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«(…) Vi pontos
vermelhos à frente, depois ceguei. Comecei a tremer e, quase sem querer, as
minhas mãos procuraram coisas que pudessem destruir. A Leocádia recuou, já
sabia o que ia acontecer. A mesa onde estavam as peças quase prontas voou. A
cadeira foi atrás. Tudo pelos ares, desde os aventais do pai às canecas onde
bebia vinho. Ninguém se mexeu. Nem mesmo quando as paredes ficaram cobertas de
vinho e água ou quando o martelo caiu da mão do pai, cansado de suster o mundo
entre os dedos.
João tinha o
temperamento explosivo como o meu. Por isso, entendíamo-nos. Numa noite, uma
noite de tempestade, chegou agitado. Martinho Barros, o frade a quem el-rei se
confessava, havia alertado para os perigos que assolavam a nação e a Coroa. No
Brasil, temerosos de novos ataques dos Franceses como no tempo do comandante
Duguay-Trouin, pirata que tomou a Cidade Maravilhosa nas barbas do nosso
exército, os generais reforçaram a defesa. As naus nos portos da Ribeira e do
Rio de Janeiro aumentaram o número de santos, virgens e mártires à proa. Mas
João permanecia inquieto. Queria ser imortalizado pelos seus feitos. Queria
reunificar o império sob a sua alçada, do Brasil à Índia, passando pelas
Áfricas. Chegou pela calada, como todos os outros visitantes do nosso mosteiro.
Era um fenómeno curioso, o das noites em Odivelas: fidalgos e cónegos e poetas
ansiosos por desfraldar as freiras, alguns até já sabendo de antemão que tinham
permissão para entrar numa cela sem dar nas vistas, outros apenas para ganhar
essa permissão, todos clandestinos, todos furtivos.
Paula, eles querem
acabar comigo. Tinha muitos inimigos, cada um era um afrodisíaco para as nossas
noites. Adorava esses inimigos, que enfureciam o rei e me davam prazer sem o
saberem, porque o rei enfurecido era um amante furioso e indelicado. Um deles,
o principal, era o seu próprio irmão, Francisco. O seu irmão? Não sou louco,
Paula. Penso todos os dias no que o meu pai fez ao meu tio..., a história gosta
de se repetir. Pedro II usurpou o trono ao irmão Afonso VI. Casou com a cunhada,
Maria Francisca Isabel. A história de como Pedro execrou Afonso anima a
mitologia popular que o pai fazia desfilar entre nós, à noite, enquanto
ceávamos. Afonso não ia ser rei. Quem ia ser rei era Teodósio, mas morreu
quando tinha dezanove anos, com uma doença que lhe atacou a respiração e lhe
extinguiu o sopro. Afonso não fora educado para reinar. Eu também não tinha
sido educada para monja e foi o que me aconteceu. Sempre me comovi com a
história de Afonso VI, mas só em Odivelas percebi exactamente porquê: como
exigir que alguém ceda a sua vida para se tornar noutra pessoa?
Quando era pequeno,
uma maldição entrou-lhe no corpo. Um demónio, certamente, na forma de doença. E
a cabeça também deve ter sofrido com isso, Afonso tinha problemas em segurar as
ideias. Passava os dias com pessoas indignas, em divertimentos grosseiros. Ah, querem
saber o que fazia o rei e os amigos? Apedrejavam pessoas e janelas. Faziam
combates com os galgos, os cães mordiam-se até à morte. Enchiam o Paço de
mulheres da pior fama, mulheres cheias de perdição e pecado que nunca foram
felizes ou bondosas, mulheres das quais vocês se devem apiedar mas nunca se
misturarem com elas..., contava o pai, que morria de medo que alguma de nós se
perdesse na devassidão ou numa vida menos digna, caindo na influência de algum
alcoviteiro. Mais tarde, descobri que Afonso VI se havia perdido de amores por
duas freiras de Odivelas, Feliciana de Milão que foi trocada por Ana de Moura.
João contou-me que, no dia em que Ana fez anos, Afonso trouxe touros para o
pátio do convento e em honra da aniversariante os toureou bem ali, no meio das
freiras e aos olhos bem abertos de Deus. Obviamente Deus não gostou da afronta
e fê-lo cair do cavalo. João largou numa risada tão forte quando fiz este comentário
que se engasgou no chocolate que lhe tinha servido. Mas o caso era sério. Se o tio
e Ele partilhavam o gosto por monjas enclausuradas em quatro paredes, isso queria
dizer que existia uma correnteza no sangue, uma inclinação perversa para este tipo
de sentimento. Homens que amam freiras. Homens que se lançam ao cesto divino. O
medo de não ser especial, de ser apenas mais uma, assolou-me muitas vezes, muitas
noites. E em algumas, João acalmava-me. És minha. Minha. Escolho-te para seres minha».
In
Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN 978-989-232-783-9.
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