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«(…) Já o medo do meu
pai esvaneceu-se quando descobriu que a filha do meio era amante do mais poderoso
dos homens e isso poderia trazer dividendos. Não que o pai fosse fraco, apenas se
dobrou àquilo que muitos outros teriam sucumbido: dinheiro, uma vida melhor ao abrigo
de benesses e honrarias. Este foi o preço que o meu pai pagou pela minha falta de
honra e piedade, pela vergonha de ser meu pai. Não foi assim tão alto. Ele
contava-nos: depois Afonso VI casou. Dona Maria Francisca não se afeiçoou especialmente
ao marido, mas ninguém a culpava. Dali não era o amor que se esperava, nem
filhos, e o que acabou por brotar foi apenas ódio e intriga. A rainha uniu-se ao
cunhado, Pedro: bonito, forte, determinado. Os dois tornaram-se amantes e congeminaram
a saída de Afonso. Foi declarada a anulação do casamento. Dona Maria Francisca
espalhou que o rei não era capaz de cumprir com a função de homem e marido, chamou
testemunhas. Mais de cinquenta pessoas vieram a público dizer que Afonso não era
viril. Nesta altura, o pai quase chorava pelo rei deposto e desonrado. A virilidade
de um homem é metade do seu carácter. O papa autorizou o casamento entre Pedro e
a cunhada. Ainda antes do enlace, os dois dormiram no quarto ao lado de Afonso.
Sentiram-se culpados, tão culpados, que pediram ao confessor de Afonso, o padre
Manuel Fernandes, que ludibriasse o monarca sugerindo-lhe passar uma temporada
em Almeirim, para se afastar da confusão da corte. O rei era doente, estava enciumado,
insano. Aceitou entrar num barco, crente que tomava um rumo. Foi desterrado
para a ilha Terceira, como um tigre enjaulado, atacava quem transpusesse o seu perímetro.
Voltou para Sintra e ali se deixou morrer. Maria Francisca deu uma filha a Pedro
e morreu jovem. O rei casou novamente com dona Sofia, com quem prolongou a linhagem
com mais sete filhos, um deles João V, o meu bem-amado e aventurado rei.
Eu escutava e pensava:
quem tinha razão, o rei incapacitado e cruel ou o irmão que conspirou para lhe tomar
tudo? Afonso VI não tinha firmeza física ou mental para governar, com toda a violência
e agressividade que impunha, as atrocidades a que submetia os mais fracos e desprotegidos.
Merecia ter sido afastado. Mas não foi apenas deposto: foi atraiçoado pelo irmão
e pela mulher, transformado em alvo da chacota popular, obrigado a desistir do reino,
encarcerado num castelo e depois num palácio. Morreu trancado na solidão. Quando
ouvi a história pela primeira vez torci por Pedro, um homem que puxou para si as
rédeas da nação. Usou das armas que tinha, derrubou um adversário desvalido e perverso,
fez-se um formidável monarca. A versão do meu amor fez-me vacilar. Se Francisco
derrubasse João e casasse com Maria Ana, seria uma indignidade e uma injustiça.
Interroguei-me se o pai saberia a verdade sobre Afonso VI ou Pedro II. Se o meu
amor saberia. Interroguei-me se a verdade pode ser mais do que uma ficção. A minha
história com João teve toda a aparência de um enorme erro. Mas apenas eu sei que
foi um erro tão desejável quanto inevitável.
Francisco gostava de espingardas.
Caçava animais. No Paço, ao avistar navios, tinha por hábito atirar sobre os marinheiros
pendurados nos mastros. Caíam no convés, morrendo às vezes. O infante ria-se sempre,
mas não como os loucos riem. O riso dele era de um juízo maldoso, baixo, parecia
um assobio agudo, cheio de propósito. Diz-se que nunca casou porque amou
sinceramente soror Mariana Souza, uma freira como eu, de quem teve dois filhos,
e que nunca mais teve no coração outro sentimento. De certa forma, admirei-o. E
invejei-a a ela. Os nossos caminhos cruzaram-se, mas não pelas razões mais
felizes, O infante também tinha inclinação por jovens donzelas de origens humildes.
Mandava membros do séquito raptá-las e largá-las nos seus aposentos na Bemposta.
Servia-se a seu bel-prazer pelo tempo que queria e depois devolvia-as à procedência.
Não chegava a olhá-las nos olhos. Obrigava-as a permanecerem de quatro, como
bichos, enquanto investia com toda a sua arrogância masculina.
Ao descobrir que uma das
suas concubinas estava grávida de um primeiro amante, atirou-a pelas escadas do
palácio. Noutra ocasião, por engano, uma das raparigas que mandou capturar era filha
de um mercador abastado. Ao descobrir a verdade, quis que o pai dela pagasse uma
pequena fortuna para que ela desposasse um seu criado. Diante da recusa do
comerciante, mandou que o espancassem com tal violência que foi preciso chamar
um padre para lhe oferecer o último alívio da extrema-unção. A filha e a mulher
refugiaram-se em Odivelas mas não o tempo suficiente para que eu soubesse do sucedido.
Também, naquele tempo, eu via-me demasiado cercada pelos encantos de el-rei
para pensar nas atrocidades cometidas pelo infante.
A mim, quis tirar-me a
vida». In Patrícia Muller, Madre Paula, Edições ASA II, 2014, ISBN
978-989-232-783-9.
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