco se mostre tão condescendente como os gregos. Estarás até pronto a abraçar a fé deles, desde que continuem a dispensar-te essas famosas nozes.
Ninguém se lembrava de quem desembainhara então uma faca para fazer o homem engolir semelhante blasfémia. Na penumbra, cintilara uma lâmina. O viajante esvaíra-se em sangue nos braços do companheiro, enquanto os clientes da taberna fugiam, abandonando os seus copos acabados de servir. Anos mais tarde, Domenico lembrava-se amargamente dos aborrecimentos que lhe tinha valido aquela rixa. Quando os archeiros vieram recolher o cadáver, ele ouvira um deles reprimir uma blasfémia ao analisar os documentos encontrados no homem. Algumas horas mais tarde, já ele tinha sido levado para casa do doge. O defunto falou contigo? Não, senhor. Eu estava a guardar a Porta dell’Olivella como dita o cargo que me confiou o vosso nobre pai. E que eu te retiro. Não protestes. Há muito que aguardo a oportunidade de me vingar da humilhação pela qual um dia me fizeste passar ao me recusares a entrada na cidade.
Agi de acordo com as ordens do vosso pai, o ilustre Gianni Fregoso. Ordens essas que tiveste, aliás, o grande cuidado de manter quando lhe sucedeste. Pouco importa. A tua taberna é um lugar de vício e perdição. As tuas criadas vendem os seus corpos. O prior de San Stefano queixou-se disso por diversas vezes. Até agora, aceitara fechar os olhos perante esse escândalo, mas não voltarei a tolerar que a protecção de uma das portas da cidade seja confiada a um vulgar rufião. Mas isso é condenar-me à ruína! Pierino Fregoso avaliou-o com um ar ao mesmo tempo altivo e vagamente inquieto: tens a certeza absoluta de que a vítima não disse a ninguém quem era? Foi o que a Anna me jurou. A pobre rapariga estava toda perturbada por ter assistido a um assassínio. O homem contentou-se em dizer as infelizes palavras que conheces, sem dúvida, sob influência do vinho que tanto bebeu.
Bem quero acreditar em ti. Fica sabendo que nunca ninguém deve saber o que se passou ontem na tua taberna. O assassino e os seus cúmplices não estão prestes a vangloriar-se do seu acto. Não querem ficar a espernear na ponta de uma corda. Tenho dúvidas quanto a isso, e aí está a tua sorte. Para evitar o falatório, tenho de encontrar uma razão plausível para a cessação das tuas funções como guarda da Porta dell’Olivella. A partir desta noite, a cidade ficará a saber que, pelos teus distintos méritos, te confiei a gestão das terras que possuo em Savona, onde irás instalar-te sem delongas. Sossega que serão apenas alguns pomares e arpentes de vinha que te deixarão tempo livre para te dedicares às outras tuas ocupações. Graças à minha bondade, eis-te proprietário de uma loja e de uma casa contígua à Igreja de San Giulano, onde irás fazer as tuas orações. Filippo Masetta, o meu tabelião, já redigiu uma escritura de venda fictícia, porque de ti não exijo nenhum outro pagamento além do teu silêncio. Não me agradeças, porque este presente fica-me mais barato do que o dinheiro que perderia se este assunto viesse a lume. Levaria tempo demasiado a explicar-te. Dou-te mesmo como bónus António, o escravo do morto, um mouro bastante robusto a julgar pelo que dizem os meus archeiros, que tiveram alguma dificuldade em lhe deitar a mão. Faz as coisas de modo a que ninguém saiba quem ele é, nem onde se encontra. Como vês, o teu desvalimento é, porém, brando. Tu, filho de um rústico de Moconesi, eis-te agora dono das quatro paredes onde irás viver a partir deste momento. É mais do que qualquer um dos teus filhos conseguirá ter no final de uma vida de trabalho árduo. Desaparece da minha vista antes que comece a arrepender-me da minha generosidade». In Patrick Girard, Cristóvão Colombo, O Viajante do Infinito, 2011, Editorial Presença, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-235-138-6.

Cortesia de EPresença/JDACT

Roma Antiga. A vida sexual. Géraldine Puccini-Delbey. «… a sociedade reside primeiro na união conjugal, e depois nas crianças…»

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O dever cívico do casamento
«(…) Não sabemos quais seriam os hábitos matrimoniais nos primeiros tempos de Roma. Este período, perdido nas brumas de um longínquo passado sem rasto escrito, só nos é acessível através do prisma de alguns mitos relatados por Tito Lívio no início da sua História de Roma. O relato mitológico do rapto das sabinas funciona como um dos mitos vitais da cidade. Os companheiros de Rómulo, instalados no Lácio, não têm mulheres. Ora, o futuro da cidade que estão a edificar depende da posteridade desses primeiros colonos. Precisam de mulheres para conceber. Porém, os povos vizinhos, nomeadamente os sabinos, opõem-se a dar as suas filhas em casamento àqueles aventureiros, que decidem então conseguir companheiras por meio de um estratagema e de violência. Rómulo convida os vizinhos para um espectáculo de jogos; os sabinos aceitam o convite e vão com as mulheres e os filhos. A um sinal previamente acordado, os romanos precipitam-se para raptar as jovens sabinas e, posteriormente, casar com elas. Este relato lendário oculta, talvez, factos verdadeiros. Os ataques maciços de aldeia em aldeia para conquistar mulheres não são desconhecidos nas sociedades primitivas, e é possível que os primeiros habitantes de Roma tenham recorrido a tais práticas.
Pode ser também uma lenda que perpetua apenas a lembrança de um rito muito antigo. Este relato foi alvo de múltiplas interpretações. Enquanto Plutarco indica que, na época de Rómulo, as práticas são estritamente endógamas no quadro gentilício, outros houve que viram nele um rito de exogamia. Georges Dumézil analisa-o como um mito funcional indo-europeu. Os sabinos e o seu rei Tácio representam a função de fecundidade, a terceira função social face às duas mais importantes, a função religiosa e a função bélica assumidas por Rómulo e pelos seus companheiros. A aliança entre Rómulo e Tácio dá origem à criação de uma sociedade completa onde estão reunidas as três funções indo-europeias. O casamento e a mulher que se torna mãe de família são o meio e o órgão da fecundidade regulamentada.
No século V a.C., a proibição do casamento entre patrícios e plebeus teria figurado em uma das XII Tábuas. O tribuno C. Canuleio reclama em440 a.C. para os plebeus o direito ao casamento com patrícios, provocando o protesto destes, que se escandalizam com a abolição de todas as distinções sociais. Porém, o tribuno leva a melhor; a Lei Canuleia, que autoriza os casamentos entre patrícios e plebeus, é votada. A vitória dá origem, no plano social, a um resultado muito importante: por meio dos casamentos mistos, a elite das famílias plebeias pode começar a aceder à direcção do Estado. Na época republicana, podem, portanto, recorrer à instituição cívica do casamento todos aqueles que são cidadãos, homens e mulheres adultos de condição livre, bastardos de mãe cidadã e, a partir do final da República, os antigos escravos libertos, que doravante podem casar-se legalmente com uma pessoa de nascimento livre, com a condição de não pertencer aos graus de parentesco proibidos. A lei é clara quanto a este ponto: os cidadãos romanos contraem matrimónio (conubium) com cidadãos romanos; com latinos e estrangeiros, se tal for permitido; com escravos não existe qualquer casamento (são o resumo de um manual atribuído a Ulpiano, compilado no final do século III ou no princípio do século IV da nossa era por um jurista desconhecido, a partir de obras de Ulpiano e, talvez, de outros juristas clássicos; ainda que de redacção tardia, estes Tituli apresentam a doutrina dos juristas e dos administradores do final do século II e do principio do século III d.C., assim como a sua visão retrospectiva do sistema legal romano). A partir do principado de Augusto, este quadro geral sofre algumas proibições que dizem respeito aos senadores, aos seus filhos e aos seus netos, os quais não podem casar-se com libertas, actrizes ou prostitutas. Pelo contrário, um cavaleiro pode casar com uma liberta. O casamento com uma prostituta continua a ser proibido a todos os cidadãos de condição livre. Um governador de província apenas pode casar com uma habitante da província por si administrada após o fim do seu mandato. Todas as classes sociais devem evitar a disparidade de nascimento entre marido e mulher.

Um fundamento filosófico
Cícero, na sua obra filosófica Dos Deveres, concordando com os peripatéticos e com os estóicos, considera o casal como o grupo animal original do qual derivam todos os grupos maiores: a sociedade reside primeiro na união conjugal, e depois nas crianças. O casal e os seus filhos formam a unidade de base que serve para fazer nascer a cidade e o Estado. O casamento é, por assim dizer, o viveiro do Estado, e o seu objectivo é gerar crianças, liberorum creandorum causa, de acordo com a fórmula ritual. No princípio de De inuentione, Cícero, interrogando-se acerca da origem da eloquência, descreve o estado natural antes da civilização, quando os homens erravam ao acaso pelos campos à maneira dos animais e quando ninguém vira ainda casamentos legítimos: estes são um critério decisivo de civilização, e Cícero liga todo o desenvolvimento social à união dos dois sexos no seio da instituição do casamento». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e Grafia, tradução de Tiago Marques, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.

Cortesia de TGrafia/JDACT

O Viajante do Infinito. Patrick Girard. «Cansada de tais desvelos, a arraia-miúda exigira que se reparasse a antiga cintura da muralha, erigida uns séculos antes»

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Assassínio à porta dell’Olivella
«Ainda era dia claro, porém, todos se apressavam para chegar a tempo. Quando o mestre Domenico Colomb estava de serviço, como naquela semana, não mostrava compaixão alguma para com os retardatários. Mal o gradeado de ferro era descido, não abria a porta a mais ninguém, sob que pretexto fosse, mantendo-se insensível às súplicas de uns e às lisonjas de outros. Os hortelãos do Bisagno ainda se recordavam da contrariedade que acontecera a Pierino Fregoso, uns anos antes de suceder ao seu pai como doge. Atrasara-se junto a uma lavadeira de peito generoso e, ao chegar com os amigos às portas da cidade, vira-lhe ser recusada a entrada. Bem que se enfurecera, blasfemara, ameaçara, mas nada abalara a determinação do cérbero da muralha, como ele o apelidara com soberba. Nem que fosse um dos Reis Magos, ou Nosso Senhor Jesus Cristo em carne e osso, teria direito a um tratamento de deferência.
Deste modo, vira-se na obrigação de passar a noite com os companheiros na Hospedaria da Loba Zarolha, propriedade de Domenico, que se situava fora da cintura da muralha, a esvaziarem copos de vinho uns atrás dos outros. No Verão, como no Inverno, mal o Sol começava a descer no horizonte, a cidade encerrava-se atrás das suas muralhas. Tinham sido edificadas para a proteger dos ataques de surpresa dos salteadores a soldo dos fidalgos de Lavagna. Estas autênticas feras não hesitavam em surpreender os viajantes e os peregrinos que se aproximavam da cidade e desatendiam a vigilância. Por diversas ocasiões, tinham seguido a sua presa até junto do portão do Convento de San Stefano, enquanto os nobres se fechavam nas torres altas e ameadas que tinham mandado erigir mesmo no centro de Génova.
Cansada de tais desvelos, a arraia-miúda exigira que se reparasse a antiga cintura da muralha, erigida uns séculos antes, e cuja vigilância dos portões fora confiada a homens provenientes do seu seio. A medida dera os seus frutos. Os Fieschi, que outrora haviam semeado o terror, tinham descido do seu covil montanhoso para virem instalar-se na cidade. Tinham posto fim às pilhagens por considerarem isso mais rentável e para aproveitarem a prosperidade do porto. A paz voltara, mas os velhos hábitos mantinham-se. Mal a noite caía, o medo brocava o coração dos homens. Os campos vizinhos tornavam-se para eles o palco de estranhos acontecimentos. Feiticeiros e bruxas aproveitavam a escuridão para realizarem as suas reuniões nocturnas, ao mesmo tempo que os lobos esfomeados vagueavam em busca de alimento. Há poucas semanas ainda, nas margens escarpadas do Bisagno, tinham sido encontrados os cadáveres de dois pastores retalhados pelas terríveis mandíbulas dos carnívoros, tendo então sido enterrados à pressa. Domenico ainda se lembrava do grito rouco da mãe deles quando os corpos foram descidos para a sepultura cavada à pressa: um pranto dilacerante, inumano, que parecia ecoar os bramidos dos animais selvagens.
Era para se proteger que, todas as noites, a cidade se enclausurava e confiava a sua guarda aos archeiros de atalaia que velavam para que ninguém entrasse nem saísse da cintura da muralha. Bem seguros, os habitantes entregavam-se às suas ocupações habituais. As mulheres afadigavam-se em frente aos fogões. Os homens iam para a taberna mais próxima comentar as últimas novidades, como a chegada de uma carraca proveniente de Quios ou de Caifa ou a próxima venda de um lote de escravos comprados em Constantinopla. Longe do olhar dos pais, cortejos de crianças travessas desciam as ruelas em declive a surripiarem aqui e ali um fruto ou a deitarem ao chão bancas de mercadorias.
Eram tantas as cenas que ali tinham lugar que ninguém veria, pelo menos naquela noite, os dois soldados de cavalaria abrirem caminho na penumbra, a pouca distância da cidade. Um deles não era seguramente um desconhecido. Como se soubesse que lhe iam recusar a abertura da porta, instintivamente, dirigira-se para a Hospedaria da Loba Zarolha, confiando a sua montada a um gaiato para que a levasse para a estrebaria. Com o seu companheiro de rosto dissimulado por um capuz, entrou na grande sala pouco iluminada por velas de sebo de má qualidade, onde as criadas repeliam aos risinhos os avanços dos clientes habituais, pobres joões-ninguéns que ali tinham ido em busca de um pouco de calor e consolo depois de um dia de trabalho penoso.
Os dois homens tinham-se sentado em silêncio num canto próximo da lareira. O mais velho atirara algumas moedas para cima da mesa e pedira vinho, pão e queijo. Beberam e comeram sem prestar atenção aos que estavam mais próximo. Ao serão, bem mais tarde, o mais velho intrometera-se nas conversas. Todos comentavam a novidade trazida nessa mesma manhã pelos marujos sobre a queda de Constantinopla às mãos dos turcos». In Patrick Girard, Cristóvão Colombo, O Viajante do Infinito, 2011, Editorial Presença, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-235-138-6.

