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Ainda assim, contra as opiniões que lhe indicavam o trilho da guerra, ele preferiu
a diplomacia. Seguiram mensagens para o papa, requerendo a suspensão da cruzada
em nome do bom entendimento entre cristãos e dos direitos da coroa de Aragão.
Como o papa lhe negasse requerido tão cortês como discreto, voltou-se para o
estado-maior da cruzada, pedindo explicações e exigindo satisfação rápida duma folha
de encargos. Aguardou resposta, com ânimo favorável. Em vez de palavras
cordatas, chegaram porém notícias de novas atrocidades. Os cruzados
entretinham-se agora, nas invernias pirenaicas, a acender fogueiras para consumir
heréticos. Tinham a bênção fervorosa de Domingos Gusmão, o encarniçado pregador,
vestido de hábito branco de lã e capeirão negro, que fora o primeiro a chegar à
região em nome do papa. Pensavam assim limpar no fogo o escol da organização
cátara, ao mesmo tempo que aproveitavam para reduzir a cinzas a incómoda
aristocracia local. Eis o parto petulante e interesseiro do auto-de-fé. Em
Minerve foram consumidos no lume cerca de cento e quarenta relapsos. Em Carrés
mais sessenta e por fim em Lavaur, corria já a Primavera de 1211, acendeu-se a
mais gigantesca labareda que ainda se vira no Sul da Gália. Seiscentas pessoas
foram torradas nessa extraordinária queimada humana, que durou muitos e muitos
dias e consumiu, diz-se, metade da floresta do Limousin.
Chegaram
a Aragão os restos da combustão. Os frios ventos dos Pirenéus levavam-na sua
flor a enxudiosa exalação dos torresmos humanos. Um frémito de horror e de
repulsa correu as alcáçovas dos senhores, bateu as ruas das vilas e chegou às
pobres choupanas da gleba. Todos se perguntavam que vento de loucura tomara
conta dos bárbaros barões do Norte e dos desapiedados homens da Igreja para
assim tresvariarem. Por fim, quando os primeiros fugitivos confirmaram em
estado de choque os mais alucinados relatos, o tumulto do povo e dos senhores levantou-se
escandalizado e revel contra os cruéis padecimentos dos condados vizinhos. Nem
nas correrias dos almogávares e dos mouros se viu maldade tamanha, diziam
alguns. E assim era. O rei de Aragão azedou de vez com tal desatino. O avô,
Raimundo Berengário, tivera relações próximas com o imperador Frederico I, da família
Hohenstaufen. Escorara a restauração do sacro império romano-germânico e
lastimara a posterior vitória do papa Alexandre III sobre o monarca. De
qualquer modo a luta entre gibelinos e guelfos, entre partidários do império e
da teocracia papal, ficara em aberto, não tomando ponto com a derrota do Barba
Ruiva. A casa Hohenstaufen não desistia de vituperar os costumes do papa, de
invectiyar a sua sede desmedida de poder temporal, de exprobrar as violências
da Igreja, bastas vezes para bordar uma cortina que apagasse as suas. Defendiam
que o clero romano devia estar sujeito à jurisdição leiga e ao pagamento de
impostos à coroa. Eram então estes os pontos do desacordo entre império e
papado. A feroz perseguição dos valdenses por Roma, no tempo de Lúcio III, articulando
as primeiras disposições jurídicas para a instalação dum tribunal inquiridor da
fé, emprestara nova força às propostas do império, mostrando como à sua causa,
sufragada pelas correntes naturais, se adequava melhor ao movimento interno da
Cristandade que o projecto teocrático do papa. Timidamente se desenhou então no
horizonte um caminho laico de tolerância religiosa, capaz de trazer à comunhão
dos fiéis todos aqueles que haviam sido arredados à força.
A
casa de Aragão, pelos interesses que tinha no Mediterrâneo, pela experiência na
administração plural de judeus e muçulmanos em território peninsular, pela
proximidade das cidades do norte da Itália, fora desde início um dos principais
esteios do projecto gibelino dos Hohenstaufen. Ainda há pouco, o herdeiro
destes, o futuro Frederico II, escolhera para casar uma princesa aragonesa, Constança,
que enviuvara de Emerico da Hungria. Com tais passos, não escandaliza que o rei
de Aragão se enfurecesse com as insídias dos cruzados franceses. Logo que delas
tomou certeza, enviou um emissário a Simão de Monforte dando-lhe ordem de
retirada imediata. Uma grossa parcela dos condados da Gália meridional
pertencia-lhe e uma tal desordem significava um atentado aos seus direitos de
suserania. Caso o francês voltasse costas, era a guerra; Pedro de Aragão
declarava juntar-se aos heréticos, para expulsar os peões do rei de França
daquilo que tinha por seu. Nessa altura as pequenas cidadelas na posse da pequena
nobreza rural, a mais identificada com a pregação do clero cátaro, haviam sido
quase todas pilhadas e ocupadas, depois de sofrerem o duro assédio dos
cruzados. Parte da população estava em fuga e a resistência desorganizava-se, vítima
daquela onda impetuosa e feroz que tudo estraçava no caminho. Uma nova milícia,
baptizada de Confraria Branca, fora criada pelo terrível bispo cisterciense de
Toulouse, Folquet Marseille, para bater as matas e enforcar todo aquele que
fosse apanhado em fuga». In António Cândido Franco, Os Pecados da
Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT