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Com os olhos abertos, os braços sobre a roupa da cama, estendidos ao longo do corpo,
Lúcia vê pensamentos nos barrotes do tecto. A presença de Carolina sente-se na mossa
que deforma o colchão de palha. Às vezes, picada por dentro, nos sonhos, dá estremeções.
Regressa depois ao seu fôlego santo, justo. Lúcia tem pena que a irmã não chegue
com mais ganas de brincar; mesmo assim, escolhem sempre algum jogo silencioso
durante o serão, no canto do lume, ou já na cama, num silêncio ainda mais
exigente, até a respiração de Carolina se alongar, como um elástico da costura,
que se estica até lá longe e que regressa também devagar. Então, ficam dispostas
ao lado uma da outra, respeitando a geometria da cama. Glória dorme no seu próprio
colchão, encostada a outra parede, muito bem-comportada. Noutro quarto, Manuel ressona
com delicadeza. A chuva nas telhas é uma sombra que assenta sobre outra sombra,
pontos que pousam em toda a superfície do telhado. Há um mundo lá fora que se lança
de encontro a este mundo, a esta casa. Como uma corrente, de aço ou de rio, a voz
da mãe atravessa paredes. Não se distinguem essas palavras encadeadas, mas Lúcia
conhece-as pela música, habituou-se ao terço desde que nasceu, ainda antes de nascer.
A mãe não costuma rezar as contas a esta hora, mas esses costumes andam alterados,
há muita necessidade de oração. A mãe a fazer o sinal da cruz, ajoelhada a um canto
do quarto, e o pai, acabado de chegar da rua, sentado na cama, a descalçar as botas,
a descalçar as meias e a passar os dedos das mãos entre os dedos dos pés para caçar
torcidas de surro. Lúcia nunca viu essa imagem, mas é capaz de lhe distinguir até
os detalhes mínimos, a pequena volta que o pai faz com a ponta da sobrancelha, as
pálpebras da mãe convictas e opacas. E, por detrás de cada pensamento, a chuva
não pára, como o tempo não pára. Lúcia sabe que o tempo não pára. Cada gota de
chuva é uma palavra de Deus, resposta às orações permanentes. Ou talvez as gotas
sejam olhos de Deus, multidão atenta, empurrada pelo vento e pela noite. Ou então
está um Deus dentro de cada gota de chuva, e todos são o mesmo, e todos juntos têm
o tamanho de um só, pousam no telhado e acomodam-se, escorrem pelas paredes, cobrem
a casa inteira ou afundam-se directamente na terra porque têm pressa de voltar ao
céu». In José Luís Peixoto, Em Teu Ventre, Quetzal Editores, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-722-257-3.
Cortesia de QuetzalE/JDACT