Cortesia de EPresença/JDACT

segunda-feira, 26 de junho de 2017

A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal. François Soyer. «Durante a conquista do Alentejo e Algarve, é igualmente evidente que muitas praças-fortes muçulmanas foram entregues aos cristãos»

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Manuel I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497)
«(…) Pouco mais se sabe da comunidade muçulmana de Lisboa durante o século XII. O cronista inglês Roger de Hoveden conta que cruzados ingleses, de passagem por Lisboa a caminho da Terra Santa em 1190, atacaram os pagãos e judeus, servos do rei, que residiam na cidade. Uns anos mais tarde, em Maio de 1198, urna carta enviada pelo Papa Inocêncio III ao prior e cónegos do mosteiro de Santa Cruz em Coimbra indicava que estes últimos tinham ao seu serviço funcionários muçulmanos. A conquista do Algarve, na primeira metade do século XIII, trouxe aos reis de Portugal mais territórios e súbditos muçulmanos. Afonso III e o seu filho Dinis I (1279-1325) concederam forais especiais às comunidades muçulmanas de Silves, Loulé, Tavira e Faro em 1269, Évora em 1273, e Moura em 1296. Estes forais eram quase idênticos ao concedido por Afonso Henriques um século antes.
Existem poucos dados sobre as condições efectivas sob as quais muitas cidades ou zonas rurais e seus habitantes muçulmanos passaram para o domínio português. As raras crónicas que descrevem as conquistas portuguesas registam apenas a tornada violenta de cidades e descrevem o repovoamento, por colonos cristãos, de cidades arruinadas e terras abandonadas. O relato da violência da reconquista portuguesa, contudo, não deve ser exagerado. Os actos deliberados de violência e as chacinas foram, aparentemente, a excepção e não a regra. A presença de cruzados do Norte da Europa, imbuídos do espírito das cruzadas, pode certamente explicar a violência demonstrada em Lisboa (1147) e Silves (1189). Em Lisboa, Afonso Henriques estava, na verdade, a negociar a rendição pacífica da cidade com os seus representantes quando os cruzados, desconfiando das intenções portuguesas e ansiosos pelo saque, assaltaram e pilharam a cidade. Tanto quanto se sabe, as forças portuguesas foram responsáveis por apenas dois massacres: Santarém em 1147 e Aljezur em 1248. O facto de o autor anónimo quatrocentista da crónica dos cinco reis de Portugal ter considerado importante mencionar a chacina dos habitantes muçulmanos (na sua maioria desarmados) de Aljezur pelos cavaleiros de Santiago apenas vem salientar que tais atrocidades não eram ocorrências habituais.
A conquista portuguesa do Gharb al-Andalus não foi uma guerra de extermínio. É certo que a linguagem usada por cronistas portugueses para se referirem ao conflito sugere que este era entendido pelos contemporâneos como sendo de natureza política e não religiosa. Na verdade, os conquistadores tinham perfeita consciência das dificuldades de levar colonos cristãos para os territórios conquistados e de que precisavam de efectivos muçulmanos para preservar as suas conquistas. Algumas zonas muçulmanas passaram para o domínio cristão sem grande resistência. Segundo o autor inglês de De expugnatione Lyxbonensi, uma testemunha do cerco de Lisboa, os habitantes de Sintra, em 1147, entregaram o seu castelo e submeteram-se ao rei. Durante a conquista do Alentejo e Algarve, é igualmente evidente que muitas praças-fortes muçulmanas foram entregues aos cristãos, aparentemente com pouca ou nenhuma oposição. Um cronista muçulmano anónimo do século XIV em Marrocos chegou mesmo a denunciar a entrega a cristãos de muitas praças por Ibn Mahfuz, o último soberano de Niebla. Uma hipótese avançada recentemente, embora baseando-se em provas extremamente escassas, é a de uma conversão em massa ao cristianismo por parte da população muçulmana conquistada em Portugal entre 1270 e 1320». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.

Cortesia de E70/JDACT

domingo, 25 de junho de 2017

A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal. François Soyer. «A primeira prova inequívoca de numerosas populações muçulmanas vivendo sob domínio cristão em Portugal data da segunda metade do século XII»

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Manuel I e o fim da tolerância religiosa (1496 - 1497)
«(…) A região a norte do rio Mondego fazia parte de uma fronteira islâmica voltada para as regiões que permaneciam sob domínio cristão no Norte. Depois da revolta dos berberes na década de 50 do século VIII e da ascensão do reino cristão das Astúrias (que se tornaria, mais tarde, o de Castela-Leão), os muçulmanos foram obrigados a retirar-se para sul. O Porto já se encontrava definitivamente sob domínio cristão em 864. A importante cidade de Coimbra mudou várias vezes de mãos no século IX e durante mais de oitenta anos, entre 904 e 987, esteve sob domínio cristão (exércitos cristãos atacaram Coimbra em 878, 889 e 904; Coimbra esteve sob domínio cristão entre 904 e 987, quando as forças do califa de Córdoba, Abd al-Rahman III recuperaram o controlo da cidade). O povoamento muçulmano nestas regiões do Norte era provavelmente escasso, embora seja pouco provável que tivesse sido uma terra desabitada, como há muito tem sido afirmado por historiadores modernos (a ideia de que o vale do Douro se tomou uma região inabitada ou terra de ninguém entre o norte cristão e al-Andalus tem sido assunto de grande controvérsia). Em todos os territórios do Oeste de al-Andalus, Gharb al-Andalus, de onde provém a designação Algarve, continuou a existir uma importante população cristã até ao século XII. Estes cristãos moçárabes falavam arábico e usavam, muitas vezes, nomes árabes.
Segundo uma fonte cristã, a população de Lisboa, em 1109, era metade cristã e metade pagã, e outra revela que a cidade tinha ainda um bispo moçárabe em1147 (segundo uma crónica islandesa, quando o cruzado rei Sigurdo e os seus seguidores noruegueses atacaram Lisboa, quando iam a caminho de Jerusalém em 1109, descobriram que a cidade era metade pagã e metade cristã). As populações muçulmanas e as guarnições de cidades conquistadas por exércitos cristãos durante o século XI ou foram mortas, ou escravizadas, ou retiraram-se para sul. Quando os cristãos capturaram as vilas de Seia, Lamego e Viseu em 1057 e 1058, os seus habitantes muçulmanos foram escravizados ou passados à espada. A população muçulmana de Coimbra, cercada durante seis meses pelo rei de Leão em 1064, negociou uma rendição condicional que lhe permitiu evacuar a cidade e retirar-se para territórios muçulmanos mais a sul(história silence). Os forais em latim, no século XI e início do século XII, referem-se por vezes a homens com nomes arábicos, mas é impossível precisar se estes indivíduos eram muçulmanos ou moçárabes cristãos. Assim, a identidade religiosa de Abd Allah ibn Sulayman, Sulayman Alcarived e Umar Alkarrac, todos registados como habitantes de Coimbra em 1098, 1126 e 1162 respectivamente, permanece indeterminada. Não foi ainda encontrada nos arquivos qualquer menção de muçulmanos (mouros) que não tivessem sido escravos.
A primeira possível referência a muçulmanos livres a viver sob domínio cristão em Portugal parece datar de 1095, quando Afonso VI de Leão e Castela concedeu um foral aos colonos cristãos de Santarém. Esta vila não fora cercada nem atacada, mas cedida a Afonso VI pelo governante muçulmano de Badajoz em 1093. Não se sabe se a população muçulmana local abandonou a vila ou escolheu lá permanecer com a guarnição militar e os colonos cristãos. Uma cláusula curiosa no foral não se refere explicitamente à existência de muçulmanos livres, mas concede protecção a muçulmanos que manifestamente não eram escravos. Se muçulmanos livres viviam, de facto, sob domínio cristão em Santarém, essa situação foi abruptamente interrompida quando um exército muçulmano recuperou a cidade em 1111 (Oliveira Marques sugeriu a data anterior de 1103 para a conquista de Santarém pelos almorávidas).
A primeira prova inequívoca de numerosas populações muçulmanas vivendo sob domínio cristão em Portugal data da segunda metade do século XII e da importante ofensiva cristã que resultou na conquista de Lisboa e de outros lugares ao longo do rio Tejo em 1147. Em 1170 Afonso Henriques concedeu um foral especial às comunidades muçulmanas de Lisboa, Alcácer, Palmela e Almada. Este foral dos mouros, confirmado por Afonso II (1211-1223) em 1217, é o primeiro documento a reconhecer oficialmente a existência de muçulmanos livres a viver em Portugal». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.

