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«(…) E enquanto se comeu, pouco
se falou. Uma coisa impedia, em parte, a outra, que um homem perante os
alimentos deve dedicar-lhes todo o respeito. Saciar a fome é a tarefa primordial
de quem se senta a uma mesa. Por isso, tudo se disse ali, naquela refeição, sem
ser proferida uma única palavra: foram cumprimentos, promessas de doações, rezas.
Finalmente, a abadessa chamou Manuel e teve com ele um particular, rondando
pelos jardins do claustro enquanto os companheiros aguardavam entediados, jâ do
lado de fora dos muros do convento. Durante os dias seguintes, Manuel assistiu
aos ofícios matinais naquela igreja, olvidado da caça e da montaria. Depois, lá
partia de encontro aos seus companheiros, meio estonteado. A abadessa sentia-se
honrada com a ilustre presença e Manuel não tirava os olhos de Isabel.
Madre, dizia ela à abadessa,
notais o olhar deste senhor sobre mim? Qual!, respondia-lhe esta, talvez
fugindo das suas perguntas. Nada vos fez! Gosta apenas de vossos lindos olhos azuis!
Nada mais. Mas tomai tento, tomai todo o tento que puderes para não cairdes na
tentação! A abadessa não queria hostilizar o rico senhor. Não cuidava que a
pequena Isabel tivesse a coragem de lhe desobedecer, a ela e à regra
conventual. Ela que tanto fizera para a acolher, afastando-a da família arruinada,
de uma mãe viúva e de dois irmãos sem préstimo... Que vida teria fora daqueles muros?
Nem dote tinha. Mas, nunca fiando, a abadessa retirou-a da fila da frente e certificou-se
de que os olhares de ambos não se voltavam a encontrar durante a missa.
Para Manuel, era com um gosto
desmedido que vivia esses dias de esconde, busca, segue e escapa, como se estivesse
perseguindo sem descanso um gamo selvagem. Sentia que a noviça lhe fugia e, por
isso, esta caça dava-lhe ainda mais prazer. E ela fugia-lhe por compreender que
não lhe resistiria. E assim andaram durante alguns dias. Duas semanas, porventura
menos, que lhes perderam a conta. Três moedas postas por Manuel na mão de uma
criada bastaram. Talvez tantas nem fossem necessárias... Recado dado, recado trocado,
foi marcado o encontro na tarde de um dia, o décimo desde que a vira pela primeira
vez. Isabel aceitou. Tinha intenção de o rechaçar, de lhe pedir que não mais ali
assistisse aos ofícios, que não olhasse para ela, que não enviasse recados, porque
não lhe responderia. A intenção era terminar com algo que nunca começara.
Mas não foi assim». In
Maria João Câmara, O Pecado e a Honra, Oficina do Livro, Leya, 2012, ISBN
978-989-555-830-8.
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