segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Gaivotas e mar no 31. Alexandre O'Neill. «O meu peito contra o teu peito, cortando o mar, cortando o ar. Num leito há todo o espaço para amar!»

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O Beijo
«Congresso de gaivotas neste céu
como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
vai batendo como a própria vida,
um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
de duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...»
Alexandre O'Neill, in “No Reino da Dinamarca”

O Amor é o Amor
O amor é o amor, e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor
e trocamos, somos um? somos dois?
espírito e calor!

O amor é o amor, e depois?
Alexandre O'Neill, in “Abandono Vigiado”

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Capa negra de saudade no 31. Alexandre Rezende. «Ai como é belo à luz da lua ouvir-se um fado em plena rua o cantador apaixonado trinando as cordas a cantar o fado»

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À meia noite ao luar
Alexandre Rezende
«À meia noite ao luar
vai pelas ruas a cantar
o boémio sonhador
e a recata donzela
de mansinho, abre a janela
à doce canção de amor.

Ai como é belo à luz da lua
ouvir-se um fado em plena rua
o cantador apaixonado
trinando as cordas a cantar o fado.

Dão-se as doze badaladas
ao ouvir-se as guitarradas
surge o luar que é de prata
e a recatada donzela
de mansinho abre a janela
vem ouvir a serenata».

Adeus à Sé velha
«Sentes que um tempo acabou
Primavera de flor adormecida
qualquer coisa que não volta, que voou
que foi um rio, um ar na tua vida
E levas em ti guardado
o choro de uma balada
recordações do passado
o bater da velha cabra

Capa negra de saudade
no momento da partida
segredos desta cidade
levo comigo p' ra vida

Sabes que o desenho do adeus
é fogo que nos queima devagar
e no lento cerrar dos olhos teus
fica a esperança de um dia aqui voltar
E levas em ti guardado
o choro de uma balada
recordações do passado
o bater da velha cabra

Capa negra de saudade
no momento da partida
segredos desta cidade
levo comigo p' ra vida».

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Sopa no 31. Brincando com a sopa de grão. «É sempre mau o caldo que muita gente tempera. Às vezes basta um prato de sopa para um homem ficar consolado, antes ou depois»

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«Como se sabe que, alturas de maior esforço, há necessidade de uma sopa mais substancial, aconselha-se uma sopa tradicional e de efeito garantido, como é a do gão. Vamos, pois, à sopa».

Sopa de Grão. Como fazer
«1. O grão deve estar de molho durante umas 12 horas.
2. uma vez demolhado, deita-o grão numa caçarola com água, acrescenta-se-lhe o sal e deixa-se ferver durante 2 ou 3 horas, conforme a qualidade do grão.
3. Quando este estiver cozido, junta-se o macarrão, a cebola às rodas passadas pelo azeite e pimenta.
4. Deixa-se ferver durante meia hora a três quartos de hora, rectificam-se os temperos e serve-se.

NOTA: Durante a confecção vai-se acrescentando água a ferver (a que for necessária), conforme se quiser uma sopa mais ou menos rala.

In Afonso Praça e Francisco Simões, Receitas afrodisíacas, Editorial Notícias, 1997, ISBN 972-460-862-X.

Cortesia de ENotícias/JDACT

Amizade no 31. Alexandre O’Neill. «(O nome de quem se ama  letra a letra revelado. No mármore distraído no papel abandonado)»

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Há Palavras que Nos Beijam
«Há palavras que nos beijam
como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
de imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
quando a noite perde o rosto;
palavras que se recusam
aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
entre palavras sem cor,
esperadas inesperadas
como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
letra a letra revelado
no mármore distraído
no papel abandonado)

Palavras que nos transportam
aonde a noite é mais forte,
ao silêncio dos amantes
abraçados contra a morte».


Amigo
«Mal nos conhecemos
inaugurámos a palavra amigo.


Amigo é um sorriso
de boca em boca,
um olhar bem limpo,
uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
um coração pronto a pulsar
na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
não o erro perseguido, explorado,
é a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
um trabalho sem fim,
um espaço útil, um tempo fértil,
amigo vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O'Neill, in “No Reino da Dinamarca”

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Coimbra no 31. Letras. «O adeus da despedida não dura mais que um minuto mas fica na minha vida como cem anos de luto».

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Adeus Sé Velha
Fernando Quintela
«Adeus Sé velha saudosa
com guitarras a rezar
minh’alma parte chorosa
no dia em que eu te deixar.

O adeus da despedida
não dura mais que um minuto
mas fica na minha vida
como cem anos de luto».

As mãos
Manuel Alegre
«Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema, e são de terra.
Com mãos se faz a guerra, e são a paz.

Com as mãos se rasga o mar. com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no ventre: verdes haspas.

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade».

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Poesia no 31. Miguel Torga. «Oh! maldição do tempo em que vivemos, sepultura de grades cinzeladas, que deixam ver a vida que não temos e as angústias paradas!»


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Dies Irae
«Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
a mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
sepultura de grades cinzeladas,
que deixam ver a vida que não temos
e as angústias paradas!»
Miguel Torga, in “Cântico do Homem”

Viagem
«É o vento que me leva.
O vento lusitano.
É este sopro humano
universal
que enfuna a inquietação de Portugal.
É esta fúria de loucura mansa
que tudo alcança
sem alcançar.
Que vai de céu em céu,
de mar em mar,
até nunca chegar.
E esta tentação de me encontrar
mais rico de amargura
nas pausas da ventura
de me procurar...»
Miguel Torga, in “Diário XII”

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domingo, 30 de outubro de 2016

O Segredo de Compostela. Alberto S. Santos. «O coração de Nartallo batia forte e sem compasso. Encheu o peito de ar, procurando acalmar as emoções. Era um homem simples, do povo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Ao longo dos tempos, um inquietante enigma paira sobre Santiago de Compostela: a quem pertencerão os restos mortais que ali se cultuam? Na verdade, Tiago Zebedeu foi o primeiro dos apóstolos a ser martirizado, em Jerusalém, onde foi sepultado. É o único cuja morte vem documentada na Bíblia, no ano 44. Contudo, oito séculos depois, nasceu na Galiza uma prodigiosa lenda, após as visões de um eremita que viu luzes estranhas num bosque, enquanto se ouviam cânticos de anjos (por volta do ano 820). O bispo Teodomiro de Iria Flavia (actual Padrón) visitou o lugar e encontrou uma velha tumba com restos humanos e atribuiu-os ao apóstolo Tiago e a dois dos seus discípulos. A lenda floresceu e, mais tarde, ampliou-se, com menção de que o corpo viajara miraculosamente num barco de pedra, guiado por anjos, ao longo de sete dias, até à referida Iria Flavia. Segundo a mesma, ali foi desembarcado e levado até à actual Compostela. Assim, durante quase oitocentos anos, existiu um vazio sobre a veneração do corpo de Santiago em Compostela. Porém, uma outra perturbante tradição, mais bem documentada, narra que, no final do século IV, chegou pelo mar a Iria Flavia o corpo do líder de um movimento carismático e espiritual com forte implantação popular na Hispânia romana e os de dois homens que o seguiam, decapitados pela sua fé. Dali, terão sido trasladados para o seu sepulcro, acompanhados por uma multidão de seguidores. O povo imediatamente atribuiu-lhes fama de santos e mártires e passou a fazer devoção, peregrinação e os juramentos mais solenes sobre os seus túmulos, invocando o seu nome. A força do movimento perdurou na Galécia até à chegada dos muçulmanos, apesar de sucessivos concílios e acções para o exterminar. Durante muitos séculos, o líder do movimento foi considerado um herege pela Igreja. Porém, as recentes descobertas dos seus escritos (em Würzburg, Alemanha) vieram pôr em causa a justiça da perseguição e do esquecimento a que foi votado durante cerca de mil e seiscentos anos. E reputados autores e historiadores passaram a perguntar-se: afinal, quem está sepultado em Compostela? E se o culto que ali se presta for o maior paradoxo da história do ocidente? Como começou esse culto? E outros a questionarem-se: qual o sentido das peregrinações a Compostela?
A noite caía nas graníticas ruelas de Santiago de Compostela, quando um andrajoso peregrino, curvado sobre um bordão, seguia em direcção à catedral. Era um homem sem idade, franzino, com uma verruga no queixo, e que percorrera milhares de quilómetros para chegar a tempo. A sua única companhia era um rafeiro que se lhe juntara em Bordéus. Vossa Excelência, acorde! A porta do quarto do arcebispo de Compostela estremecia com a força dos nós dos dedos do ofegante cónego Labin. O arcebispo Miguel ressonava, cansado de três noites sem dormir. Os vagos ruídos que lhe entravam no sono soavam-lhe a vozes do Além. Atrás delas, um exército de demónios preparados para o julgar pela obsessão que lhe aguilhoava o espírito. Senhor arcebispo, responda, por favor! Fora um homem desalentado que se deitara, logo a seguir às Completas. Rezara-as mecanicamente, sem prestar atenção ao sentido dos salmos. A cabeça estralejava de dor. Colocara tantas esperanças na descoberta que mudaria o rumo do arcebispado compostelano, e tudo em vão! Mandara escavar no meio do deambulatório, na cripta, na entrada, na base do Pórtico da Glória e na superfície do presbitério ao lado do Evangelho, à frente do altar-mor. Apenas descobrira desânimo e desalento. Os sonhos traziam-lhe a figura de José Canosa, o deão do cabido, escarnecendo de si num julgamento presidido por um juiz sem rosto. Senhor cardeal! Labin nunca o houvera feito, mas decidiu entrar de rompante no quarto, desesperado com a ausência de resposta. Soltem-me, eu não fiz nada! Sou eu! Acalme-se, por favor! O que se passa, Labin?! O que fazes aqui?!, perguntou, estremunhado, sentando-se na beira da cama e tirando o capucho de dormir. Encontrámos! Encontrámos um túmulo! Ao bater a meia-noite, os sinos da catedral repicavam no coração do zeloso arcebispo de Compostela. Ao quarto dia de nocturnas escavações, o que ouvia era, afinal, a voz de um anjo. Atordoado, vestiu-se à pressa. Não tardou a cruzar, em passos largos, a praça do Obradoiro, à frente de Labin. Parou, subitamente, com o aparecimento do vulto nocturno.
Ahhh…, que susto! Vá, chega-te para lá! Isto são horas para estar aqui?!, gritou o cardeal, ajeitando o barrete quadrado, da forma romana. Desculpe, acabo de chegar…, respondeu o decrépito peregrino, com sotaque estrangeiro. Com a pressa de entrar no templo, dom Miguel nem reparara que chovia copiosamente, muito menos se tinha apercebido do homem que lhe surgira à frente, no meio da noite e vindo do nada. Este parece que adivinhou o dia!, disse para Labin, recomposto e de sorriso aberto, enquanto subiam a passo largo a escadaria de acesso ao Pórtico da Glória. O cão cheirou as pernas dos clérigos e latiu. O romeiro coçou a verruga e acomodou o chapéu gasto de aba larga, completamente ensopado. Sim, adivinhei o dia…, comentou para o cachorro, enquanto lhe afagava a cabeça, já os dois clérigos seguiam para o destino. Sabes bem que sim, Diógenes. O bicho abanou a cauda e latiu de novo.
Os dois clérigos já não ouviram a resposta, nem prestaram atenção ao enigmático sorriso do peregrino que as sombras da noite escondiam. Entraram no templo esventrado em vários pontos e correram para junto do altar-mor. As vozes excitadas ecoavam ao fundo. Vislumbraram Antonio López Ferreiro que, juntamente com José Labin, estava encarregado da direcção das escavações, ao lado do mestre de obras Manuel Larramendi, do pedreiro Juan Nartallo e de um marquês galego, amigo do cardeal e que, a pedido deste, acompanhava os trabalhos desde o primeiro dia. O que aconteceu por aqui, amigos? Desta vez, senhor cardeal, parece que a sorte nos bateu à porta. Santiago fez mais um milagre, respondeu López Ferreiro. Os archotes deixavam adivinhar o brilho nos olhos daquele homem, tão interessado na arqueologia, antiguidades e tudo o que respeitasse à velha tradição compostelana.
Vá, Nartallo, conta lá ao senhor cardeal o que descobriste! Depois de retirarmos a lousa, debrucei-me no buraco e vi um túmulo que parece ser de pedra e tijolos, respondeu um homem moreno, baixo e ralo de cabelos, com as mãos e a cara sujas de pó. Está lá no fundo! Só um?!, perguntou o cardeal, apreensivo. Era suposto serem três… Hummm… este pode ser o primeiro. Ou, quem sabe…, dom Miguel coçava o queixo, enquanto pensava. Vá, toca a destapar isso e vamos ver o que há! O coração de Nartallo batia forte e sem compasso. Encheu o peito de ar, procurando acalmar as emoções. Era um homem simples, do povo, profundamente devoto do apóstolo, a viver um momento mágico ao lado de gente influente, que nele confiava para descobrir a mais sagrada relíquia do ocidente. Comovido, desceu pelo buraco, entrou terra adentro, com um candeeiro de petróleo na mão. Pousou-o junto ao túmulo, para lhe alumiar o sagrado labor. Com um martelo e um escalpelo tirou dois tijolos laterais do sepulcro. Os ladrilhos caíram no chão. Pegou no candeeiro e deu luz ao interior. Argggghhh…, gritou, recuando, como se tivesse apanhado um murro no estômago. O que foi?!, interrogou Ferreiro de imediato, na parte de cima. O pedreiro tossia e não conseguia articular as palavras. Nartallo! Larramendi enfiava a cabeça na abertura da laje. O que se passa, homem?! Um nervoso miudinho corroía os ventres dos clérigos». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.

Cortesia de PEditora/JDACT

A Profecia de Istambul. Alberto S Santos. «Maria puxou para si o esposo, encostando-se, ambos, a uma mesa, peito contra peito…»

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O banquete de Adrianópolis. Março de 1305. Constantinopla e Adrianópolis
«Antiga cidade da Trácia, actual Edirne, na Turquia europeia. Em 1361, 56 anos depois destes factos, Murad I conquistou-a aos cristãos bizantinos, transformando-a, então, em capital do Império Otomano.
O céu vermelho e tardio de Constantinopla, pintalgado por um bando de nervosos corvos pretos, que crocitavam com o vigor dos infernos, era a abóbada com que o cosmos cobria Roger de Flor e Maria da Bulgária, na despedida. Nunca pensei que amaria tanto um homem como tu! Maria alisava, com carinho, os cabelos negros e compridos do marido, afagados pela brisa que soprava o perfume primaveril do Bósforo. A jovem princesa casara com o comandante da Companhia dos Almogávares [do árabe al-mogavar, o que faz algaras ou corridas; feros guerreiros cristãos de fronteira que combateram os muçulmanos na Reconquista peninsular e, quando esta terminou, fora da Península Ibérica; a fama da Companhia de Almogávares aragoneses-catalães-valencianos estendeu-se até ao Oriente (Império Bizantino), onde foram protagonistas de uma epopeia sem precedentes, que durou entre 1302 e 1388; em permanente inferioridade numérica, alcançaram vitórias assombrosas sobre os exércitos turcos] por imposição do tio, o imperador bizantino Andrónico II Paleólogo. O que começara por ser uma condição, entre outras contratadas, para que ali viesse correr com os turcos, que metiam ferro e fogo nas cidades de fronteira, transformara-se em cúmplice e deleitada afeição. Meu Megas Duox (o quarto cargo em importância depois do próprio imperador dentro da alta hierarquia político-militar no Império Bizantino), não vás para Adrianópolis! Ouve o que te diz Berenguer: ele não confia em Miguel, e eu tenho um mau pressentimento... Roger acariciou-lhe com ternura a barriga crescida, onde se agasalhava o rebento já com mais de três meses de gestação, e beijou, meigo e carinhoso, a testa suada da esposa. A tensão e o temor emergiram-lhe, líquidos, à alva pele. Esta criança há de ser muito importante...! Muito importante, Maria...! Eu sei, meu amo. Haverá de ser baptizada segundo o rito romano! Atrás de um olhar triste, Maria lembrava-se que nascera ortodoxa, filha de Irene, a irmã do imperador, e do destronado João III Asen da Bulgária. Contudo, depois do casamento forçado com o católico Roger de Flor, convertera-se em segredo à religião do marido, uma prenda por tantos afectos. Toma cuidado, muito cuidado; sobretudo com os alanos. Diz-se que conjuram contra ti..., e, agora que te conheci, não quero mais perder-te..., nunca mais! O homem que chegara da Sicília para defender os bizantinos e aterrorizar os turcos era filho de Ricardo de Flor, falcoeiro do imperador romano-germânico Frederico II Hohenstaufen e de uma jovem de Brindisi, cidade da península italiana, onde nasceu e cresceu até aos oito anos. Morto o pai, caiu a família em desgraça. Roger foi, então, levado, com a bênção da mãe, por um barco templário, ao tempo fundeado no porto da cidade. E o meu primo Miguel..., esse tem tanta inveja e tanto medo de ti, meu esposo!..., avisou, com a face encostada ao peito moreno, e envolvida por uns braços musculados, habituados a tantas invictas lutas. E cobiça tudo o que te diz respeito... Eu sei disso, Maria. Mas eles sabem que eu sei defender-me... Roger compreendia a aflição da esposa. Mas, até àquele dia, transportara permanentemente consigo a intensa energia de um ente sobre-humano que conheceu as maiores potestades e as mais profundas misérias. Depois da derrota cristã, em S. João do Acre, o último bastião das conquistas cruzadas, Roger de Flor dirigiu-se para a Sicília, onde ajudou os reis aragoneses a libertarem-se da Casa de Anjou. Feito comandante da Companhia dos Almogávares, foi chamado a Bizâncio para ajudar o imperador Andrónico a rechaçar a perigosa ameaça turca que mordia os calcanhares da Nova Roma (Constantinopla, para além de Bizâncio e, mais tarde, Istambul, foi conhecida por Nova Roma; o bispo de Constantinopla tem a primazia de honra imediatamente depois do bispo de Roma, pois Constantinopla é a Nova Roma, segundo o Cânone III do Concílio de Constantinopla, do ano 381). À frente das milícias almogávares, derrotou e aniquilou, durante cerca de três anos, todos os exércitos turcos que lhe apareceram pela frente. As batalhas do Cabo Artaqui, de Aulax e do Monte Tauro tornaram Roger de Flor um mito vivo, quando, sempre com menor número de tropas, destruiu os inimigos e semeou o terror no seio dos estandartes do Islão. Mas ninguém conhecia o seu segredo... Ainda por cima, não te esqueças que os brutos mercenários alanos têm os poderosos e privilegiados genoveses como aliados... Maria puxou para si o esposo, encostando-se, ambos, a uma mesa, peito contra peito. E até o próprio Patriarca os protege! Ai, Roger, não me imagino agora sem ti...! Um olhar ternurento e suplicante cingiu Roger de Flor àquela que desposara». In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.
Cortesia de PEditora/JDACT

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «A princesa sempre noiva vai partir para muito mais longe que a saudade, para um lugar a que ninguém se atreve a disputar ninguém»

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O Outono da Saudade
«(…) Serei capaz de reconstituir a cena toda? Por Sua Senhoria, agora morta, talvez consiga. Ela deixara-me ir à Ribeira acompanhar um dos escanções emprestado por Santa Clara. Na verdade eu andava de pé atrás com uns ditos, queria mais apurar se tinham fundamento do que fazer companhia a um criado. Enquanto ele tratava da sua incumbência eu vagueava pelas salas públicas, depois mais perto das privadas, quando ouvi meias palavras, uma conversa em voz baixa. Escondi-me rente aos móveis, sob as mesas, entre reposteiros, até ficar mais perto da reunião. Sua Alteza e seus conselheiros falavam com um embaixador de Espanha, apontando lugares num mapa sobre a grossa mesa. E nomeavam Sua Senhoria...Estavam nervosos..., ousavam ir longe de mais para a varrer das preocupações da coroa... Tanto bastou para regressar a Santa Clara mais inquieto, mais alerta do que sempre, e esperar onde era preciso. No meio do temor, revestido de uma ínfima esperança de estar enganado, foi alta sorte ninguém sair ferido. Só na alma a Senhora Infanta sofreu a violência da revelação. Até hoje não sei se valeu a pena tê-la salvo de um fim prematuro, já que morrer seria o que lhe destinavam. Manteve-se desde então com a cabeça fora de água, num mar ainda mais tempestuoso pela consciência do perigo, e do mesmo modo ignoro se dessa vida retirou sobejo consolo. Pouco importa, agora que está a salvo das hipocrisias do mundo e dele só vai merecer a última e mais sentida homenagem do afecto anónimo. A princesa sempre noiva vai partir para muito mais longe que a saudade, para um lugar a que ninguém se atreve a disputar ninguém.
Começo a ouvir as primeiras manifestações de carinho dos súbditos humildes das redondezas, um clamor de vozes fora dos muros do paço. São elas que me puxam dos labirintos do tempo e me chamam às janelas fechadas, já protegidas por reposteiros negros. As folhas que enchiam os parapeitos, ainda ontem, reproduzem-se agora em tapetes densos debaixo das árvores, caem em continuada tristeza. Ao ruído de fora responde o palácio com profundo silêncio, como se ninguém mais o habitasse. Daqui a pouco hão de levar o corpo para a igreja, o cortejo a reclamar o carpir habitual, tão contra os desejos da Senhora Infanta que pedia que não chorassem. Vou-me arranjar. Nada mais me é consentido neste momento em que representantes da corte e familiares, tão afastados em vida, reclamam para si o privilégio de estar mais perto.
Vestido com o rigor que as poucas roupas me permitem, cruzo-me com as lágrimas de gente anónima à entrada do convento, da igreja repleta. Regateiras, mulheres do pote, sapateiros, soldadores, outros oficiais mecânicos, todo o luto da cidade e do reino estão ali representados. Pouco podem fazer, mas não será pouco deixarem seus ofícios, humildemente à espera da ordem para desfilar diante do corpo, uma humildade que em vez de acusar subserviência, como querem os nobres fazer crer, antes vinca o direito de lhe prestarem, tal como os outros, a última homenagem. São gente que ninguém conhece, de quem toda a gente precisa, gentes invisíveis de uma engrenagem sem a qual o reino ficaria parado. Choram as mesmas lágrimas que choram aias, criados, damas. Algumas casadas virão de longe com os esposos, chegarão mais tarde, conforme informaram o paço.
Vou até quase ao altar, não sem invocar um pouco de arrogância, coisa que nunca tive. Nobres europeus em missão no reino, gente próxima de El Rei Sebastião I, cavaleiros, cortesãos, repartem entre si o espaço disponível. Ali está Sua Senhoria, a infanta, que não queria ser chamada por nós de Alteza Real. Assim tranquila, com o pequeno terço de ouro e pérolas nas mãos postas, parece ainda mais bela, qual Fénix num ninho de flores brancas. É como se esperasse o mágico raio de sol filtrado pelos vitrais para deixar incendiar o corpo e depois, emergindo das cinzas, de novo com um sorriso sereno repetisse, em deleitoso sonho, as palavras do poeta pois tive dormindo o que acordado ter quisera... Há flores da época e espécies raras à volta do seu vestido de veludo, íntimos objectos minúsculos, delicadas redes que costumava usar no cabelo, um camafeu que lhe deixara sua mãe e venerava». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «Não, não... Estrangulo o mesmo grito angustiado que não sei de onde sai, aonde me leva. Sei apenas que ainda dói na ausência»

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O pulsar lento da vida
«(…) Foi esperada com muita ansiedade, depois acolhida com manifestações de júbilo. Repetiam-se pelas igrejas de Lisboa cerimónias de agradecimento por ter querido voltar, tão genuínas que lhe demonstravam quanto era amada pelo povo. Numa sagaz tessitura para justificar a decisão de não a deixar partir, a família real tinha conseguido a adesão do reino. só que o reino não aderia à ideia de reter a sua Infanta pelas mesmas razões da família real. Devotava-lhe um carinho respeitoso desde que nascera, mais ainda quando ficara sem a mãe, era esse sentimento puro que ditava a preocupação com o seu destino, e nenhum outro. Passados dias, no mês de Fevereiro de 1558, dona Leonor morria em Televuera, perto do ponto de encontro, um ano depois de João III ter deixado o mundo. Falou-se de um estado febril de progressão repentina, estranho. A rainha dona Catarina parecia acusar pouca emoção, mas dois dos outros irmãos não haviam de resistir muito tempo ao desgosto de a perderem. Carlos V já afastado em San Justo, num convento onde vivia como no fausto do paço, e Maria da Boémia e Hungria, partiam também para sempre, pouco depois. A Senhora Infanta andava mais misteriosa desde aquele encontro, embora não parecesse apanhada de surpresa, com a notícia. É como se esperasse aquela fatalidade, ainda que no íntimo alimentasse a esperança de um engano. Nem uma semana tinha vivido a mãe, depois que se abraçaram... Entrou-lhe uma tristeza imensa, igual vontade de se isolar no jardim ou na câmara privada onde as aias iam encontrá-la deitada, às escuras. Porem foi depurando a lembrança daquele momento único, e com a serena imagem foi vivendo os seus dias organizados como dantes. Uma única vez, depois de tantos anos, conseguira ver aquela por quem tanto chamara, em menina.
Ficava ainda mais rica, como sua única herdeira, contudo muito mais pobre de afectos verdadeiros. Dez anos de luto tinham-lhe arrancado as pessoas mais amadas: sobrinhos, damas, o padrasto, até o irmão de quem, apesar das diferenças e da mágoa, guardava respeitosa lembrança. E agora a mãe, que um acaso trouxera e tão pronto se fora. Mas havia ainda um luto diferente, feito de tristeza e ausência, que não sendo para sempre, como esperava, era um luto por demais pesado: o homem que conhecera em estranhas circunstâncias, aquele que lhe dissera o que tempo algum havia de apagar, vagueava muito longe do reino, do alcance da sua vista. Havia de voltar enfraquecido, quase indiferente, para mais lhe acentuar a dor... Se não rasuram o afecto, a solidão e a distância vão-no atenuando. Elas e demais desencontros que em seu redor se forjam, como se o caos fosse meticulosamente organizado com vista a um fim preconcebido. Portugal estava envolto em brumas de confusão e discórdia, em breve sem herdeiro directo a um trono ameaçado. Avó e neto não se entendiam quanto aos destinos do reino e à forma de reinar. Ela intolerante em suas convicções, mais fiel a Castela do que a Portugal. Ele não menos intolerante, com traços inquietantes de personalidade, a confusão mental aparente a fazer malograr as tentativas de casamento que lhe eram propostas. Sua Senhoria já somava os desgostos de uma vida inteira, não precisava de mais apreensões para se lhe extinguirem as forças. O poeta voltou, a pobreza de meios a endurecer-lhe os modos, a cavar maior distância. Até que caiu no leito para sempre e chegou ao fim, talvez ao princípio de tudo....

O Outono da Saudade
Depois de matar não mata, ainda, a morte. Sou eu que o digo, apesar do ânimo tão frio como a pedra donde me levanto, a manhã a raiar mais luminosa. Estou no lugar da saudade aonde sempre torno, às voltas com o sentido desta palavra com mil caras desconhecidas e ainda assim tão íntimas, que tanto acariciam como trespassam de suave dor. Sinto que traí a transparência do breve relato mental de há pouco, ao afastar certos factos que procuro rasurar, negando-os sempre às lembranças. Será possível que ainda me causem calafrios, depois de tanto tempo? A pretensão de olvidar não os impede de assomarem, como não evita que doam. E continuam a revisitar-me, a intervalos, em reposições daquela noite medonha. Tenho agora uma panorâmica do salão de recepções, discretamente iluminado, depois a chegada da Infanta com os cabelos soltos em camisa de pano alvíssimo, olhos muito abertos ora para mim ora para o guarda imobilizado no chão, sem poder dar crédito ao que via. E ainda a chegada das damas, das camareiras e criados, a nitidez de passos apressados a afastarem-se pelas escadas até ao pátio interior... Queria a persistência dos melhores momentos, mas são sempre fracturas de tempo como esta que sobressaem. Não querendo avisto o rosto dos homens antes tidos como piedosos, de repente façanhudos, em atitudes conformes à vontade de Suas Altezas, decerto mais da rainha. Sinto ainda restos do medo corajoso daquele dia quando os surpreendi e este corpo, então ágil, escapava por detrás do reposteiro, pelos corredores sombrios em silhuetas de sombra prolongadas pela luz hesitante dos pálidos brandões. Não, não... Estrangulo o mesmo grito angustiado que não sei de onde sai, aonde me leva. Sei apenas que ainda dói na ausência, sacudido por múltiplos pesadelos que não deixam descansar em paz e me fazem pingar suor». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