Cortesia de E70/JDACT

Bizâncio. O Império da Nova Roma. Cyril Mango. «A Palestina era assim uma babel de línguas, mas a população autóctone, e que esta incluía dois grupos étnicos distintos, nomeadamente, os Judeus e os Samaritanos, falava aramaico»

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Aspectos da Vida Bizantina. Povos e Línguas
«(…) Situadas a leste da Capadócia, e abrindo caminho a uma série de cadeias montanhosas, encontram-se algumas províncias arménias que haviam sido anexadas ao Império em 387 d.C., quando o reino arménio se repartia entre a Pérsia e Roma. Estas províncias eram estrategicamente muito importantes, mas praticamente intocadas pela civilização greco-romana, pelo que continuaram a ser governadas pelos sátrapas nativos até Justiniano lhes impor uma nova forma de administração militar. No século V, os Arménios adquiriram o seu próprio alfabeto e começaram a construir uma literatura à base de traduções do grego e do sírio, fortalecendo o sentimento de identidade nacional. De facto, os Arménios, que desempenharam um papel crucial na história de Bizâncio, revelaram-se bastante resistentes à assimilação, tal como os outros povos caucasianos.
A fronteira entre a Arménia e a Mesopotâmia correspondia, aproximadamente, ao rio Tigre. Três séculos de ocupação da Pártia (desde meados do século II a.C. até à conquista romana cerca de 165 d.C.) apagaram praticamente todos os traços de helenização da Mesopotâmia, que os reis da Macedónia tanto haviam querido impor. A forma literária síria usava o dialecto de Edessa (Urfa), sendo nessa cidade abençoada, assim como em Amida (Diyarbakir), Nísibis (Nusaybin) e em Tur Abdin, que um vigoroso movimento monástico de crença monofisita alimentava o cultivo dessa língua. A Mesopotâmia era uma região fronteiriça: a fronteira entre Roma e a Pérsia apresenta uma curta distância a sueste da cidade-guarnição de Dara, enquanto Nísibis havia sido ingloriamente cedida aos Persas pelo imperador Joviano em 363. A separação cultural da Mesopotâmia certamente não ajudou o governo imperial, essencialmente por se tratar de uma área sensível.
O domínio dos dialectos aramaicos, a que pertence o sírio, estendia-se através da Síria e da Palestina até aos confins do Egipto. Aqui testemunhamos um fenómeno de considerável interesse. Quando os reinos helénicos se estabeleceram, a seguir à morte de Alexandre, o Grande, a Síria estava dividida entre os Ptolomeus e os Selêucidas. Os Ptolomeus, que obtiveram a metade do país a sul, pouco fizeram para estabelecer ali as colónias gregas. Pelo contrário, os Selêucidas, para quem o Norte da Síria tinha uma importância crucial, levaram a cabo uma colonização intensiva. Colonizaram algumas cidades novas, tais como Antioquia Orontes, Apameia. Selêucia e Laodiceia, introduzindo um elemento grego nas cidades existentes, tais como Alepo. A partir dessa altura, toda a Síria permaneceu continuamente sob uma administração de língua grega. No entanto, cerca de nove séculos mais tarde, a língua grega não está confinada apenas às cidades, mas alargada às mesmas cidades que haviam sido fundadas pelos reis helénicos. O campo, em geral, e as cidades que não eram de origem grega, como Emesa (Homs), mantiveram-se fiéis à sua língua autóctone, o aramaico.
É pouco provável que o uso do grego tivesse sido mais divulgado na Palestina do que foi no Norte da Síria, excepto em relação a um fenómeno artificial, nomeadamente, o desenvolvimento dos locais sagrados. A começar pelo reino de Constantino, o Grande, praticamente todos os lugares com fama bíblica se tornaram, como diríamos hoje, numa atracção turística. As pessoas vinham em grande número para a Palestina, oriundas de todos os cantos do mundo cristão: alguns como peregrinos em trânsito, outros procurando uma permanência mais duradoura. Mosteiros de todas as nacionalidades emergiram como cogumelos no deserto ao lado do mar Morto. A Palestina era assim uma babel de línguas, mas a população autóctone, e devemo-nos lembrar que esta incluía dois grupos étnicos distintos, nomeadamente, os Judeus e os Samaritanos, falava aramaico, como sempre o fizera». In Cyril Mango, Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN 978-972-441-492-8.

Cortesia de E70/JDACT

sábado, 24 de junho de 2017

Bizâncio. O Império da Nova Roma. Cyril Mango. «… e o celta, por seu lado, seria falado na Galácia e na Capadócia, mais a este. Os rebeldes isáuricos, que haviam sido pacificados…»

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Aspectos da Vida Bizantina. Povos e Línguas
«(…) Constantinopla, como todas as grandes capitais, era uma miscelânea de elementos heterogéneos: todas as setenta e duas línguas conhecidas do homem estavam nela representadas, segundo uma fonte contemporânea. Provincianos de todos os géneros tinham-se estabelecido ali, ou iriam entrar e sair ao acaso de negócios comerciais ou oficiais. A classe servil incluía muitos bárbaros. Outro elemento estranho era o das unidades militares, as quais no século VI eram compostas ou por bárbaros (Alemães, Hunos, e outros), ou por alguns dos provincianos mais robustos, tais como os Isauros, os Ilírios e os Trácios. Diz-se que setecentos soldados foram aquartelados em casas de famílias de Constantinopla no reinado de Justiniano. Os monges sírios, mesopotâmios e egípcios, que falavam pouco, ou nem sequer falavam, grego, dirigiram-se em massa para a capital, para usufruir da protecção da imperatriz Teodora e impressionar os autóctones com as suas proezas bizarras de ascetismo. Os judeus omnipresentes ganhavam a vida como artesãos ou mercadores. Constantinopla fora fundada como um centro de latinidade no Oriente e contava ainda com muitos Ilírios, Italianos e africanos entre os seus residentes, cuja língua autóctone era o latim, também a língua do próprio imperador Justiniano. Além disso, várias obras da literatura latina eram produzidas em Constantinopla, como a famosa Gramática de Prisciano, a Crónica de Marcelino e o panegírico de Justino II do africano Corippus. Embora o latim fosse necessário para as profissões jurídicas e para certos ramos da administração pública, a balança pendia inexoravelmente a favor do grego. No final do século VI, como o papa Gregório, o Grande, afirma, não era fácil encontrar um tradutor competente do latim para o grego na capital imperial.
Em frente a Constantinopla estendia-se uma enorme massa de terra pertencente à Ásia Menor, que havia sido comparada a um pontão ligado à Ásia e a apontar para a Europa. As partes mais desenvolvidas sempre foram as orlas costeiras, especialmente a face oeste suavemente inclinada, favorecida por um clima temperado e guarnecida com cidades famosas. A faixa costeira do mar Negro é muito mais estreita e descontínua, enquanto a costa sul não tem, à excepção da planície de Panfília, nenhuma orla de baixa altitude. As áreas costeiras, salvo a zona montanhosa Cilícia (Isáuria), onde a cordilheira do Tauro se estende até ao mar, haviam sido helenizadas durante cerca de mil anos, e ainda antes do reinado de Justiniano. Ao longo da costa do mar Negro, o limite da língua grega correspondia à fronteira actual entre a Turquia e a ex-União Soviética.
A este de Trebizonda e Rizaion (Rize) viviam vários povos caucasianos, tais como os Ibéricos (Georgianos), assim como os Laz e os Abasgos (Abcazes), sendo que os dois últimos mal se aproximavam das missões cristãs. O Império também possuía uma base de operações helenizada na costa sul da Crimeia, enquanto o alto planalto da península da Crimeia era habitado por Godos. Muito diferente das áreas costeiras da Ásia Menor é o alto planalto no interior do país, onde o clima é tempestuoso e a terra, na sua maioria, imprópria para a agricultura. Na Antiguidade, como na Idade Média, o planalto tinha uma população pouco densa e a vida urbana era relativamente pouco desenvolvida. As cidades mais importantes situavam-se ao longo das principais estradas, tal como a chamada Estrada Real que ia de Esmirna e Sardes, via Ancira e Cesareia, até Metilene; a estrada que ligava Constantinopla a Ancira via Dorileia; e a estrada a sul que se estendia de Éfeso a Laodiceia, Antioquia na Pisídia, Icónio, Tiana e, através das Portas da Cilícia, até Tarso e Antioquia, na Síria. A composição étnica do planalto não havia sofrido nenhuma alteração assinalável durante os setecentos anos antes do reinado de Justiniano, consistindo num mosaico desconcertante de povos autóctones, assim como em enclaves de imigrantes há muitos fixados, tais como os Celtas da Galácia, os Judeus, que se haviam estabelecido na Frígia e em outras partes durante o período helénico, e grupos persas de origem ainda mais antiga. Parece que muitas das línguas indígenas ainda eram faladas no período bizantino antigo: a língua da Frígia provavelmente ainda existiria, pois aparece nas inscrições até ao século III d.C.; e o celta, por seu lado, seria falado na Galácia e na Capadócia, mais a este. Os rebeldes isáuricos, que haviam sido pacificados pela força das armas em 500 d.C., tendo muitos deles percorrido todo o Império como soldados profissionais e pedreiros, eram um povo distinto, que falava o seu próprio dialecto, muitas vezes excluindo o grego. No entanto, ao seu lado, na planície da Cilícia, o grego havia-se enraizado solidamente, excepto, talvez, entre as tribos do interior». In Cyril Mango, Bizâncio, O Império da Nova Roma, 1980, Edições 70, 2008, ISBN 978-972-441-492-8.

