segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII). A necrópole visigoda e islâmica de Alporão. Marco Liberato. «A partir das primeiras taifas/período almóravida assinala-se por fim uma mutação da funcionalidade do espaço, com o início da escavação…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Durante os séculos finais da Idade Média, a estrutura urbana de Santarém assumiu uma feição polinucleada: junto ao rio Tejo, a Ribeira permitia o contacto com as vias de circulação fluviais que serviam o esporão da Alcáçova, ocupado desde tempos proto-históricos. Sobre a diacronia da ocupação de um terceiro núcleo localizado no planalto de Marvila, têm sido avançadas hipóteses de trabalho divergentes. Enquanto alguns autores, baseados no cadastro actual, entreviram sinais de urbanismo romano, outros investigadores tem argumentado que a expansão da malha urbana atingiu esta última zona durante o período islâmico e que corresponderia ao núcleo comercial da medina estruturado em torno da mesquita aljama, templo que seria o antecessor directo da igreja baixo-medieval de Marvila. Uma vez que rareiam fontes documentais anteriores ao século XII, a evolução urbana da cidade só poderá ser esclarecida recorrendo aos dados fornecidos pelas intervenções arqueológicas realizadas na cidade, que se multiplicaram nas últimas duas décadas. Se num primeiro momento os trabalhos estiveram praticamente circunscritos à Alcáçova, o advento da arqueologia preventiva na década de noventa do século passado resultou não só num exponencial aumento das escavações, como na sua dispersão por todo o chamado centro histórico.
Propomo-nos analisar os dados recolhidos durante uma escavação arqueológica que incidiu sobre uma área bastante extensa, cerca de mil metros quadrados e que decorreu entre Agosto e Novembro de 2007 e Junho e Setembro de 2008, nos números 5-8 da Rua Cinco de Outubro. A área intervencionada assumia-se à partida como fundamental para esclarecer a diacronia da evolução urbana de Santarém, na medida em que corresponde ao extremo oriental do planalto de Marvila, designado nas fontes medievais por Alpran e contemporaneamente por Alporão. Os constrangimentos topográficos implicam que a circulação entre este acidente de relevo e a Alcáçova se processe na área escavada, realidade atestada documentalmente para a Idade Média, mas que se teria estruturado logo em época romana. Esta última afirmação apoia-se na estratigrafia identificada, que permitiu determinar que a ocupação humana desta área se iniciou com uma necrópole de incineração, certamente utilizada pela população concentrada na Alcáçova, tendo sido identificadas várias deposições em urna e um possível ustrinum, contextos genericamente enquadráveis no período alto-imperial. Posteriormente e de forma aparente ininterrupta, o espaço foi sucessivamente acolhendo inumações cujas características, são consonantes com as soluções e evoluções decorrentes dos rituais funerários praticados nas urbes peninsulares entre os séculos III e X. A partir das primeiras taifas/período almóravida assinala-se por fim uma mutação da funcionalidade do espaço, com o início da escavação de grandes estruturas negativas, que geralmente são interpretadas como silos. Nos primeiros momentos do domínio cristão, a área continuou a acolher actividades e estruturas típicas das periferias urbanas como fornos de cerâmica, pedreiras e alcaçarias O processo de urbanização só se intensificará a partir dos séculos XIII-XIV, tendo sido registados vários espaços de habitação margeando arruamentos, sem nunca anular completamente algumas parcelas vazias de construções, mesmo durante o século XV, certamente dedicadas à produção agrícola. As claras evidências de actividade metalúrgica no local, demonstram também que a malha urbana não seria ainda especialmente densa nos finais da Idade Média.
Após esta descrição necessariamente sucinta dos dados recolhidos, concentremo-nos nas necrópoles visigoda e islâmica, cuja implantação e dispersão espacial fornecem pistas fundamentais para a recuperação da paisagem urbana num período em que o contributo das fontes documentais é diminuto. A afirmação progressiva dos preceitos rituais do Cristianismo, que culminará com a conversão de Constantino, torna especialmente complexa a tarefa de integrar cronologicamente os enterramentos baixo-imperiais. Paralelamente à progressiva difusão da inumação do cadáver em detrimento da opção pela incineração, vão também desaparecendo os espólios votivos que permitiriam uma datação contextual para o momento do enterramento. Assim, algumas sepulturas escavadas na rocha, onde ocorrem por vezes de elementos pétreos ou cerâmicos funcionando como muretes e tampas, não podem ser integrados cronologicamente sem recurso a métodos de datação absoluta, mas foram indubitavelmente depositados entre os séculos III e VIII. À semelhança do que se verifica em várias urbes peninsulares, em que as inumações paleocristãs ocorrem frequentemente nas proximidades de uma basílica peri-urbana, sobreposta aos cemitérios romanos e dominando por inerência um eixo viário de acesso preferencial à povoação, esta necrópole relacionar-se-ia com um templo localizado a Norte, nas cotas cimeiras do planalto. A sua eventual correspondência topográfica com a paroquial que aí se erguia após a conquista cristã, dedicada a S. Martinho de Tours, assume-se como forte possibilidade». In Marco Liberato, Novos dados sobre a paisagem urbana da Santarém medieval (séculos V-XII), a necrópole visigoda e islâmica de Alporão, Revista Medievalista, Nº 11, 2012, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT