Cortesia de wikipedia e jdact
«Uma névoa avermelhada cobria a cidade de
Florença. Desde o Forte da Basso até o de Belvedere, desde a Porta al
Prato até a Romana. Como se fosse sustentada pelas grossas muralhas
que rodeavam a cidade, uma cúpula de nuvens vermelhas mal dava passagem para as
luzes de um novo dia. Tudo era vermelho debaixo daquele vitral carmim, que
lembrava o grande vitral da igreja de Santa Maria del Fiore. A carne das
ovelhas abertas ao meio e penduradas no mercado, e a língua dos cães famintos
lambendo poças de sangue que caíam das vacas igualmente penduradas; as telhas
da Ponte Vecchio e os ladrilhos desnudos da Ponte alle Grazie; as
gargantas crispadas dos vendedores ambulantes e o nariz inchado de cada passante;
tudo era encarnado, mais vermelho do que normalmente já era. Um pouco além,
subindo pela ribeira do Arno até a via della Fonderia, uma modesta
procissão arrastava os pés entre as folhas secas da parte mais escondida do
velho cemitério. Longe dos mausoléus monumentais, do outro lado dos pinheiros
que separavam os túmulos das grandes famílias do terreno baldio, semeado de
cruzes tortas e lápides deformadas, três homens, curvados mais pelo cansaço do
que pelo pouco peso do tosco caixão que de forma desequilibrada levavam,
lentamente avançavam até à cova recém-aberta pelos coveiros no chão. Quem
comandava o cortejo, carregando sozinho a parte dianteira do caixão, era o
mestre Francesco Monterga, talvez o mais conhecido pintor protegido pelo
mecenato pouco generoso do duque de Volterra. Atrás dele caminhavam, um de cada
lado, seus próprios alunos, Giovanni Dinunzio e Hubert van der Hans. E fechando
a procissão, com os dedos cruzados junto ao peito, iam dois religiosos, o abade
Tomasso Verani e o prior Severo Setimio. O morto era Pietro della Chiesa, o
discípulo mais jovem do mestre Monterga. A Compagnia della Misericordia havia
custeado o pobre enterro, uma vez que o defunto não tinha família. De facto,
tal como demonstrava seu sobrenome, Della Chiesa, ele havia sido deixado nos
braços de Deus, poucos dias depois de nascer, quando o abandonaram na porta da
igreja de Santa Maria Novella. Tomasso Verani, o padre que encontrara o pequeno
corpo, roxo de frio e muito doente, e que o baptizou, era o mesmo que agora,
dezasseis anos depois, com uma voz baixa e monocórdia, lhe desejava um rápido
caminho até ao Reino dos Céus. O caixão era feito de madeira de álamo, e por
suas frestas já começava a escapar o cheiro nauseante da decomposição que se
acelerava há dias, de tal forma que o outro religioso, com um olhar
autoritário, ameaçou o padre, para que deixasse de lado os trechos menos
importantes da oração. Foi uma oração rápida que terminou com um prematuro amém.
Imediatamente, o prior Severo Setimio mandou que os coveiros terminassem o
serviço. A julgar pela expressão do seu rosto, era possível dizer que Francesco
Monterga estava profundamente desconsolado e incrédulo frente ao terrível espectáculo
que a decidida indiferença dos coveiros lhe mostrava. Cinco dias depois de seu
inesperado desaparecimento, o cadáver de Pietro della Chiesa havia sido
encontrado fora dos muros da cidade, num depósito de lenha pouco distante da
vila onde viviam os servidores do Castelo Corsini. Tinha a aparência da
escultura de Adónis violentamente derrubada de seu pedestal. Estava
completamente nu, rígido e virado de bruços. A pele branca, tensa e cheia de
hematomas dava-lhe um aspecto semelhante ao mármore. Em vida, tinha sido um
jovem de uma beleza frágil, e agora, seus restos endurecidos lhe conferiam uma
formosura macabra, ressaltada pela tensão de sua pouca musculatura. Os dentes
haviam ficado cravados no chão, mordendo a terra húmida; tinha os braços
abertos em cruz e os punhos fechados, numa posição de defesa e de resignação. A
cara estava enterrada numa poça de seu próprio sangue, e um dos joelhos estava
dobrado sob seu corpo. A causa da morte era uma pequena ferida de arma branca
que cruzava seu pescoço do centro até a jugular. A pele do rosto havia sido
retirada, deixando expostos os ossos. O mestre Monterga teve muitas
dificuldades para reconhecer nesse cadáver inchado o corpo de seu discípulo,
mas, por mais que tivesse resistido a convencer-se de que aqueles restos eram
de Pietro della Chiesa, as provas eram irrefutáveis. Francesco Monterga o
conhecia melhor que qualquer outro e, com muita dor, admitiu que a pequena
cicatriz no ombro direito, a mancha alongada nas costas e os dois sinais na
nádega esquerda correspondiam, sem dúvida, às marcas particulares de seu
discípulo preferido. E, para afastar qualquer dúvida, suas roupas haviam sido
encontradas espalhadas pelo bosque. O estado de decomposição em que se
encontravam os restos era tão avançado que nem foi possível fazer um velório
com caixão aberto. Não apenas por causa do mau cheiro que exalava o corpo, mas
porque, além disso, a rigidez do corpo era tanta que, para colocá-lo no caixão,
fora preciso quebrar os braços, que pareciam decididos a permanecer abertos. Naquele
momento, o mestre Monterga, com o olhar perdido em um ponto impreciso, muito
além do fundo da cova, recordava o dia em que havia conhecido aquele que seria
seu mais fiel discípulo». In Federico Andahazi, O Segredo dos
Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
Cortesia de L&PM
Pocket/JDACT