Cortesia de E70/JDACT

História dos Judeus Portugueses. Carsten L. Wilke. «A partir do século XII, a geografia do judaísmo lusitano foi profundamente afectada pela política de povoamento empreendida pelos primeiros reis de Portugal»

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No reino de Leão
«(…) Porém, os poderes cristãos reconheceram progressivamente a utilidade económica da minoria judaica. Judeus imigrados, cujos nomes árabes indicam a sua origem andaluza, são atestados desde o começo do século X na cidade e no reino de Leão. Tratava-se, na maior parte, de artesãos que trabalhavam o ouro, a prata, o cobre, o couro e a seda, segundo as técnicas desenvolvidas nos reinos muçulmanos da Andaluzia e da África do Norte. Outros importavam produtos de luxo provenientes desses países. Preenchiam também uma importante função de mediadores nas relações diplomáticas da época. Em 950, encontramos a primeira menção ao arrabalde judaico de Coimbra, explorando os seus habitantes vinhas e outros prédios rústicos suburbanos. Em 1018, os arquivos do capítulo de Coimbra mencionam um Crescente Hebreo, que assina como testemunha em dois actos: trata-se do primeiro judeu do território português que conhecemos pelo seu nome (traduzido do hebraico Tsemah). Em 1145, uma ordenação do concelho municipal impõe regras aos mercadores, tanto cristãos como judeus, que praticam o comércio de couros.

Nessa época, quando Coimbra era a capital de Portugal, o bairro judaico situava-se em São Martinho do Bispo, do outo lado do Mondego. Num documento de 1156 menciona-se ali uma via que vadit ad sinagogam. Parece que a escolha dos nomes e a liturgia de Coimbra se deixaram por vezes inspirar pela civilização da minoria. Apesar do conflito peninsular, os três grupos religiosos parecem ter desenvolvido, mesmo no quotidiano, relações de convivência. Sabemos, com efeito, que os judeus tinham o costume de convidar os seus vizinhos para o Shabbat e que certos cristãos se lhes juntavam de bom grado. Em 1050, o concílio de Coiança teve de relembrar que a presença nas orações de Vésperas, ao sábado, era obrigatória, e que -nenhum cristão ou cristã ouse ficar a banquetear-se em casa dos judeus.

Sob a protecção dos reis de Portugal (1147 - 1492). Geografia do judaísmo português
A partir do século XII, a geografia do judaísmo lusitano foi profundamente afectada pela política de povoamento empreendida pelos primeiros reis de Portugal independente, política à qual a maior parte das colónias judaicas medievais deve a sua existência. Em Coimbra e arredores, certos judeus cultivavam as terras do capítulo que tinham arrendado, possuindo por vezes as suas próprias aldeias, como essa Arecheixada Iudaeorum, que é mencionada em 1168. Os mercadores judeus cedo começaram a sulcar as montanhas». In Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.

Cortesia de E70/JDACT

História dos Judeus Portugueses. Carsten L. Wilke. «Expostos a essa investida da intolerância nos reinos muçulmanos, os judeus não sofriam menos a hostilidade dos cristãos do Norte, animados por um espírito de cruzada»

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No Gharb dos Árabes
«(…) Sob os Omíadas de Córdova (756 - 1031), a Lusitânia, ou antes, a província chamada al-Gharb, O Ocidente, nome que sobreviveu em Algarve, permanecia uma região periférica. Não possuímos informações concretas sobre a vida judaica nessa província, com excepção das relativas à cidade de Mérida. José ben Isaac Ibn Abitur, talmudista e poeta nascido em Mérida no início do século X, sabia ainda que o seu trisavô administrara a justiça criminal com tanta severidade que os malfeitores lhe chamavam Satanás, pois podia infligir todas as quatro formas talmúdicas de execução capital, competência que nenhum tribunal judaico alguma vez tivera fora da Terra de Israel. Além disso, uma pedra tumular descoberta em Mérida dá a conhecer um certo Rabbi Jacob ben Senior, que morreu com a idade de 63 anos, cheio de sabedoria, exercendo a arte dos médicos. A inscrição, datada da época omíada, emprega ainda um latim hispanizado.
As marcas bíblicas, diferentes da Vulgata, dão testemunho de uma cultura religiosa judaica em língua romana. Como os seus correligionários de Córdova, capital do califado, os judeus do Gharb permaneceram leais ao poder omíada durante as diferentes revoltas animadas por cristãos, muladis (hispano-romanos islamizados) e certos elementos do clero muçulmano. Tida por principal foco de sedição, Mérida foi duramente castigada em 875, e os seus habitantes foram expulsos, alguns para Badajoz, nova capital provincial, e outros para Córdova. É de supor que essa expulsão tenha estado igualmente na origem de uma dispersão pela província. A existência de pequenas comunidades no actual território português parece ser atestada por Ibn Daud. Falando de uma família erudita de Mérida, os Ibn al-Balia, descendentes do lendário fundador Baruch, esse autor faz alusão a uma epístola redigida em Sura, no Iraque, pela autoridade rabínica suprema da época, Saadia Gaon (882-942). Era endereçada às comunidades judaicas de Córdova, Elvira, Lucena, Baena, Osuna, Sevilha e à grande cidade de Mérida, bem como a todas as que estão na sua vizinhança. Vemos que Mérida se singulariza nessa enumeração pela sua dispersão em comunidades filiais.
Que comunidades eram essas? Encontramos menção a uma presença judaica aquando da reconquista cristã das cidades de Coimbra (878), Santarém (1147),Évora (1165) e Beja (1179). A mais antiga dessas comunidades judaicas parece ser a de Santarém. Notemos que estas quatro cidades luso-islâmicas habitadas por judeus são de fundação romana e estão todas situadas no interior do país, na proximidade da fronteira com a Cristandade. Em contrapartida, nenhuma fonte testemunha uma presença judaica em Lisboa durante a época islâmica.

