segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O Segredo do Anel. Kathleen McGowan. «A intensidade do calor, apesar da brisa que soprava, não combinava com a época do ano, o final do Verão. Ela protegeu-se com o guia, da claridade forte, consultou-o e olhou ao redor…»

jdact e wikipedia

Marselha. Setembro de 1997
«(…) O corpo estava no mar havia bastante tempo, sacudido pelas ondas e roído pelos famintos habitantes das profundezas. Os investigadores ficaram tão impressionados com as precárias condições do cadáver que atribuíram pouco significado ao dedo desaparecido numa das mãos. Uma autópsia, arquivada mais tarde pela burocracia, ou talvez por algo mais, limitou-se a registar que o dedo indicador da mão direita fora deceptado.

Jerusalém
A antiga e movimentada Cidade Velha de Jerusalém fervilhava com a frenética actividade de uma tarde de sexta-feira. A história impregnava o ar seco, enquanto os fiéis se apressavam a caminho de suas casas de culto, em preparativos para os respectivos sabás. Os cristãos vagueavam pela Via Dolorosa, a Via Sacra, uma série de ruas sinuosas, calçadas com pedras, que fora o caminho para a crucificação. Fora por ali que um Jesus Cristo açoitado e sangrando, suportando no ombro uma pesada cruz, seguira para seu destino divino, no alto do Gólgota. Naquela tarde de Outono, a escritora americana Maureen Paschal não parecia diferente dos outros peregrinos, que acorriam dos cantos mais distantes e variados do mundo. A brisa inebriante de Setembro misturava o aroma de shwarma, o prato de galinha desossada crepitante, com os cheiros de óleos exóticos que exalavam dos mercados antigos. Maureen circulava pelo impacto sensorial que era Israel, com um guia de viagem de uma organização cristã, comprado pela Internet. O guia detalhava a Via Sacra, com mapas e instruções para encontrar as catorze estações do caminho de Cristo. Quer um rosário? É madeira do Monte das Oliveiras. Precisa de um guia? Nunca se vai perder. E mostrarei tudo que quiser. Como a maioria das ocidentais, ela era obrigada a se esquivar dos avanços indesejáveis dos mercadores das ruas de Jerusalém. Alguns eram insistentes em seus esforços para oferecer mercadorias e serviços. Outros apenas sentiam-se atraídos pela mulher pequena, de cabelos ruivos compridos e pele clara, contraste singular naquela parte do mundo. Maureen repelia seus perseguidores com um Não, obrigada polido, mas firme. Depois, ela desviava o olhar e se afastava. Seu primo Peter, especializado em estudos do Médio Oriente, preparara-a para a cultura da Cidade Velha. Maureen era meticulosa em seu trabalho e estudara a cultura de Jerusalém com todo o cuidado. Até agora, estava dando resultado. Maureen era capaz de desviar sua concentração o mínimo, enquanto se detinha na pesquisa, observando e anotando detalhes no caderninho de capa de couro. Ficara comovida até as lágrimas pela intensidade e beleza da Capela da Flagelação franciscana, erguida há oitocentos anos no lugar em que Jesus sofrera as vergastadas. Uma reacção emocional profunda e inesperada, já que Maureen não fora a Jerusalém como peregrina, mas como observadora investigativa, uma escritora em busca do cenário histórico acurado para a sua história. Ao procurar uma compreensão maior dos acontecimentos da Sexta-feira da Paixão, Maureen abordara a pesquisa com a cabeça, não com o coração. Visitou o Convento das Irmãs de Sion, antes de passar para a vizinha Capela da Condenação, o lendário local em que Jesus recebera a cruz, depois da sentença de crucificação proferida por Pôncio Pilatos. Mais uma vez, o inesperado aperto na garganta foi acompanhado por um sufocante sentimento de angústia, enquanto percorria o prédio. Esculturas em baixo relevo, em tamanho natural, ilustravam os eventos de uma manhã terrível, dois mil anos antes. Maureen ficou imóvel, paralisada, por uma cena vivida de humanidade atormentada: um discípulo que tentava proteger Maria, a Mãe de Jesus, poupando-a da visão do filho carregando a cruz. Lágrimas arderam no fundo dos seus olhos enquanto contemplava a imagem. Era a primeira vez na vida em que pensava naquelas personagens históricos como pessoas reais, seres humanos de carne e osso, sofrendo por uma fatalidade quase inconcebivelmente dolorosa. Como se sentisse um pouco tonta, Maureen estendeu a mão para as pedras frias da parede antiga, a fim de se firmar. Fez uma pausa para se concentrar, antes de retomar as anotações sobre as pinturas e esculturas. Continuou em seu caminho, mas as ruas da Cidade Velha eram um autêntico labirinto. Podiam ser enganadoras, até mesmo para quem tinha um mapa meticuloso. Os pontos de referência eram quase sempre antigos, desgastados pelo tempo, e podiam passar despercebidos, com a maior facilidade, por pessoas que não conheciam seu paradeiro. Maureen esboçou uma imprecação silenciosa ao compreender que se perdera de novo. Parou ao abrigo do vão de porta de uma loja, evitando o sol directo. A intensidade do calor, apesar da brisa que soprava, não combinava com a época do ano, o final do Verão. Ela protegeu-se com o guia, da claridade forte, consultou-o e olhou ao redor, tentando-se orientar. A Oitava Estação da Cruz deve ser em algum lugar aqui por perto, murmurou. Maureen tinha um interesse específico pelo local, na medida em que seu trabalho concentrava-se na história relacionada com as mulheres. Numa nova consulta ao guia, ela leu a passagem dos evangelhos relacionada com a Oitava Estação: Muitas pessoas o seguiam, inclusive mulheres que lamentavam e choravam por ele. Jesus disse: não chorem por mim, filhas de Jerusalém. Chorem por si mesmas e por suas crianças. Maureen foi surpreendida por uma batida firme na vitrine, por trás dela. Virou-se, esperando deparar com o olhar de um proprietário furioso por estar bloqueando a entrada da loja. O rosto que a fitava do outro lado, entretanto, exibia uma expressão radiante. Um palestino de meia-idade, vestido de maneira impecável, abriu a porta da loja de antiguidades fazendo sinal para Maureen entrar. Quando ele falou, foi num inglês correcto, temperado pelo sotaque: entre, por favor. Seja bem-vinda. Sou Mahmoud. Está perdida?» In Kathleen McGowan, O Segredo do Anel, Editora Rocco, 2006, ISBN 853-252-096-0.

Cortesia de ERocco/JDACT