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«(…) Embora fosse uma criança de roupas
esfarrapadas e sem maneiras, Daniel sempre ocupou um lugar especial no meu coração.
Se a nossa vida em conjunto tivesse sido um livro de aventuras, ele teria continuado
a praticar horas a fio, à luz da candeia, para na última página se tornar um escultor
célebre. Mas a vida, já o meu pai dizia, é, na melhor das hipóteses, um Jogo da
Papisa Joana numa mesa viciada, com o jogador que dá as cartas a esconder as melhores
nos folhos da manga. E, por isso, o meu amigo foi impedido de realizar essas maravilhas.
Se a sorte lhe tivesse sorrido, ou, mais importante ainda, se eu, John Zarco Stewart,
tivesse tido mais força de braços, também a minha vida teria lucrado com isso. Afinal,
muitas vezes só compreendemos o papel que tivemos nas pessoas que amamos volvidos
muitos anos.
Conheci Daniel em Junho de 1800, quando
tinha nove anos. Por essa altura, já eu descobrira Ás Fábulas da Raposa nas Ilhas
Britânicas. Nesse dia, saíra cedo, tendo devorado, para desagrado da minha mãe,
uma côdea de pão de trigo que barrara com mel e emborcado uma chávena de chá. O
meu destino era um laguinho, ou tarn termo escocês), como o pai lhe chamava, muito para lá das muralhas da cidade, na zona interior
coberta de árvores ao longo da estrada para Vila do Conde. Era um sítio magnífico
para observar todos os tipos de aves, especialmente logo depois do nascer do Sol.
Naquele tempo, e ainda hoje, eu era um grande amante das lindas criaturas de penas,
ar e luz, bem como um grande apreciador e imitador do canto das aves. Nessa altura,
tivesse eu podido suplicar a Deus um bico e asas, e certamente me teria transformado
numa dessas criaturas.
Já me estava a aproximar dos
degraus de granito ao fundo da rua que conduzem à zona ribeirinha, quando me
chegaram uns gritos roucos vindos de um beco ali perto. Correndo para lá a toda
a velocidade, fui dar com a dona Beatriz, uma lavadeira viúva a quem entregávamos
os lençóis todas as quartas-feiras, estendida nas pedras da calçada diante de casa.
Ganindo como um cão espancado, tinha os joelhos ossudos puxados para a barriga para
se proteger. Um bruto de peruca e libré de cocheiro agigantava-se
ameaçadoramente sobre ela, a cara contorcida de raiva. Sua cadela desleixada!, gritava
o homem, cuspindo as palavras. Sua marrana mentirosa e ladra! Marrana era uma
palavra nova para mim. Mais tarde, o meu professor explicou-me que tinha dois significados,
porca e judia convertida, um epíteto que me confundira, já que nunca ouvira
ninguém referir-se à dona Beatriz senão como uma boa alma cristã. De facto, fazia
apenas uma ideia muitíssimo vaga do que poderia ser um judeu, pois, embora a minha
avó me tivesse falado deles em duas ou três ocasiões, retivera apenas algumas
lendas em que feiticeiros judeus pareciam estar sempre a frustrar as acções de
reis execráveis com as suas rezas mágicas.
Agora, o malvado cocheiro terminava
a sua diatribe rosnando: vou vender-te para fazer cola, sua meretriz
preguiçosa! A seguir, depois de ter dado vários pontapés na dona Beatriz, agarrou-lhe
os cabelos ralos, preparando-se para lhe atirar a cabeça contra as pedras da
calçada. O coração batia-me violentamente no peito e comecei a sentir-me tonto.
Perguntei-me se deveria soltar um grito e se este conseguiria sobrevoar os telhados
que me separavam do meu pai e acordá-lo. Naquele tempo, estava convencido de
que, com o seu metro e oitenta, ele conseguia restabelecer a ordem no mundo». In
Richard Zimler, Meia-noite ou O Princípio do Mundo, 2003, Porto Editora, 2017,
ISBN 978-972-004-727-4.
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