sábado, 29 de outubro de 2016

Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes. Luísa Trindade. «… onde pormenores do Paço da Ribeira são por diversas vezes replicados, a orientação da escada do Paço, na tábua do Arrastamento pelas ruas, surge invertida ou espelhada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A representação da Rua Nova dos Mercadores, todavia, não terá pretendido ser um retrato fiel do espaço a que alude já que os edifícios, fugindo ao plano linear, conformam uma ampla praça em U, ou, de forma mais precisa, um terreiro, cujo especial alongamento perspéctico foi já cabalmente explicado por Joaquim Caetano, como fazendo parte da solução encontrada por Gregório Lopes para corrigir os efeitos da forma enviesada como, no corredor estreito e curvo da Charola, o observador acedia ao quadro. A composição do Martírio de S. Sebastião seria assim o resultado da utilização livre de um conjunto de referências, algumas longínquas, outras coevas e familiares ao pintor, no que não seria, aliás, um recurso invulgar na obra de Gregório Lopes, como foi sublinhado por Joaquim Caetano ou Paulo Pereira: na Degolação de S. João Baptista, de cerca de 1536, fica bem patente a colagem de referências várias: a igreja do Santo Sepulcro, na sua iconografia genérica de já longa tradição, planta centrada, corpo superior rasgado por duas janelas, surge contaminada por dois edifícios portugueses de manifesto impacto à época: a Galeria do Paço da Ribeira, em Lisboa, e a parte superior da fachada da igreja da Graça, erguida por Nicolau Chanterene apenas um ano antes, em Évora, cidade onde a corte permaneceria no decorrer de quase toda essa década.
São citações livres e abreviadas, frequentes no grupo de pintores lisboetas de Quinhentos. Espaços e arquiteturas que se manipulam, sujeitando-os à composição geral e à máxima eficácia narrativa. Por vezes subtis e discretas. Veja-se como, no grupo de pinturas dedicadas aos Santos Mártires de Lisboa onde pormenores do Paço da Ribeira são por diversas vezes replicados, a orientação da escada do Paço, na tábua do Arrastamento pelas ruas, surge invertida ou espelhada; já na Chegada das Relíquias de Santa Auta ao Mosteiro da Madre de Deus, a veracidade da portada da igreja tem por contraponto a localização fictícia do Tejo, não à frente como verdadeiramente acontece, mas atrás, única forma de tornar visível essa proximidade ao rio, deixando simultaneamente livre o primeiro plano para a Santa e o cortejo processional. Mais sugestivo, por constituir justamente um estratagema idêntico ao que Gregório Lopes adopta, se bem que pela forma inversa, é a representação do Paço da Ribeira no fólio 25 do Livro de Horas dito de D. Manuel, de António de Holanda, certamente ajudado por outros pintores, porventura até o próprio Gregório Lopes, como foi já aventado. A figuração de toda a estrutura monumental do Paço, desde o torreão ao corpo norte onde se concentrava o grosso dos aposentos da corte, passando pela longa varanda, obrigou a um rebatimento horizontal, ou planificação das frentes construídas em ângulo recto. No martírio, ao contrário, um só plano surge dobrado duas vezes, assim configurando as três frentes do terreiro em U. Mas voltemos às duas pinturas, a portuguesa e a flamenga: a similitude entre ambas funciona como confirmação recíproca, sobretudo porque nada parece ligá-las entre si, cronologia, autoria ou comitente. O único elo é o tema: ambas remetem, ainda que uma com total protagonismo, outra de forma discreta, para um espaço real e concreto: a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, nos finais da década de 30 e ao findar do século XVI. Esta nova face da Rua Nova dos Mercadores levanta, porém, uma outra questão, pois desde a Exposição da Arte Sacra Ornamental, realizada em Lisboa em 1895, que a referida artéria tinha rosto: a representação do fólio 130 do Livro de Horas dito de D. Manuel, já aqui referido a propósito do Paço da Ribeira. A imagem integra o conjunto que ilumina o Ofício dos Mortos, de há muito tido como iconograficamente complexo, mais ainda após a profunda revisão operada por Vasco Graça Moura ao identificar, no conjunto, episódios de duas exéquias distintas: a trasladação do corpo de João II de Silves para a Batalha, em 1499, e as de Manuel I, ocorridas em Dezembro de 1521. Apesar das controvérsias geradas, um aspecto é consensual: os espaços urbanos que preenchem as tarjas representam arruamentos e edifícios de Lisboa. Na iluminura do fólio 129, o cortejo fúnebre de D. Manuel abandona o Paço da Ribeira pelas escadas que no ângulo davam acesso à sala grande e, desenhando uma curva de 180 graus, passa debaixo do Arco dos Paços, situado no extremo norte da extensa varanda. Daí, a procissão nocturna seguiria em direcção ao Mosteiro dos Jerónimos onde, de acordo com a vontade expressa do monarca, o seu corpo seria sepultado». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT

Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes. Luísa Trindade. «Era, de facto, o nervo comercial de Lisboa, nela se concentrando lojas de panos e sedas de todas as sortes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Rasgada no reinado de Afonso III e reformulada algumas décadas depois por Dinis I, que nela concentrou o grosso do seu investimento imobiliário, a Rua Nova, invulgarmente ampla e rectilínea, sobretudo no contexto de uma cidade onde a marca islâmica seria então ainda vincadamente presente, foi, durante toda a Idade Média, a milhor e mais prinçipall da dicta çidade, para usarmos o testemunho de Afonso V. O seu calcetamento, acto então ainda muito circunscrito e pouco comum, foi ordenado por João II que seguiu a obra com particular interesse, não só mandando fazer uma planta pyntada em papell de 6 metros de comprimento, a partir da qual ele e os seus colaboradores mais próximos discutiam o andamento da obra, como também encomendando a pedra na região do Porto, seguindo o modelo que João I usara na Rua Formosa, acréscimo imenso de esforço e de custo só justificáveis pela excepcionalidade da rua no panorama urbano de então
Hieronymus Münzer, João Brandão de Buarcos ou Damião de Góis são apenas alguns dos que a enalteceram por motivos diversos: pela largura ímpar, atingindo quase 9 metros; por ser ornada de ambos os lados de altos edifícios, todos de três e quatro sobrados, ou por nela se juntarem todos os dias, comerciantes de todas as partes e povos do mundo. Era, de facto, o nervo comercial de Lisboa, nela se concentrando lojas de panos e sedas de todas as sortes, tendas de especiarias de todo o género, boticas ou livreiros. Nos sobrados de cima, continuando a seguir João Brandão, viviam inúmeros mercadores, homens muito abastados e de grossíssimas fazendas, dinheiro e trato. O elevado número de escravos, que levou Baccio da Filicaia a caracterizar Lisboa como um jogo de xadrez, tantos os brancos quantos os negros, as chamadas negras de canastra que, transportando os despejos domésticos à cabeça, espantavam os visitantes, ou a forma como os portugueses de bem trajavam, com longas capas negras que lhes deixavam apenas os braços de fora, como relata Jan Taccoen em 1514, são uma nota dominante nesta, como noutras representações das zonas centrais e ribeirinhas da cidade de Lisboa
Todavia, mais do que uma análise detalhada da obra ou do ambiente cosmopolita que evoca, importa aqui referir como o ângulo representado, uma vista frontal do casario, permite, pela primeira vez, observar em toda a sua especificidade a famosa Rua Nova dos Mercadores. Os edifícios de quatro e cinco pisos, ou de três e quatro sobrados para usar a terminologia da época, com lojas e sobrelojas na galeria térrea formada por esteios de pedra e madeira, mais de cento e quarenta e nove de acordo com contagem do século XVIII; o revestimento parcial das frontarias com madeira, os chamados fromtaes de tavoado ou os ressaltos das fachadas, soluções construtivas tipicamente medievais; a diferente altura dos edifícios ou a tipologia das janelas, cerradas por portadas de madeira basculantes, muitas delas dotadas de pequenas aberturas centrais, destinadas a deixar passar alguma luz, são características que, em conjunto, descrevem uma realidade concreta, documentam o espaço e o tornam reconhecível. Curiosamente, todas essas características, sem excepção, marcam presença na tábua do Convento de Cristo, realizada cerca de quarenta anos antes. O cotejo entre ambas as pinturas permite-nos abandonar a ideia de Gregório Lopes ter representado uma cidade anónima, identificando, pelo contrário, a representação da cidade habitada pelo próprio pintor, recorde-se que residia em Lisboa, junto ao mosteiro de S. Domingos, a escassas centenas de metros da Rua Nova dos Mercadores. Identificação que me parece ter passado até agora despercebida mas que, verdadeiramente, só seria possível a partir da descoberta da tela flamenga, ocorrida há cerca de cinco anos atrás. Lisboa quinhentista, portanto. Essa cidade que, sobretudo entre o Rossio e a recém renovada frente ribeirinha, com passagem obrigatória pelas ruas Nova d’El Rei e Nova dos Mercadores corporizava, na década de 1530, um dos principais entrepostos comerciais de toda a Europa, onde diariamente fundeavam caravelas e carracas vindas de todas as partes do mundo conhecido Lisboa, cabeça do Império, podia certamente repartir o espaço narrativo da tábua com Roma, essa outra caput mundi. Síntese de dois espaços que, simultaneamente, figuravam de forma particularmente legível o percurso da famosa relíquia de S. Sebastião: de Roma a Lisboa». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A Amiga Genial. Elena Ferrante. «Quando finalmente me decidi, a princípio não via nada, sentia apenas um cheiro a coisas velhas e a DDT. Depois habituei-me ao escuro…»

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«(…) A nossa amizade começou no dia em que eu e Lila decidimos subir as escadas escuras que, degrau após degrau, lanço após lanço, iam até à porta do apartamento de dom Achille. Lembro-me da luz violácea do pátio, dos odores de um entardecer ameno de Primavera. As mães estavam a fazer o jantar, eram horas de ir para casa, mas nós deixámo-nos ficar, dando provas de coragem ao desafio, sem dizermos uma palavra. Havia algum tempo que não fazíamos outra coisa, dentro e fora da escola. Lila enfiava a mão e o braço inteiro na escuridão de uma boca de esgoto, e eu fazia o mesmo logo a seguir, com o coração aos saltos, esperando que as baratas não me subissem pela pele e que os ratos não me mordessem. Lila trepava até à janela do rés-do-chão da senhora Spagnuolo, pendurava-se da barra de ferro a que estava preso o arame da roupa, balançava-se e depois deixava-se cair para o passeio, e eu em seguida fazia o mesmo, embora com medo de cair e de me magoar. Lila espetava sob a pele o alfinete de segurança ferrugento que achara na rua sei lá quando, mas que guardava na algibeira como se fosse o presente de uma fada; eu observava a ponta de metal a abrir-lhe um túnel esbranquiçado na palma da mão, e depois, quando ela o retirava e mo estendia, fazia a mesma coisa. A certa altura lançou-me um olhar dos dela, firme, de olhos semicerrados, e dirigiu-se para o prédio onde morava dom Achille. Gelei de medo. Achille era o papão das histórias infantis, estava terminantemente proibida de me aproximar dele, de lhe falar, de olhar para ele, de o espiar, tinha de agir como se ele e a família não existissem. Em minha casa, e não só na minha, havia uma animosidade e um ódio para com ele que eu não sabia de onde vinham. Pela maneira como o meu pai falava dele eu imaginava-o corpulento, cheio de borbulhas violáceas, violento apesar do dom, que me sugeria uma autoridade calma. Era um ser feito não sei de que matéria, ferro, vidro, urtigas. mas vivo, vivo e com um bafo escaldante que lhe saía do nariz e da boca. Acreditava que mesmo que o visse só de longe me lançaria para os olhos qualquer coisa aguçada e ardente. E então, se cometesse a loucura de me aproximar da porta de sua casa, matar-me-ia. Esperei um pouco, para ver se Lila reconsiderava e desistia. Sabia o que ela queria fazer, esperava em vão que se esquecesse; mas afinal, não. Os candeeiros da rua ainda não se tinham acendido, nem as luzes das escadas. Das casas chegavam-nos vozes nervosas. Para acompanhá-la tinha de sair da luz azulada do pátio e penetrar no negrume da porta. Quando finalmente me decidi, a princípio não via nada, sentia apenas um cheiro a coisas velhas e a DDT. Depois habituei-me ao escuro e vi Lila sentada no primeiro degrau do primeiro lanço de escadas. Levantou-se e começámos a subir. Avançámos encostadas à parede; ela, dois degraus à frente, eu, dois degraus atrás e indecisa entre encurtar a distância ou deixá-la aumentar. Ficou-me a impressão do ombro a roçar pela parede esfolada e a ideia de que os degraus eram muito altos, mais altos do que os do prédio onde eu morava. Tremia. Cada ruído de passos ou de vozes era dom Achille que subia atrás de nós ou que descia ao nosso encontro com uma grande faca, daquelas para abrir o peito às galinhas. Sentia-se um cheiro a alho frito. Maria, a mulher de dom Achille, meter-me-ia na frigideira com óleo a ferver, os filhos comer-me-iam e ele chuparia a minha cabeça, como o meu pai fazia com os salmonetes». In Elena Ferrante, A Amiga Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, 978-989-641-479-5.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT

Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII). A necrópole visigoda e islâmica de Alporão. Marco Liberato. «… huma pedra Romana em que se lê o seguinte Antoniai M.S. Marcianai Anno IXXII, Memórias paroquiais»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) S. Martinho Bispo como informa o pároco da freguesia em 1758. Outra informação contida no mesmo documento reforça esta hipótese, uma vez que regista a existência no adro da igreja de huma pedra Romana em que se lê o seguinte Antoniai M.S. Marcianai Anno IXXII (Memórias paroquiais, volume 33). Obviamente, encaramos a proposta cronológica apenas como sinónimo de antiguidade, certamente induzida pelas características dos caracteres empregues na epígrafe. O que poderá significar que estamos perante uma lápide paleocristã, período em que a data da morte constava frequentemente da inscrição. Já no extremo NE da intervenção arqueológica foi identificado um conjunto de sepulturas cujas características demonstram que se organizou quando a presença visigoda na cidade era já uma realidade. Desde logo pela disposição das sepulturas, com uma irrepreensível orientação E-O, com a face orientada a nascente e organizadas em núcleos. Algumas foram ortogonalmente colocadas lado a lado, num esquema de disposição que poderá significar uma aglomeração com base em laços familiares, típica dos primeiros momentos da colonização germânica, impressão reforçada pela presença de ossários em algumas delas correspondendo, com elevada probabilidade, ao desejo de inumação junto de um parente anteriormente falecido. Ao nível do ritual, surgem indícios de que os indivíduos eram enterrados no interior de caixas de madeira, denunciadas pela presença de grandes pregos de ferro no registo arqueológico. Os adornos recolhidos permitem enquadrar pelo menos dois deles no ambiente cultural e na cronologia proposta: a inumação [640], sepultura [423], fazia-se acompanhar de dois anéis e no interior da sepultura [763], muito embora já não contivesse restos osteológicos, foram levantados dois brincos e uma pulseira em bronze, bem como um colar composto por várias dezenas de contas de âmbar com secção para-oval e corpo aplanado. Uma grande conta em vidro, com estrias exteriores, seria o elemento central desse adorno. O jarro de perfil piriforme proveniente da mesma sepultura, muito embora apresente dimensões mais reduzidas, oferece um paralelo evidente com materiais exumados na necrópole visigoda de Fuentes, Cuenca, datada entre os séculos VI e VII, bem como com a variante 3 da cerâmica funerária de El Ruedo, em Almedinilla. A sua morfologia aproxima-o também de recipientes recolhidos, na cidade de Mérida, em contextos que correspondem a despejos domésticos ocorridos entre os séculos VI e VIII. A presença de espólio votivo em sepulturas cristãs destes períodos foi já interpretada como uma forma de afirmação identitária dos arianos face à restante população cristã, o que colocaria alguns destes enterramentos numa data anterior à conversão de Recaredo ocorrida em 589, mas esta tese não é consensual entre os investigadores». In Marco Liberato, Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII), a necrópole visigoda e islâmica de Alporão, Revista Medievalista, Nº 11, 2012, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Arez da Idade Média à Idade Moderna. Ana Santos Leitão. «Era o caso do comércio, do artesanato e dos serviços. Muitos cavaleiros-vilãos e muitos peões baseavam nessas actividades…»


Cortesia de wikipedia e jdact 
«Arez é actualmente uma freguesia do Concelho de Nisa, pertencente ao Distrito de Portalegre, localizada na região do Alto Alentejo. Na descrição heráldica e na representação do seu Brasão consta a Cruz da Ordem de Aviz, no entanto foi possível verificar através da investigação para o tema da dissertação do Mestrado em História Regional e Local, e no sentido da identificação de um problema através de um símbolo heráldico, que de facto Arez foi Comenda da Ordem Militar de Cristo. E foi nesse âmbito que se centrou a respectiva investigação que deu origem ao referido estudo. A escolha foi, também, justificada pelo facto de não existir, ainda, nenhum estudo monográfico sobre a freguesia em questão, no âmbito dos estudos locais do Concelho de Nisa, apesar de já existirem referências históricas à sua existência a partir dos finais do séc. XII. A contextualização introdutória e genérica do espaço onde está inserida, foi assim neste caso, baseada no conceito de Fronteira, numa lógica de consolidação da formação territorial pelo povoamento. Teve particular importância o processo de senhorialização levado a cabo pela Ordem do Templo. Arez era uma terra senhorial, fazendo parte da Vigairaria de Tomar. Do plano de estudo constou, entre outros elementos, a análise da respetiva Carta de Foral, dada por Manuel I, em 20 de Outubro de 1517, em Lisboa. Assim como foi efectuada a consulta e análise da documentação referente aos Tombos da Ordem de Cristo e Chancelaria de Manuel I, entre outras, tal como foram elaborados estudos comparativos com as outras Comendas da região pertencentes à mesma Ordem. Outra base para o trabalho foi o levantamento da informação da Toponímia local, assim como da análise da documentação referente à Misericórdia de Arez, ainda existente. Pretendeu-se, na medida do possível, identificar uma evolução histórica da localidade desde o séc. XIII ao séc. XVIII, com base não apenas na preocupação em cartografar o espaço, mas caracterizando-a também através dos indicadores económicos relativos à demografia histórica, afim de enquadrar a sua  importância numa perspectiva local e regional.Arez situa-se numa zona de confluência de duas Ordens Militares, como o atesta o marco de divisão das terras das Ordens do Hospital e Ordem de Cristo, ainda hoje visível no lugar da Urra e como o comprova a documentação ainda no século XVII. Torna-se assim necessário uma introdução à noção do conceito de fronteira nos seus diversos aspectos afim de ser entendida numa lógica de consolidação da formação territorial pelo povoamento. A situação geográfica da vila de Arez que está implantada entre as vilas de Amieira, do Priorado do Crato, e Niza, da Ordem de Cristo, situada também numa região de fronteira com Castela, numa zona ainda de divisão das províncias da Beira e Alentejo e sobretudo numa zona de fronteira de territórios de duas Ordens Militares. Importa assim, uma abordagem à contextualização nacional e também à Ordem do Templo e mais tarde à Ordem de Cristo e ainda à Ordem do Hospital. 
A Contextualização Nacional
Nos meados do século XI, mais de metade do Portugal de hoje era ainda muçulmano, gradualmente, a ofensiva cristã foi reduzindo esse espaço, um século passado, quando o Tejo se alcançou definitivamente como fronteira, restavam ainda aos Mouros 37 300 Km2. Na década de 1230, pertenciam ao Islão menos de 15 300 Km2. Por último, o que ficou aos muçulmanos entre 1238 e a conquista final de 1249 não compreendia 2500 Km2.Em meados do século XII, o novo reino tinha uma área aproximadamente de 34 000 Km2. Era um país muito pequeno se comparado com o século XX, no entanto, era um território já razoável em extensão na Europa do século XII. Vários outros reinos se lhe podiam comparar, como fossem Aragão, Navarra, a maior parte das Taifas, Jerusalém, etc. Mostrava-se um país bastante homogéneo na sua parte fundamental, no que dizia respeito ao clima, à vegetação, características do solo, tipos e formas de povoamento humano, propriedades e tradição religiosa, política e administrativa. O povo falava a mesma língua e dialectos. A densidade de população variava consideravelmente de região para região. O coração do Condado Portucalense, ou seja a área entre os rios Lima e Ave, tinha a alta densidade de quase 2,5 paróquias por cada 10 Km2. Outro tanto se registaria no território entre o Lima e o Minho. O sul de Portugal constituía terra de fronteira, mais francamente povoada. A maior parte do povoamento era disperso, como o exigiam as condições do solo e do clima. Apesar de todas as invasões, razias e ocupações, a população jamais fora erradicada dos seus lares. Se havia poucos centros urbanos, existia em contrapartida, grande número de unidades rurais de exploração da terra por onde se espalhavam os habitantes. O aumento demográfico dos séculos XI a XIII chegou provavelmente a Portugal como a toda a Europa. À Igreja seguia-se imediatamente o rei na posse de propriedade territorial. O seu património fora adquirido por confisco, quer de terras fiscais (isto é, bens do fisco muçulmano) quer de terras cujos proprietários haviam desaparecido ou tinham sido mortos sem esperança de sucessão regular. A fortuna régia ainda incluía rendas e tributos sobre os seus novos súbditos. Mas os monarcas medievais eram prontos a dar o que tinham obtidos por direito de conquista. Uma terceira parte dos bens fundiários e móveis estava nas mãos da nobreza. Embora a terra fosse a principal fonte de riqueza e o seu trabalho a ocupação da esmagadora maioria, existiam mais origens de rendas e de património e outras actividades possíveis, sobretudo dentro dos principais núcleos populacionais. Era o caso do comércio, do artesanato e dos serviços. Muitos cavaleiros-vilãos e muitos peões baseavam nessas actividades o seu modo de vida e extraíam delas o seu estatuto social». In Ana Santos Leitão, Arez da Idade Média à Idade Moderna, Tese de Mestrado, Edições Colibri, Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2013, CM de Nisa. 

Cortesia de EColibri/JDACT

Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV. Maria Ângela Beirante. «O testamento de Maria Raimundo é aquele que, de longe, nos fornece maior riqueza informativa. Moradora e vizinha de Coruche…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Identificação das instituidoras
«(…) Para lá destas similitudes, encontramos, entre elas, várias dissemelhanças, que correspondem a personalidades distintas e traduzem diferenças de estatuto económico e social. Sendo embora ricas, as três donas usufruem de distintos níveis de riqueza. Comparando o volume de bens das capelas inventariados e medidos em 1535, é, de todo, visível que o primeiro lugar cabe à capela de Maria Raimundo. Além de duas casas e dum quintal, chamado da Palmeira, compreende várias propriedades rústicas: a herdade da Amoreira, com uns 60 ha, 9 courelas e um fio de terra, perfazendo uma área total de cerca de 100ha. Em segundo lugar, vem a capela de Maria Eanes Garavinha que possui um quintal na vila, uma vinha junto a Nossa Senhora-a-Nova que mede uns 3 ha e a herdade da Gravinha que tem cerca de 65 ha. A capela de Maria Simões é mais modesta. Detém uma casa na vila e algumas propriedades rústicas com uma área total de uns 21 ha: 5 courelas e 2 fios de terra, ou seja, pequenas courelas particularmente estreitas e alongadas que dificilmente excedem o meio hectare (em 1641, a herdade da Amoreira rendia anualmente 36 moios e 10 alqueires de pão terçado, cabendo à igreja 3/4 deste rendimento, segundo o costume das capelas de Coruche. A herdade da Gravinha rendia para a igreja 20 moios, enquanto a courela maior da capela de Maria Simões lhe proporcionava somente 3 moios). Traço comum a reter: todas as propriedades rústicas das três capelas se localizam nas férteis margens do rio Sorraia. Porém, os bens arrolados em 1535 não são propriamente coincidentes com os que se acham enumerados nos compromissos das capelas. Isto deve-se às diferentes competências dos administradores das mesmas, mas, mais do que isso, ao modo como foi concebida pelas instituidoras a gestão dos seus patrimónios. Se Maria Raimundo adquiriu por compra algumas propriedades para execução das suas disposições testamentárias, Maria Garavinha, pelo contrário, mandou vender 5 herdades e as vinhas da Várzea para cumprimento das suas últimas vontades. Quanto a Maria Simões, limitou-se a ordenar que os bens remanescentes ficariam para a sua capela, sem que, à partida, enumerasse tais bens. Os diferentes níveis de fortuna parecem ter as suas equivalências em diferenças de estado e de condição das referidas donas, que procuramos apreender através da leitura atenta dos seus testamentos. Conjugando estes dados com outros elementos informativos exteriores àquelas fontes, tentaremos, ainda que provisoriamente, identificar as personalidades em causa.
O testamento de Maria Raimundo é aquele que, de longe, nos fornece maior riqueza informativa. Moradora e vizinha de Coruche, era filha de Raimundo Martins e foi casada com dois cavaleiros cuja identidade desconhecemos. Era certamente uma dona de linhagem. É possível que as cortes de dona Maria e de Arnaco (sic) Raimundo, situadas no termo de Benavente e disputadas, em 1393, entre a coroa e a ordem de Avis, tenham pertencido a algum membro da sua família. Poderemos aventar a hipótese de que Maria Raimundo pertencia aos Riba de Vizela, família de ricos-homens que, graças à sua ligação à corte, no tempo de Afonso III, alargou a sua influência ao sul do país, nomeadamente ao concelho de Santarém, onde tinha propriedades. Pelo seu testamento, verificamos que é aparentada com os Barretos, pois arreda os descendentes de Urraca Pais, viúva de Afonso Barreto. Na realidade, esta família de cavaleiros está ligada aos Riba de Vizela e tinha igualmente bens fundiários no termo de Santarém (Urraca Domingues (Barreta) filha de um vilão rico de Santarém, casou com Fernão Martins Curutelo, personagem da corte de Afonso III, que vive em Santarém, junto do postigo do mesmo nome: é curioso notar que uma das propriedades mencionadas no testamento em análise é o herdamento do Curutelo, prova de que os campos de Coruche também foram um fruto apetecível para os nobres cavaleiros nortenhos). Pela mesma fonte, verificamos que Maria Raimundo era prima de Maria Martins, viúva de Aires Pais Bugalho. Este era irmão de Rui Pais Bugalho, cavaleiro e privado de Dinis I, que casou em Santarém com Urraca Eanes, de quem teve vários filhos, entre os quais Fernão Rodrigues Bugalho, alcaide de Lisboa. A nobilitação desta família parece decorrer dos cargos de açoreiro ou falcoeiro da corte. De proveniência nortenha, tal como as famílias anteriores, os Bugalhos acabaram por se radicar nas regiões meridionais, tendo como suporte a protecção e a privança régia. Um dos concelhos onde o seu património fundiário se localiza é o de Santarém, sendo provável que o próprio Rui Pais Bugalho seja proprietário no termo de Coruche (dado que duas propriedades adquiridas pela instituidora para a sua capela pertenceram a Rui Pais Agulha, é possível que, por erro de cópia, Bugalho tenha passado a Agulha)». In Maria Ângela Beirante, Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.

Cortesia de EColibri/JDACT

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV. Maria Ângela Beirante. «… tresladado em 1689 para o Tombo das Cappellas da Igreja de São João da Villa de Coruche que se conserva no Arquivo Distrital de Santarém»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O presente artigo parte da análise dos compromissos de três capelas instituídas, no século XIV, em duas igrejas da vila de Coruche, por três donas (todas de nome Maria) que pertenceram à elite local. Nos seus testamentos avultam dois grandes objectivos: assegurar a salvação das suas almas e perpetuar as suas memórias».

«As fontes que serviram de suporte a este trabalho são os títulos de três capelas instituídas, no século XIV, na vila de Coruche (sentido medieval de capela: instituição de sufrágios perpétuos por alma do instituidor, que obriga parte do seu património à igreja onde funda a capela, podendo, em alguns casos, ser acompanhada da edificação de um altar ou capela onde sejam celebrados os sufrágios). Os documentos originais que são os testamentos ou compromissos das capelas tiveram uma vida acidentada. Submetidos a cópias e públicas-formas durante os séculos XIV e XV, foram, em 1535, transcritos para o Tombo de todalas cappellas situadas na igreja de S. João, no qual foram introduzidos os autos de medição dos respectivos bens. Por sua vez, o tombo quinhentista foi tresladado em 1689 para o Tombo das Cappellas da Igreja de São João da Villa de Coruche que se conserva no Arquivo Distrital de Santarém (os documentos relativos à capela de Maria Eanes Garavinha foram, em 1621, integrados no Tombo 2.º das Cappelas da Coroa (TT), onde o testamento é parcialmente transcrito). É sob esta forma que os conhecemos e, ao tentarmos recuperar esta fonte histórica estamos conscientes dos riscos que a sua utilização comporta. De facto, as vicissitudes por eles sofridas deixaram marcas indeléveis nos textos conservados. São frequentes as adulterações de termos e os erros de cópia que suscitam, como é óbvio, incontornáveis dúvidas de leitura e de interpretação. Apesar de tudo, consideramos que o conteúdo essencial dos documentos se manteve e seria insensato da nossa parte rejeitarmos, por inúteis ou desnecessários, os textos que tantas gerações teimaram em preservar.

As igrejas de Coruche
Situada dentro dos antigos limites da diocese de Évora, Coruche foi, desde a reconquista cristã, afecta à ordem de Avis. Com efeito, logo em 1176, Afonso Henriques doa ao mestre Gonçalo Viegas, entre outros bens, o castelo de Coruche. Em 1181, o mesmo rei reafirma esta doação que não inclui o senhorio da vila. Este pertencia ao rei que, em 1182, concedeu carta de foral aos seus habitantes. Em 1248, existiam em Coruche três igrejas paroquiais: S. João, S. Pedro e S. Miguel, cujos padroados foram doados por Afonso III à ordem de Avis. A primeira situava-se na Praça, a segunda, no local onde ainda se mantém, enquanto a localização atribuída à igreja de S. Miguel não nos parece convincente (corresponderia à actual ermida de Santo António; noticia-se que a igreja de S. Miguel tinha caído e que, por memória da mesma, se erguera um altar em honra daquele orago na igreja de S. João; não parece lógico que se tenha reconstruído a velha igreja de S. Miguel para a dedicar a Sto. António, quando o próprio S. Miguel tinha de ser hospedado na igreja de S João; pertencendo o castelo à ordem de Avis e dada a preferência das igrejas desta invocação pelos espaços acastelados, admitimos, como hipótese, que a igreja de S. Miguel possa ter existido no castelo). Em 1250, pelo contrato celebrado entre a ordem e o bispo de Évora acerca dos direitos episcopais sobre as igrejas de Coruche, ficamos a saber que elas deviam pagar a terça parte dos seus rendimentos em pão, vinho, azeite, gado e dinheiro das oblações e ainda 24 maravedis de procuração cada uma. O reconhecimento destes direitos por parte da ordem de Avis nem sempre foi pacífico, mas em 1280 o próprio comendador de Coruche, João Rodrigues, com o mestre Simão Soares e o comendador-mor Egas Martins, em nome do convento de Avis, propõem-se meter o bispo e o cabido de Évora em posse das terças das igrejas, incluindo as morturas ou legados dos defuntos. Em 1320, as igrejas de Coruche auferiam ainda módicos rendimentos anuais, cabendo o primeiro lugar à igreja de S. João, seguida pelas de S. Miguel e de S. Pedro. Foi precisamente nas duas primeiras igrejas que as capelas em análise foram instituídas. Em 15 de Outubro de 1339, Maria Raimundo fazia testamento e fundava capela em S. João. Em 3 de Dezembro de 1348, Maria Simões ordenava capela na mesma igreja. Em 19 de Maio de 1394, Maria Eanes Garavinha realizava o seu testamento, instituindo capela em S. Miguel.

Identificação das instituidoras
Tentemos, com base nos seus testamentos e nos inventários dos seus bens, identificar estas três donas, por sinal todas chamadas Marias, que, na centúria de Trezentos, fundaram capelas em duas das igrejas de Coruche. Desde logo, o facto de instituírem capelas indicia-as como personagens relevantes da elite local (um mecanismo social de grande importância, destinado a preservar para a eternidade o prestígio e a fortuna de determinadas famílias). Depois, a circunstância de serem todas viúvas e abastadas e, ao que parece, sem filhos, faz delas potenciais benfeitoras das instituições eclesiásticas. De facto, parte considerável do património eclesiástico provinha de doações femininas, a ponto de alguns governos de cidades medievais estabelecerem a quantia máxima que as viúvas ricas podiam doar à Igreja, evitando assim que delapidassem seus bens em detrimento da família. Em Portugal, as conhecidas leis contra a amortização, que ultrapassavam, de longe, o âmbito das doações piedosas das viúvas, reflectem o mesmo conflito de interesses entre famílias nobres e Igreja, tomando os reis as primeiras sob a sua protecção». In Maria Ângela Beirante, Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.

Cortesia de EColibri/JDACT