segunda-feira, 17 de outubro de 2016

O Primo Basílio. Eça de Queirós. «Casou um bocado no ar! Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho»

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«Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse: tu não te vais vestir, Luísa? Logo. Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Noticias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutachet com largos botões de madrepérola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam cintilações escarlates. Tinham acabado de almoçar. A sala esteirada, alegrava, com o seu tecto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em Julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sesta, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao pé d’água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala dum rumor dormente. Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no tecto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia seguinte devia partir para Beja, para Évora, mais para o sul até São Domingos; e aquela jornada, em Julho, contrariava-o como uma interrupção, afligia-o como uma injustiça. Que maçada por um verão daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto dum cavalo de aluguer, por esses descampados do Alentejo que não acabam nunca, cobertos dum rastolho escuro, abafados num sol baço, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escuridão da noite tórrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entrar pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E só! Tinha estado até então no ministério, em comissão. Era a primeira vez que se separava de Luísa; e perdia-se já em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara a forrar de papel novo nas vésperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoços se prolongavam em tão suaves preguiças! E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando, com uma ternura, naqueles móveis íntimos, que eram do tempo da manhã; o velho guarda-louça envidraçado, com as pratas muito tratadas a gesso-cré, resplandecendo decorativamente; o velho painel a óleo, tão querido, que vira desde pequeno, onde apenas se percebiam, num fundo lascado, os tons avermelhados de cobre dum bojo de caçarola e os rosados desbotados dum molho de rabanetes! Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido à moda de 1830, tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beiço sensual; e sobre a sua casaca abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceição. Fora um antigo empregado do Ministério da Fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta. Nunca o conhecera, mas a mãe afirmava-lhe que o retrato só lhe faltava falar. Vivera sempre naquela casa com sua mãe. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar água quente; e ao voltar um dia do lausperene da Graça morrera de repente, sem um ai!
Fisicamente, Jorge nunca se parecem com ela. Fora sempre robusto, de hábitos viris. Tinha os dentes admiráveis de seu pai, os seus ombros fortes. De sua mãe herdara a placidez, o génio manso. Quando era estudante na Politécnica, às oito horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro de latão, abria os seus compêndios. Não frequentava botequins nem fazia noitadas. Só duas vezes por semana, regularmente, ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrásia, que vivia ao Borratem, e nos dias em que o Brasileiro, o seu homem, ia jogar o boston ao club, recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada e no seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado duma pontinha de febre. Jorge achava-a romanesca, e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental: os seus condiscípulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado Margarida Gautier, chamavam-lhe proseirão, burguês: Jorge ria; não lhe faltava um botão nas camisas, era muito escarolado, admirava Luis Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dívidas, e sentia-se feliz. Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as rajadas de vento na sua prolongação uivada e triste; sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lânguidas: estirava os braços com o peito cheio dum desejo; quereria enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frou-frou dum vestido! Decidiu casar. Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Passeio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus belos olhos castanhos muito grandes. No inverno seguinte, foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo amigo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma oscilação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos: casou no ar! Casou um bocado no ar! Mas Luísa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa; tinha cuidados muito simpáticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das cadeias do macho: e aquele serzinho louro e meigo veio dar à sua casa um encanto seno». In Eça de Queirós, O Primo Basílio, 1876, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-960-5.

Cortesia de Porto E/JDACT