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«Enquanto
os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do
zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as
coisas de que era capaz. Amávamo-nos como se o amor fosse apenas um suplente
íntimo dessa revolução que nunca mais chegava. A revolução já tinha chegado,
mas nós não sabíamos. Só em Junho de 1974 se lembraram de nós, fechados naquela
casa clandestina. Muitas vezes, ao longo da minha vida, desejei que nos
tivessem esquecido ali para sempre. Desejo ingrato, infantil. Tive uma vida
boa. Consegui ser a advogada que queria ser, cobrar bem aos ricos para defender
melhor os pobres. Encontrei um homem que entende o amor como partilha absoluta,
nunca senti o peso do trabalho doméstico ou da educação dos filhos. Tive dois
filhos que só me trouxeram alegria e serenidade, e tenho já um neto que parece
um reclame sobre o brilho da vida. E tive-te, atrás do espelho, todas as manhãs
da minha vida. Porque foi sempre para ti que me quis bonita, mesmo nos dias
escuros. E em ti que penso, quando escolho a roupa ou escovo o cabelo, todos os
dias. Na possibilidade de te encontrar, no acaso de uma esquina. Lisboa é tão
grande e tão pequena, porque não havia de te encontrar? Queria ser a mesma,
nesse encontro. A mesma, com a luz das rugas que me faltavam no tempo em que
nos metíamos por dentro do corpo um do outro como se sozinhos fôssemos apenas
pedaços de um corpo mutilado. Adormeci todas as noites da minha vida nos teus
ombros estreitos de adolescente eterno. Nunca foste bonito, mas possuías um não
sei quê de juventude ancorada que te tornava imediatamente comovente. Usavas e
abusavas desse não sei quê. Não acreditavas em nada, vivias num aquário de
sonhos impossíveis que fazia de ti um anjo negro, abismo de lágrimas
congeladas. Eras ardiloso, sorrateiro e impaciente como as crianças;
cruzaste-te comigo duas vezes em reuniões de célula e pouco depois fecharam-nos
juntos naquela casa clandestina. Nem sob tortura confessarias que tinhas movido
os teus cordelinhos para ires viver comigo. Entre o segundo encontro e a nossa
definitiva coincidência no mesmo espaço, como diria a Madalena, perita em
justificações espaciais, o teu íntimo amigo António descaíra-se, numa noite de
copos. Ralhou-me por causa do meu namorado imberbe e pequeno-burguês
e revelou-me que tu me achavas linda e lastimavas que eu nem sequer olhasse para
ti. Esta curta e embriagada confissão em diferido mudou a minha vida.
Provavelmente encomendaste-a, nunca o cheguei a saber. Quando, há meia dúzia de
anos, fui ver o António ao hospital, encontrei-o tão próximo da morte que já
não tive coragem de esclarecer os bastidores desta frase minúscula que mudou a
minha vida inteira. Não quis que o António percebesse que era ainda para o
ouvir falar de ti que precisava dele. Depois de sairmos da casa, deixaste de me
procurar. Creio que te fazias encontrado comigo, mas como eu também me fazia
encontrada contigo, nunca cheguei a ter a certeza de que, de facto, me
procuravas. Repetir-me-ias muitas e muitas vezes que não eras talhado para a
vida conjugal. Mas nós já vivemos juntos, disse-te eu, uma vez, desesperada.
Sorriste, e era um sorriso tão meigo quanto sarcástico, ou pelo menos assim me
lembro dele: só por necessidades imperiosas da revolução. De outra vez
disseste-me que, na vida real, eu não aguentaria uma semana contigo. Ou talvez
eu tenha inventado que tu me disseste isto. Pouco importa. Posso ter inventado
tudo, menos o fulgor perfeito dos nossos corpos juntos. Uma vida inteira não
basta para apagar da pele o peso magnífico desse fulgor. Só sexo, disseram-me
as amigas íntimas, quando eu ainda chorava com elas a saudade do êxtase. Só
sexo, fogo e palha, talvez tenham razão. Mas é disso que trata a vida, a minha
vida: só sexo. Contigo. O prazer que o meu corpo conhece é o que aprendeu no
teu, e foi esse que o meu corpo ensinou aos outros homens, aos vários em que
tentou enganar a tua ausência, ao único que soube contornar a tua ausência para
permanecer em mim. Todas as noites me acaricio com os teus dedos, fecho os
olhos e sugo os teus dedos sob o contorno dos meus e conduzo-te pelo meu corpo
como tu me conduzias. Todas as noites rebolamos da cama para o chão e do chão
para cima da cómoda do teu quarto e para a mesa da sala e para as lajes frias
da cozinha, todas as noites percorremos abraçados a casa velha onde já não
moras, a casa velha que se calhar já se desmoronou sem a nossa ajuda. Todas as
noites tu entras em mim por todas as portas, a tua língua silenciosa desperta
vertigens desconhecidas nas partes secretas das minhas orelhas e das minhas
pernas e dos meus pés. Todas as noites sinto o castanho dos teus olhos grandes
dissolvendo-se nos meus com uma felicidade quente, imensa, vejo os teus quadris
estreitos de rapaz dançando sobre o redondo do meu ventre, das minhas nádegas,
todas as noites os teus dentes mordem o meu pescoço no sítio exacto em que o
meu corpo guardava a última fechadura, todas as noites volto a subir a esse
monte dos vendavais só nosso. Só sexo, seja». In Inês Pedrosa, Fica Comigo esta
Noite, Publicações dom Quixote, 2003, ISBN 978-972-202-601-7.
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