No reino de Leão
Foi muitas vezes celebrada a tolerância dos regimes ibero-muçulmanos face às populações cristãs e judaicas. Essa tolerância não era unicamente inspirada pela generosidade. Na realidade, a sobrevivência do poder muçulmano dependia do apoio dessas populações, apoio que se encontrava já bem hipotecado na segunda metade do século IX. A partir dessa época, as lutas internas do califado de Córdova e o misticismo intransigente, que então se apoderou dos seus teólogos, impeliram numerosos cristãos a emigrar. Nas Astúrias, estes reforçavam os pequenos reinos que começavam a estender-se para sul. A emigração intensificava-se com cada nova vaga islamita, culminando com a invasão dos Almóadas em 1140, que proscreveram durante algum tempo o exercício dos cultos não muçulmanos.
Expostos a essa investida da intolerância nos reinos muçulmanos, os judeus não sofriam menos a hostilidade dos cristãos do Norte, animados por um espírito de cruzada igualmente feroz. Identificando os judeus com o inimigo muçulmano, os cavaleiros massacravam-nos no decurso das suas reconquistas». ». In Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.

Cortesia de E70/JDACT

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O Sebastianismo. José Van Den Besselaar. «Em nenhum cartapácio encontramos profecias bíblicas, apesar de serem as mais fundamentais de todas»

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«(…) Deixo de transcrever o título completo do Jardim Ameno, por ser muito longo. A transcrição chegaria a ocupar quase meia página. O cartapácio, tal como chegou até nós, deve ter por base uma compilação de profecias, organizada por um certo Pedreanes de Alvelos e dedicada por ele ao monarca Sebastião I no dia 20 de Abril de 1636. Mas o copista ampliou a colecção, enriquecendo-a de algumas alusões à aclamação de João IV. Como se lê na folha 126 do códice, concluiu-se o traslado no dia 1 de Janeiro de 1650, em Goa, o que não impediu o compilador de lhe acrescentar ainda alguns textos, entre eles, o do Juramento de D. Afonso Henriques. O livro que, muito provavelmente, já desde o início estava em poder dos jesuítas chegou às mãos de Henrique Carvalho, confessor do rei João V, que em 1741 o deu de presente ao colégio da Companhia de Gouveia. Aí foi sequestrado na época de Pombal como livro malicioso e pernicioso. Felizmente, escapou ao holocausto que Pombal mandou fazer de tantos livros sebásticos. O cartapácio transmite quase todas as profecias básicas da seita, se não sem defeitos, ao menos, de maneira satisfatória.
O Catálogo das Profecias tem uma história menos complicada. Foi organizado em 1809 por pessoa que nos é desconhecida. É uma colecção riquíssima, que abrange mais de 475 páginas; mas, infelizmente, a qualidade dos textos transcritos é muito desigual, e também encontramos nela algumas repetições. Este códice é para nós de grande importância, porque, além de transmitir quase todas as profecias básicas do sebastianismo, também conserva muito material que data da época de Napoleão.

As profecias bíblicas
Em nenhum cartapácio encontramos profecias bíblicas, apesar de serem as mais fundamentais de todas. Citam-nas com grande regularidade os tratadistas, mas os organizadores de compilações passam-nas em silêncio, sem dúvida porque elas se subentendem tacitamente e são consideradas de conhecimento geral. Os tratadistas alegam frequentemente alguns textos dos profetas Isaías e Ezequiel, que se referem à paz e harmonia universal do reino messiânico, tema por eles, geralmente, combinado com a restauração de Israel. Mais importante, porém, são os textos apocalípticos da Bíblia. O género apocalíptico, que floresceu entre 200 a. C. e 200 d. C., descreve em sonhos ou visões o combate decisivo entre Israel e os seus inimigos nos tempos derradeiros, e o triunfo final do povo de Deus. A descrição faz-se por meio de figuras simbólicas (Leão, Águia, Dragão, etc.), cujo significado vem a ser explicado, ou pelo próprio profeta, ou por um Anjo, ou por Deus. Entre esses sonhos cumpre salientarmos os do profeta Daniel (cap. 2 e 7), referentes aos quatro grandes Impérios que no Próximo Oriente se sucederam e que a exegese tradicional identificava, respectivamente, com o dos Assírios, o dos Persas e Medos, o dos Gregos (Alexandre Magno) e o dos Romanos. O primeiro sonho representava os quatro Impérios sucessivos na figura de uma estátua enorme, cuja cabeça era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de cobre, e as pernas de ferro, sendo de ferro também uma parte dos pés, mas de barro outra parte.
Desprendendo-se, de repente, duma montanha, uma pedra feriu e despedaçou a estátua, crescendo até se transformar numa grande montanha, que acabou por encher a terra inteira. Esta pedra deu, em Portugal, origem ao Quinto Império, e à Fifth Monarchy entre os metodistas da Inglaterra. Eis o comentário de Vieira: aquela pedra […], que derrubou a estátua e desfez em pó e cinza todo o preço e dureza de seus metais, significa um novo e Quino Império, que o Deus do Céu há-de levantar no Mundo nos últimos tempos dos outros quatro. Este Império os há-de desfazer e aniquilar a todos, e ele só há-de permanecer para sempre, sem haver de vir jamais por acontecimento algum a domínio ou poder estranho, sem haver de conquistado ou destruído, como sucedeu […] aos demais.
Comentando o segundo sonho de Daniel, o jesuíta interpreta-o no mesmo sentido. Merece também atenção especial o chamado Livro IV de Esdras, opúsculo apócrifo, redigido no fim do século I d. C. por um judeu piedoso e falsamente atribuído a Esdras, o organizador da comunidade religiosa dos judeus depois do cativeiro de Babilónia (século V a. C.). Este livro, apesar de não canónico, gozava também entre os cristãos de grande prestígio, a ponto de ficar incluído na edição da Vulgata Latina, à guisa de apêndice. Nele se encontram algumas visões apocalípticas (cap. 11-13). Uma delas fala de um Leão (o Messias), que porá termo ao reino injusto de uma Águia monstruosa (o Império Romano) e estabelecerá um império de justiça até ao Juízo Final. Escusado será dizermos que os sebastianistas viam no Leão e figura do Encoberto». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT

terça-feira, 20 de junho de 2017

O Sebastianismo. José Van Den Besselaar. «Os sebastianistas que se prezavam de certo grau de cultura e erudição empenhavam-se em coleccionar profecias»

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«(…) Na sociedade moderna, científica e tecnológica, a profecia já não funciona, faltando-lhe para tal as condições indispensáveis. Vem a ser substituída por análises científicas e processos técnicos, que invadem quase todos os terrenos da cultura hodierna e, dentro dos seus limites, funcionam com grande perfeição. Mas a ciência e a técnica têm os seus limites fatais: ambas são incapazes de dar sentido à vida dos indivíduos e das colectividades. Examinando de perto as ideologias modernas, que a muitos parecem objectivas e definitivas, descobrimos nelas também elementos míticos. Estes mostram muitas vezes ter mais força existencial e maior poder conquistador do que os componentes meramente racionais. Intellectus supponens fidem. Desde os primeiros séculos da era cristã se forjaram profecias sobre o rumo do processo histórico, mas que elas nunca pulularam tanto entre os cristãos como no fim da Idade Média.
Em Portugal, o profetismo teve o seu apogeu mais tarde, nos séculos XVI, XVII e XVIII. Os forjadores de profecias costumavam pô-las na boca de uma pessoa ilustre, já há muito tempo defunta. Este método tinha duas vantagens. Em primeiro lugar, a antiguidade do vaticínio conferia-lhe certa dignidade. Em segundo lugar, este método possibilitava aos autores iniciar os seus oráculos com o prenúncio de acontecimentos já sucedidos na época da redacção. E a verdade das profecias já cumpridas devia garantir a das profecias ainda por cumprir. A profecia propriamente dita continha geralmente, além de admoestação e imprecações, material de propaganda a favor de uma corrente religiosa, combinado com qualquer movimento político ou social. Aos modernos causa espanto o facto de que esses produtos fantasistas brotavam sem escrúpulos da mente de pessoas que decerto se consideravam a si mesmas como honradas e honestas e como tais eram consideradas por outros. Hoje, estamos espontaneamente inclinados a condenar tais falsificações. Mas não sejamos demasiadamente severos com aquela gente.
Diz um crítico francês: pour des esprits peu formés à l’observation, attribuant à ce qui est une importance bien moindre qu’à ce qui doit être, introduire dans les archives le document qui y manque malheuresement, n’est pas mentir, c’est au contraire rétabilir une vérité supérieures. Fosse isso como fosse, quase todas as profecias eram redigidas numa linguagem obscura e enigmática, prestando-se a mais de uma interpretação. E, assim como os documentos históricos dão lugar a uma constante discussão entre os estudiosos do passado sobre a sua correcta interpretação, assim as profecias criavam uma classe de exegetas que disputavam entre si o seu verdadeiro significado. Havia inúmeras disputas entre pessoas unidas na sua fé nas profecias, mas muito desunidas na sua interpretação. Os combatentes mostravam, por vezes, algum talento em discernir o ponto fraco da argumentação dos seus adversários, mas falhavam redondamente em provar, de maneira convincente, a sua própria opinião. Essas discussões fazem-nos pensar nos debates parlamentares entre conservadores e progressistas, que não convencem ninguém, a não ser quem já esteja convencido. Assim a luta continuava indecisa, sem vencedores finais nem derrotados definitivos.
Os combatentes gostavam de assumir ares de eruditos, mas a erudição que exibiam mal resiste a um exame crítico, porque toda ela estava baseada em premissas ilusórias. Acontece, porém, que também as ilusões fazem parte da História, chegando a ser, por vezes, motrizes mais pujantes do que as lucubrações de ordem puramente intelectual. Por mais eruditos e, em alguns casos, inteligentes que fossem os polemistas, quase nenhum deles levantava o problema que ao homem moderno parece fundamental: a autenticidade das profecias alegadas. Faltava-lhes a menor noção da crítica histórica, que na época do Renascimento nascera na Itália e, nos séculos XVI e XVII, estava a ser aperfeiçoada nas Universidades da Holanda e nas abadias e academias da França. O facto ilustra bem o isolamento cultural em que Portugal se encontrava.

Os cartapácios
Os sebastianistas que se prezavam de certo grau de cultura e erudição empenhavam-se em coleccionar profecias. Estas colecções, geralmente feitas sem nenhum critério científico, eram para eles o arsenal donde tiravam as armas para defender e propagar as suas opiniões e para combater as dos incrédulos e dissidentes. Muitos desses cartapácios chegaram aos nossos dias, alguns feitos por copistas ignorantes e cheios dos erros mais crassos, outros organizados com certo esmero e método. Dois deles merecem uma menção especial: o Jardim Ameno e o Catálogo das Profecias. Ambos primam por uma grande variedade de matéria profética, e, comparados com outros cartapácios, dão a impressão de transmitir um texto coerente e, dentro dos seus limites, fidedigno. Deles me servirei amplamente na transcrição dos textos sebásticos que pretendo reproduzir no presente trabalho». In José Van den Besselaar, O Sebastianismo História Sumária, Instituto Camões, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Biblioteca Breve /Volume 110, Livraria Bertrand, 1987.

Cortesia de CV Camões/JDACT

domingo, 18 de junho de 2017

O Fardo da Nobreza. Donna Leon. «Litfin acompanhou o movimento dos seus lábios enquanto ele olhava para o osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Então os homens saíram das sombras e o doutor teve um momento alucinatório ao perceber o contraste dos uniformes pretos contra o inocente pano de fundo rosa da macieira em flor. As botas lustradas marchavam sobre um carpete de pétalas recém-caídas enquanto se aproximavam dele. O que o senhor faz por aqui?, indagou o primeiro. Quem é o senhor?, perguntou o outro, mantendo o mesmo tom raivoso. Num italiano desajeitado em virtude do medo, ele começou: sou o doutor Litfin. Sou o..., e fez uma pausa em busca do termo mais adequado. Sou o padrone daqui. Os carabinieri tinham sido informados de que o novo proprietário era um alemão, e o sotaque parecia real o bastante, de modo que eles abaixaram as armas, mas mantiveram o dedo perto do gatilho. Litfin tomou o gesto como uma permissão para abaixar as mãos, o que fez bem devagar. Por ser alemão, sabia que as armas seriam sempre superiores a qualquer apelo a direitos civis, daí ter esperado que se aproximassem dele, o que não o impediu de voltar momentaneamente sua atenção para os três homens que permaneciam no terreno recém-arado, agora tão imóveis quanto ele, atentos aos carabinieri que se aproximavam e a ele próprio. Os dois policiais, de repente inseguros frente à pessoa capaz de arcar com as reformas da casa e do terreno, à vista de todos, aproximaram-se do dr. Litfin e à medida que o faziam o equilíbrio do poder alterava-se. Consciente disso, Litfin aproveitou a oportunidade.
O que significa tudo isso?, perguntou, apontando para o terreno e deixando que os policiais concluíssem por si sós se ele estava referindo-se ao relvado arruinado ou aos três homens que permaneciam do outro lado. Tem um cadáver no seu terreno, respondeu o primeiro polícia. Sim, eu sei disso, mas o que é toda essa..., ele buscou o termo apropriado, mas só conseguiu emitir um distruzione. As marcas do trilho dos pneus pareciam aprofundar-se enquanto os três homens as avaliavam, até que finalmente um dos polícias disse: fomos obrigados a atravessar o terreno. Embora fosse uma mentira descarada, Litfin optou por ignorá-la. Voltou as costas aos polícias e começou a caminhar em direcção aos outros três homens tão rápido que ninguém tentou detê-lo. Chegando ao final da primeira vala, bastante profunda, perguntou ao homem que parecia estar no comando: o que é isso? O senhor é o doutor Litfin?, perguntou o outro médico, que já tinha sido informado sobre o alemão, sobre quanto havia pago pela casa e quanto havia gasto até então com as reformas. Litfin confirmou e, como o outro demorava a responder, perguntou de novo: o que é isso?
Um homem de uns vinte anos, acho, respondeu o dr. Bortot, voltando-se em seguida para seus assistentes a fim de fazê-los continuar com o trabalho. Demorou um pouquinho para que Litfin se recuperasse da resposta grosseira, mas, quando o fez, passou sobre a terra revolvida e se posicionou ao lado do outro médico. Ficaram ali por um bom tempo sem dizer nenhuma palavra, lado a lado, observando os dois assistentes revolvendo a terra com vagar. Passados alguns minutos, um dos homens entregou outro osso ao dr. Bortot, que, com um rápido olhar, identificou-o e posicionou-o ao final do outro pulso. O mesmo posicionamento rápido se deu com os dois ossos seguintes. Ali, à sua esquerda, Pizetti, disse Bortot, apontando para um minúsculo artelho exposto no extremo oposto da vala. O homem a quem ele se dirigiu visualizou o objecto, agachou-se, apanhou-o e entregou-o ao médico. Bortot o estudou por um instante, mantendo-o delicadamente entre o polegar e o indicador, e depois se voltou para o alemão. Cuneiforme lateral?, perguntou.
Litfin acompanhou o movimento dos seus lábios enquanto ele olhava para o osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele. Litfin pegou-o nas mãos por um momento, depois olhou para os ossos espalhados sobre o plástico a seus pés. Ou intermediário, Litfin respondeu, mais à vontade com o latim que com o italiano. Sim, sim, talvez, Bortot replicou. Fez um aceno em direcção ao plástico e Litfin curvou-se para colocá-lo no fim do osso comprido que se unia ao pé. Ergueu-se e os dois olharam para ver o resultado. Ja, ja murmurou Litfin, e Bortot assentiu com a cabeça. Por mais uma hora os dois permaneceram juntos ao lado do sulco feito pelo tractor, revezando-se para apanhar os ossos dados pelos assistentes, que continuavam a passar o rico solo pela peneira. De quando em quando divergiam sobre um fragmento ou uma lasca, mas em geral concordavam na classificação do que lhes era passado pelos dois cavadores. O sol primaveril caía sobre eles. Ao longe, um cuco passou a emitir o seu canto de acasalamento, repetindo-o até que os quatro homens não lhe dessem mais bola. À medida que o calor aumentava, eles começaram a tirar os seus casacos, que acabaram todos pendurados nos galhos mais baixos das árvores alinhadas a um dos lados do terreno que delimitavam a propriedade». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT

O Fardo da Nobreza Donna Leon. «Olhou em volta, mas não viu nada além das três velhas árvores que tinham crescido em redor do poço em ruínas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) As notícias nunca se propagam de forma tão rápida numa cidade pequena quando dizem respeito a mortes ou acidentes, de modo que a história de que ossos humanos tinham sido encontrados no jardim da velha casa dos Orsez já se havia espalhado pelo vilarejo de Col di Cugnan antes da hora do almoço. Somente a notícia da morte do filho do prefeito num acidente de automóvel perto da fábrica de cimento, havia sete anos, tinha-se espalhado tão rapidamente; mesmo a história sobre Graziella Rovere e o mecânico só se tornara do conhecimento de todos após dois dias. Naquela noite, porém, os habitantes do vilarejo, todos os setenta e quatro, desligaram os seus televisores durante o jantar ou conversaram sem ligar para o que neles passava, tentando especular sobre o que teria acontecido e, o que era mais interessante, sobre quem poderia ser.
A apresentadora de casaquinho de pele da RAI 3, a loira que a cada noite usava óculos diferentes, foi ignorada enquanto informava sobre as últimas atrocidades na antiga Jugoslávia, e ninguém deu a mínima para a prisão do ex-ministro do Interior sob acusações de corrupção. Notícias assim já faziam parte da rotina; mas um crânio numa vala nos fundos da residência de um estrangeiro, isso sim era notícia. Até a hora de dormir, já se dizia que o crânio tinha sido esmigalhado pelo golpe de um machado ou de uma bala e que apresentava sinais de terem tentado dissolvê-lo em ácido. A polícia havia identificado, disso os habitantes tinham certeza, os ossos como sendo de uma mulher grávida, de um rapazinho e do marido de Luigina Menegaz, que havia partido para Roma doze anos antes e do qual nunca mais se ouvira falar desde então. Nessa noite, os moradores de Col di Cugnan trancaram as suas portas, e os que tinham perdido as suas chaves anos antes e nunca se haviam dado ao trabalho de procurá-las tiveram um sono mais agitado que os outros.
Na manhã seguinte, às oito horas, duas viaturas dos carabinieri chegaram à casa do dr. Litfin, passando por cima da relva recém-plantada para estacionar uma em cada lado dos dois longos sulcos arados no dia anterior. Somente depois de uma hora chegou o carro do centro da província de Belluno que trazia o medico legal daquela cidade. Ele não ouvira nenhum dos rumores sobre a identidade ou a causa da morte da pessoa cujos ossos jaziam sobre o terreno, dando início assim aos procedimentos que pareciam prioritários: colocar os seus dois assistentes para revolver a terra e descobrir o resto. Enquanto esse longo processo avançava, as duas viaturas dos carabinieri revezavam-se atravessando o agora destruído relvado e dirigindo-se até ao vilarejo, onde os seis policiais tomaram o seu café num café e começaram a perguntar aos habitantes se alguém tinha desaparecido. O facto de os ossos aparentemente terem ficado enterrados por muitos anos não os demoveu de sua decisão de indagar sobre eventos recentes, de modo que as suas investigações não levaram a nada.
No terreno, os dois assistentes do dr. Bortot tinham montado uma peneira bem afunilada e lentamente iam despejando baldes de terra através dela, abaixando-se de quando em quando para apanhar um osso pequeno ou qualquer coisa que parecesse ser um. À medida que os iam recolhendo, mostravam os ossos ao seu superior, que se tinha instalado na borda da vala, com as mãos para trás. Um grande plástico preto se estendia a seus pés, e à medida que os ossos iam sendo apresentados a ele, orientava os seus assistentes sobre como dispô-los; assim, juntos, iam lentamente montando o macabro quebra-cabeça. Uma vez ou outra, pedia a um dos homens que lhe passasse um osso, que avaliava por um momento antes de se inclinar para posicioná-lo em algum lugar do plástico. Em duas ocasiões mudou de ideia; numa delas ajoelhou-se para mover um osso da direita para a esquerda, noutra, com um suspiro abafado, deslocou outro osso da base do metatarso para a extremidade do que antes fora um pulso.
O dr. Litfin chegou às dez, tendo sido informado na noite anterior sobre a descoberta no seu jardim e então conduziu toda a noite vindo de Munique. Estacionou na frente da casa e saiu com dificuldade do carro. Entre ele e a casa viu as numerosas e profundas trilhas de pneus feitas sobre o novo relvado que ele havia cultivado com puro deleite três semanas antes. E logo viu os três homens no terreno mais adiante, quase tão distantes quanto os canteiros de mudas de framboeseiras que ele trouxera da Alemanha e plantara de imediato. Começou a cruzar o relvadodo destruído, mas de repente parou sob uma ordem gritada de algum ponto à sua direita. Olhou em volta, mas não viu nada além das três velhas árvores que tinham crescido em redor do poço em ruínas. Não tendo visto ninguém, retomou o andar em direcção aos três homens no terreno. Não deu mais que alguns passos antes que dois homens trajando os ameaçadores uniformes negros dos carabinieri saíssem debaixo da macieira mais próxima apontando metralhadoras na sua direcção. O dr. Litfin sobrevivera à ocupação de Berlim pelos russos e, embora isso tivesse sido mais de cinquenta anos antes, o seu corpo não esquecera a visão de homens armados em uniforme. Instintivamente, ergueu as duas mãos sobre a cabeça e ficou imóvel como uma pedra». In Donna Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-056-7.

Cortesia da CdasLetras/JDACT